Publicado originalmente na Revista da Comissão Fluminense do Folclore, edição de maio de 1975.Em 1975, o jornalista, escritor, folclorista e consultor cultural, Marcelo Câmara, então com vinte e cinco anos, era o Secretário da Revista da Comissão Fluminense de Folclore, editada pelo jornalista, educador, folclorista e escritor Rubens Falcão (1901-1995), Secretário da Comissão. Naquele ano, Marcelo já havia publicado vários artigos e ensaios sobre o Folclore Brasileiro e, juntos, Marcelo e Rubens, foram assistir, na cidade do Rio de Janeiro, a uma palestra, com apoio audiovisual, do Frei Francisco van der Poel, o "Frei Chico", acerca do trabalho científico e pioneiro que o Vigário de Araçuaí, MG, desenvolvia sobre o Catolicismo Popular no Vale do Jequitinhonha. A reportagem foi publicada na Revista, na edição de maio de 1975. No último 14 de janeiro, Frei Chico partiu, conforme registrou, no dia seguinte, este blog. Em homenagem à memória, à vida e obra do querido sacerdote, pesquisador e estudioso do nosso Folclore, autor do Dicionário da Religiosidade Popular – Cultura e Religião no Brasil (Nossa Cultura, 2013), o Blog de São João del-Rei republica a histórica matéria do seu colaborador Marcelo Câmara.
Frei Francisco van der Poel (✰ Zoeterwoude, Holanda em 03/08/1940 ✞ Belo Horizonte em 14/01/2023)
FREI FRANCISCO VAN DER POEL é um jovem missionário holandês, radicado no Brasil há sete anos e vigário de Araçuaí, sede de Bispado no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais. Município pobre, que tem a sua economia de subsistência realizada, precariamente, em atividades da pecuária, agricultura e mineração. Araçuaí, entretanto, possui um dos mais ricos e originais folclores do País.
Com uma etnia tríplice de negros, brancos e descendência indígena, o folclore do Vale do Jequitinhonha, em razão de sua formação histórica, apresenta identificações nitidamente nordestinas. Foram o processo econômico, as injunções sócio-políticas que proporcionam esses pontos de contato, trocas, empréstimos e transferências entre os sertões do Leste e Nordeste.
"Frei Chico" - assim conhecido na região - encontrou em Araçuaí manifestações culturais de surpreendente significação social, principalmente as ligadas ao Catolicismo Popular. Pastor de segura responsabilidade e consciência vocacional, integrando-se na vida comunitária, procurando o diálogo, Frei Chico, que é também professor de Música e Canto, passou imediatamente a se interessar por todas aquelas manifestações do homem do Vale.
Depois de percorrer o Nordeste brasileiro, perscrutando a alma popular, ele voltou a Minas e, de gravador a tira-colo, lápis e papel, interrogou, aprendeu e registrou costumes e ideologias, filmando e fotografando fatos e sobrevivências. De início, confessou, – confessou –, sentiu o arredio e a desconfiança da gente. Sem esmorecimento, Frei Chico se embrenhou pelos caminhos das fazendas, rios, visitou vilas e freguesias para colher um vasto e precioso material de campo. Suas conclusões, de caráter antropológico e religioso, levaram-no a um projeto de estudo, interpretação e, finalmente, a uma inteligente tarefa: a de não censurar, reprimir ou desvalorizar aquelas práticas conflitantes com a Liturgia oficial da Igreja de Roma. Através de um planejamento e método adequados, com preocupação educacional e espírito científico aplicado à realidade do Jequitinhonha, Frei Chico consegue harmonizar os ensinamentos do Evangelho com as "rezas", faz conviver o pensamento da chamada "Igreja Nova" com as dolentes "incelências", os princípios da Justiça Social com os "cantos do gado" do sertanejo.
Não castrar a espontaneidade, não dirigir, não oficializar as expressões marginais, não contrariar o sentimento, a criação do povo e suas sobrevivências tradicionalizadas - estas as diretrizes do trabalho de Frei Chico. Alia as intenções maduras do Cristianismo à pesquisa e compreensão destes elementos culturais indestrutíveis, que persistem vivos e contemporâneos às metamorfoses das Leis e dos Poderes. Aproveitando a funcionalidade lúdica e reivindicatória destes monumentos, Frei Chico os utiliza como instrumental de catequese, assistindo, com liberalidade e inteligência, aos processos dos folk-lores, tecidos no sonho e no tempo.
O Conservatório Brasileiro de Música, por iniciativa da ilustre folclorista Profª Dulce Martins Lamas, no seu programa dedicado à "Semana do Folclore Brasileiro", apresentou, no mês de agosto último, uma conferência, ilustrada com gravações e slides, onde Frei Francisco van der Noel considerou os "Aspectos do Folclore Musical do Vale do Jequitinhonha". Naquela ocasião, ele já havia registrado, em cento e vinte fitas magnéticas, toda a poesia popular e musical do Vale do Jequitinhonha, principalmente os patrimônios de Itinga e Araçuaí. Num trabalho paciente e penoso, Frei Chico anotou mais de mil versos.
Colheu no Vale os improvisos das "Folias de Reis", os "cantos dos canoeiros" (do Rio Araçuaí), os "cantos dos tropeiros", "cantos do gado", "cantos da pobreza", os "versos de roda", as "contradanças", os "cantos da ema", os "encontros", "tiranos", "cocos", "batuques" e "modinhas".
O folclore religioso do Vale do Jequitinhonha e sua variedade própria a cada motivo, está vinculado, principalmente, ao calendário de festas oficiais. Em Araçuaí, por exemplo, temos um "Folclore do Rosário", referente às comemorações pela passagem do dia votivo de Nossa Senhora do Rosário, que inclui, desde as manifestações puramente religiosas, litúrgicas, como as rezas, procissões alegóricas, novenas preparatórias, práticas de altar, até os folguedos, coreografia, folias específicas, etc. Em Itinga, as Festas da Santa Cruz e o ciclo da Semana Santa também apresentam raridades na antologia folclórica brasileira.
Porém, foi em Araçuaí, sua paróquia, que Frei Chico encontrou essa inédita e interessantíssima expressão: o "Louvor de Anjo". São cantos de quadras improvisadas e refrões fixos, com os quais a família e os vizinhos de uma criança falecida ("anjo") choram, ao redor do corpo, a perda prematura do servo de Deus, e louvam a entrada gloriosa de sua alma no Paraíso. O "Louvor de Anjo" tem uma geografia social que determina suas variações, realizando-se em peças de melancolia, ingenuidade telúrica e beleza poética.
Frei Chico registrou ainda a enciclopédia dos "abecês" – longas narrativas cantadas que, seguindo a ordenação do alfabeto, dizem, com intensa legitimidade, todos os sentimentos do povo. Os "abecês" estão comprometidos com as atividades da região. Assim, codificaram-se a Fé, a Economia, a Política, a Crítica Social, a Criação, todos os valores da ideologia praticada pelo homem do Vale do Jequitinhonha. Eis alguns deles: o "abc dos negros", "dos brancos", "dos índios", o "abc da Alegria", o "abc do Amor", o "abc da Pesca", o "abc do Garimpo", e muitos outros.
O mais extenso e solene é o "abc da Paixão de Cristo". O tema desenvolve-se dentro da igreja, após as celebrações do programa oficial da Sexta-feira Santa (via-sacra, procissão, representações) cumpridas sob o jejum e as penitências. Terminadas estas cerimônias fúnebres, o povo – homens, mulheres e crianças, atraídos de distantes rincões e depois de longas caminhadas até à cidade – invade o templo, acomodando-se nos bancos, chão e degraus. Inicia-se, então, a récita do "abc da Paixão de Cristo", dirigida por um chefe religioso leigo. Os fiéis percorrem os fatos mais marcantes do suplício, tocando nas partes chagadas da imagem do Cristo morto, em exposição. Lamentações e lágrimas se juntam à repetição dos versos introdutórios de cada episódio. A letra "o" enuncia o ombro martirizado de Deus, a letra "c", o coração vazado pela lança do centurião, e assim por diante. As orações denotam esperança na Ressurreição, arrependimento e amor.
Classificado em acervo, o extraordinário material recolhido por Frei Francisco van der Poel constitui um promissor laboratório de qualidade artística e extrema valia documental. São milhares de fotografias, gravações ao vivo, depoimentos, filmes, anotações, cópias, peças de artesanato, música, instrumentos, adereços coreográficos, etc.
Frei Chico espera o interesse de alguma editora, ou da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, para que seja publicada a Antologia Musical e Poética do Folclore do Vale do Jequitinhonha, sem dúvida mais uma importante contribuição aos estudos nesse setor.
* Graduado em Direito e Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense, Dr. Marcelo Câmara é jornalista, ensaísta, produtor fonográfico, editor e consultor cultural. Ex-consultor legislativo do Senado Federal, ocasião em que assessorou o Senador Darcy Ribeiro. É membro da Academia Fluminense de Letras, ocupante da Cadeira nº 37.
segunda-feira, 20 de março de 2023
O FOLCLORE DO VALE DO JEQUITINHONHA
Por MARCELO Nóbrega da CÂMARA Torres *
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7 comentários:
Prezad@,
No último 14 de janeiro, Frei Chico partiu, conforme registrou, no dia seguinte, este blog. Em homenagem à memória, à vida e obra do querido sacerdote, pesquisador e estudioso do nosso Folclore, autor do Dicionário da Religiosidade Popular – Cultura e Religião no Brasil (Nossa Cultura, 2013), o Blog de São João del-Rei republica histórica matéria do seu colaborador MARCELO CÂMARA, intitulada O FOLCLORE DO VALE DO JEQUITINHONHA, originalmente publicada na Revista da Comissão Fluminense do Folclore, na sua edição de maio de 1975.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/03/o-folclore-do-vale-do-jequitinhonha.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Uma homenagem justíssima. Tive o prazer de conhece-lo via o poeta e artista popular Tadeu Martins e o cantor Tadeu Franco.
Reconheço que Deus me deu sempre chances imensas de compartilhar o bem e o bem feito com figuras realmente significativas.
Parabéns pela repercussão do trabalho desta figura humana fantástica.
Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços.
Esse material produzido por Frei Chico deve ser interessantíssimo. Será que existe disponível alguma publicação dessa matéria? E das músicas?
Muito grato pelo envio de mais esse material.
Meu Caro Confrade Francisco Braga
Graça e paz!
Gratidão pela remessa do link sobre O folclore no Vale do Jequitinhonha
Abraços
Pe. Sílvio
Muito interessante o estudo do Frei Chico sobre o Folclore do Jequitinhonha, caro Francisco Braga.
Meus sentimentos pela partida dele.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Caro professor Braga.
Uma justa homenagem e uma consistente descrição e análise do alcance do trabalho de Frei Chico ! Notável que Marcelo Câmara as tenha elaborado em 1975 !
Saudações.
Cupertino
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