segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

ODE À MÚSICA


Por DAVID MOURÃO-FERREIRA
 
O gerente do Blog de São João del-Rei dedica o presente trabalho ao empreendedor EDÉCIO OLÍVIO DO VALE, proprietário da loja MANIA DE CULTURA, localizada no centro histórico de São Paulo, à Rua Rodrigo Silva, 34, onde se encontra o livro abaixo com a Ode à Música, acompanhada do texto Quanto a esta Ode, ambos de David Mourão-Ferreira. A Mania de Cultura é referência em todas as áreas do conhecimento, inclusive com itens esgotados e raros, merecendo destaque especial seu acervo de obras jurídicas. 


 

I. ODE À MÚSICA 

Por David Mourão-Ferreira 

 


É como se tivesses mãos ou garras 
milhões de dedos braços infinitos 
É como se tivesses também asas 
libertas do minério dos sentidos 
É como se nos píncaros pairasses 
quando nas nossas veias é que vives 
É como se te abrisses ó terraço 
rodeado de abutres e raízes
sobre o perene pânico dos astros 
sobre a constante insónia dos abismos 
E é como se te abrisses e fechasses 
sobre a antepalavra do Espírito 
É como se morresses quando nasces 
É como se nascesses quando expiras 
 
II 
 
Ó claridade Ó vaga Ó luz Ó vento 
que no sangue desvendas labirintos 
Ó varanda no mar sempre Setembro 
Ó dourada manhã sempre Domingo 
Ó sereia nas dunas irrompendo 
com as dunas e o mar se confundindo 
Ó corpo de desperta adolescente 
já no centro de incógnitos caminhos 
que por fora te aceitas e por dentro 
pões em dúvida o sol do teu fascínio 
Ó dúvida que avanças mas por entre 
volutas de pavor que vais cingindo 
Ó altas labaredas Ó incêndio 
Ó Musa a renascer das próprias cinzas 
 
III 
 
Só tu a cada instante nos declaras 
que renegas a voz de quem divide 
Que a única verdade é haver almas
terrível impostura haver países 
Que tanto tens das aves o desgarre 
como o expectante frémito do tigre 
tanto o céu indiviso que há nas águas 
quanto o múltiplo fogo que há no trigo 
Que és igual e diversa em toda a parte 
Que és do próprio Universo o que o sublima 
Que nasces que te apagas que renasces 
em procura da límpida medida 
Que reges o mais puro e o mais alto 
do que Deus concedeu às nossas vidas 
 
(Crédito pela narração: Mundo dos Poemas) 
 
II. QUANTO A ESTA ODE
 
 
Convidado, pelo meu velho amigo o Maestro Filipe de Sousa, a escrever um texto para as celebrações portuguesas do Dia Mundial da Música de 1980, longe estava eu de prever, quando o convite me foi feito, que esse texto viria a ser em verso e, muito menos ainda, como é óbvio, que ele iria a tomar a forma desta Ode à Música

De entre várias circunstâncias que para isso terão concorrido, nomearei sobretudo a de certo reencontro comigo mesmo, depois de já o "restabelecido" de um período funesto em que por demais me "emprestara" a actividades de carácter público. E nomearei ainda a crescente náusea que me ia despertando, no auge de um belíssimo Verão bem merecedor de melhor sorte, o repugnante espectáculo da utilizaçao da língua portuguesa para os mais baixos fins de insulto pessoal e de comicieira demagogia. 

Donner un sens plus pur aux mots de la tribu? Sem que tão-pouco fosse consciente este propósito, decerto terá sido ele que me orientou em procura da límpida medida para uma tentativa de expressão quanto possível rigorosa e quanto possível alheia à babugem das contingências. 

Deve ter também a ver com isto a reiterada associação, que na Ode se observa, entre o tema da música e os temas da água e do fogo. Já depois de escrita praticamente de um jacto, praticamente na forma como hoje se se apresenta , esses últimos temas continuaram ainda a exigir uma expressão mais desenvolvida. Assim, no dia seguinte àquele em que o poema fora escrito, eis que me surgiu, como desenvolvimento ao tema da água em conexão com o da música, mais esta possível "secção" da Ode (que só a título de curiosidade aqui transcrevo): 

Atlântico Adriático Pacífico 
Volga Guadalquivir Danúbio Reno 
Não há mar não há fonte não há rio 
que não tenhas bebido longamente 
Por isso é todo de água o teu domínio 
todo névoas o teu ensinamento 
E o melhor que deixamos erigido 
(isto ao menos contigo o aprendemos) 
só na água e no vento o construímos 
para de nós ficar ou água ou vento 
Mas com que inexorável disciplina 
buscas os fundamentos disso mesmo 
ó Musa dentre todas a mais fria 
ó Musa todavia a mais ardente 
 
Convenci-me então de que um novo "sector" do poema esse de desenvolvimento ao tema do fogo haveria ainda de fatalmente aparecer. Mas logo a seguir me apercebi de que o trecho acima transcrito já constituía uma excrescência; que ele não apresentava sequer a contenção dos outros; que eu estava, enfim, a laborar num equívoco. 
Boa ou má, a Ode encontrava-se efectivamente completa. Os temas podem "enganar-se" a respeito destas coisas. As formas, não. 
Lisboa, 4 de Outubro de 1980 
Ass. David Mourão-Ferreira
 
  

III. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 

IV. BIBLIOGRAFIA

 
 
MOURÃO-FERREIRA, David: ODE À MÚSICA, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, 23 p.

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...


Prezad@,
Venho por meio deste post registrar no Blog de São João del-Rei minha admiração pela inspiração transbordante do talentoso poeta português DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996), nosso contemporâneo do século XX. Considerado um dos maiores poetas contemporâneos portugueses, ganhou notoriedade junto do grande público com poemas de sua autoria cantados por Amália Rodrigues, a dama do fado e a "voz de Portugal".
É imortal da ABL-Academia Brasileira de Letras, como um de seus mais notáveis sócios-correspondentes.

Novo colaborador: DAVID MOURÃO-FERREIRA
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/12/colaborador-david-mourao-ferreira.html 👈

Texto: ODE À MÚSICA e QUANTO A ESTA ODE
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/12/ode-musica.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Só a música para nos consolar.
Abs

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Obrigado, amigo! 
Como você acertou na escolha, no tom, no tema, no colorido - aliás, como sempre. David Mourão-Ferreira é um dos maiores destaques da poesia de Língua Portuguesa do século XX. A poesia desse nosso contemporâneo é de altíssima qualidade e eu lamento profundamente não tê-lo conhecido pessoalmente, quando isso seria possível. Os poetas ficam eternizados nos poemas que tanto tempo depois são lidos, divulgados e admirados. Como poeta, estou tentando encontrar o verso capaz de me ressuscitar um dia. David Mourão-Ferreira é para sempre. Dele podemos dizer que é de fato um imortal, independentemente das instituições que o festejaram e o receberam. Mais uma vez, obrigado. (poetageraldoreis.blogspot.com) - Da Academia Marianense de Letras. 

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços. Diamantino.

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá, Francisco e Rute. Desejamos a vocês um feliz e positivo encerramento deste ano corrente, e, desde já, um feliz e produtivo 2023 para vocês e todos os seus familiares.
Grande abraço, do irmão Joel

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Foi meu colega na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
 Abraço
do Giiberto M. Teles