Por DAVID MOURÃO-FERREIRA
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor EDÉCIO OLÍVIO DO VALE, proprietário da loja MANIA DE CULTURA, localizada no centro histórico de São Paulo, à Rua Rodrigo Silva, 34, onde se encontra o livro abaixo com a Ode à Música, acompanhada do texto Quanto a esta Ode, ambos de David Mourão-Ferreira. A Mania de Cultura é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras jurídicas.
I. ODE À MÚSICA
Por David Mourão-Ferreira
I
É como se tivesses mãos ou garras
milhões de dedos braços infinitos
É como se tivesses também asas
libertas do minério dos sentidos
É como se nos píncaros pairasses
quando nas nossas veias é que vives
É como se te abrisses – ó terraço
rodeado de abutres e raízes –
sobre o perene pânico dos astros
sobre a constante insónia dos abismos
E é como se te abrisses e fechasses
sobre a antepalavra do Espírito
É como se morresses quando nasces
É como se nascesses quando expiras
II
Ó claridade Ó vaga Ó luz Ó vento
que no sangue desvendas labirintos
Ó varanda no mar sempre Setembro
Ó dourada manhã sempre Domingo
Ó sereia nas dunas irrompendo
com as dunas e o mar se confundindo
Ó corpo de desperta adolescente
já no centro de incógnitos caminhos
que por fora te aceitas e por dentro
pões em dúvida o sol do teu fascínio
Ó dúvida que avanças mas por entre
volutas de pavor que vais cingindo
Ó altas labaredas Ó incêndio
Ó Musa a renascer das próprias cinzas
III
Só tu a cada instante nos declaras
que renegas a voz de quem divide
Que a única verdade é haver almas
terrível impostura haver países
Que tanto tens das aves o desgarre
como o expectante frémito do tigre
tanto o céu indiviso que há nas águas
quanto o múltiplo fogo que há no trigo
Que és igual e diversa em toda a parte
Que és do próprio Universo o que o sublima
Que nasces que te apagas que renasces
em procura da límpida medida
Que reges o mais puro e o mais alto
do que Deus concedeu às nossas vidas
(Crédito pela narração: Mundo dos Poemas)
II. QUANTO A ESTA ODE
Convidado, pelo meu velho amigo o Maestro Filipe de Sousa, a escrever um texto para as celebrações portuguesas do Dia Mundial da Música de 1980, longe estava eu de prever, quando o convite me foi feito, que esse texto viria a ser em verso e, muito menos ainda, como é óbvio, que ele iria a tomar a forma desta Ode à Música.
De entre várias circunstâncias que para isso terão concorrido, nomearei sobretudo a de certo reencontro comigo mesmo, depois de já o "restabelecido" de um período funesto em que por demais me "emprestara" a actividades de carácter público. E nomearei ainda a crescente náusea que me ia despertando, no auge de um belíssimo Verão bem merecedor de melhor sorte, o repugnante espectáculo da utilizaçao da língua portuguesa para os mais baixos fins de insulto pessoal e de comicieira demagogia.
Donner un sens plus pur aux mots de la tribu? Sem que tão-pouco fosse consciente este propósito, decerto terá sido ele que me orientou — em procura da límpida medida — para uma tentativa de expressão quanto possível rigorosa e quanto possível alheia à babugem das contingências.
Deve ter também a ver com isto a reiterada associação, que na Ode se observa, entre o tema da música e os temas da água e do fogo. Já depois de escrita — praticamente de um jacto, praticamente na forma como hoje se se apresenta —, esses últimos temas continuaram ainda a exigir uma expressão mais desenvolvida. Assim, no dia seguinte àquele em que o poema fora escrito, eis que me surgiu, como desenvolvimento ao tema da água em conexão com o da música, mais esta possível "secção" da Ode (que só a título de curiosidade aqui transcrevo):
Atlântico Adriático Pacífico
Volga Guadalquivir Danúbio Reno
Não há mar não há fonte não há rio
que não tenhas bebido longamente
Por isso é todo de água o teu domínio
todo névoas o teu ensinamento
E o melhor que deixamos erigido
(isto ao menos contigo o aprendemos)
só na água e no vento o construímos
para de nós ficar ou água ou vento
Mas com que inexorável disciplina
buscas os fundamentos disso mesmo
ó Musa dentre todas a mais fria
ó Musa todavia a mais ardente
Convenci-me então de que um novo "sector" do poema — esse de desenvolvimento ao tema do fogo — haveria ainda de fatalmente aparecer. Mas logo a seguir me apercebi de que o trecho acima transcrito já constituía uma excrescência; que ele não apresentava sequer a contenção dos outros; que eu estava, enfim, a laborar num equívoco.
Boa ou má, a Ode encontrava-se efectivamente completa. Os temas podem "enganar-se" a respeito destas coisas. As formas, não.
Lisboa, 4 de Outubro de 1980
Ass. David Mourão-Ferreira
III. AGRADECIMENTO
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
IV. BIBLIOGRAFIA
MOURÃO-FERREIRA, David: ODE À MÚSICA, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, 23 p.
7 comentários:
Prezad@,
Venho por meio deste post registrar no Blog de São João del-Rei minha admiração pela inspiração transbordante do talentoso poeta português DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996), nosso contemporâneo do século XX. Considerado um dos maiores poetas contemporâneos portugueses, ganhou notoriedade junto do grande público com poemas de sua autoria cantados por Amália Rodrigues, a dama do fado e a "voz de Portugal".
É imortal da ABL-Academia Brasileira de Letras, como um de seus mais notáveis sócios-correspondentes.
Novo colaborador: DAVID MOURÃO-FERREIRA
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/12/colaborador-david-mourao-ferreira.html 👈
Texto: ODE À MÚSICA e QUANTO A ESTA ODE
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/12/ode-musica.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Só a música para nos consolar.
Abs
Obrigado, amigo!
Como você acertou na escolha, no tom, no tema, no colorido - aliás, como sempre. David Mourão-Ferreira é um dos maiores destaques da poesia de Língua Portuguesa do século XX. A poesia desse nosso contemporâneo é de altíssima qualidade e eu lamento profundamente não tê-lo conhecido pessoalmente, quando isso seria possível. Os poetas ficam eternizados nos poemas que tanto tempo depois são lidos, divulgados e admirados. Como poeta, estou tentando encontrar o verso capaz de me ressuscitar um dia. David Mourão-Ferreira é para sempre. Dele podemos dizer que é de fato um imortal, independentemente das instituições que o festejaram e o receberam. Mais uma vez, obrigado. (poetageraldoreis.blogspot.com) - Da Academia Marianense de Letras.
Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços. Diamantino.
Olá, Francisco e Rute. Desejamos a vocês um feliz e positivo encerramento deste ano corrente, e, desde já, um feliz e produtivo 2023 para vocês e todos os seus familiares.
Grande abraço, do irmão Joel
Foi meu colega na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Abraço
do Giiberto M. Teles
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