Teria sentido iniciar estas palavras sobre José Severiano de Resende, dizendo que foi um apóstata? Após o aggiornamento da Igreja Católica, após as reformas do Concílio Vaticano II, poderíamos afirmar que Severiano de Resende e seu colega Antônio Tôrres foram apóstatas? Vede bem, Senhoras e Senhores, como é mutável e falível o julgamento dos homens! Como, cada vez mais, tem razão o célebre dito de Pascal: — O que é moral aquém não o é além dos Pireneus... E nós usamos a frase em relação aos tempos. Na sociedade em mudança que estamos vivendo, nenhuma significação mais possui a conduta tão criticada dos homens da eminência intelectual de Severiano de Resende e Antônio Tôrres. Nada além de cinquenta anos atrás, quando se pronunciava um desses nomes, o pensamento primeiro que nos vinha à mente é que eram dois egressos das fileiras eclesiásticas, eram dois ex-padres. E já hoje o conceito é diferente. Uma condição, porém, não mudou; foi sempre constante: é a de que foram e são considerados dois homens de excelso talento, dois escritores de primeira plana, dois artistas consumados da pena, que faziam da arte de escrever a razão de sua existência. E daí sua perenidade. No cadinho depurador do tempo, as escórias se foram depositando. Suas tão negregadas máculas de desertores da batina, trânsfugas das hostes da Santa Madre Igreja — pecha hedionda lançada pela hipocrisia sobre os costados dos dois artistas da palavra, cuja inteligência é uma glória mineira — foram soterradas no esquecimento, depuradas e enriquecidas pelo poder maior da beleza. Só esta possui o condão de redimir os homens. Desde os gregos até Winckelmann, passando por Benedetto Croce e Bosanquet, os estetas ainda não atinaram com uma definição universal da beleza. Só atinamos que ela existe, quando fere a nossa sensibilidade. Lembra-me neste instante o que dizia Benvenuto Cellini acerca dos indivíduos de sua estirpe, de sua família espiritual: — Não importa o que foram, importa, sim, o que deixaram atrás de si. É esta a marca da beleza. Se Severiano de Resende, como Antônio Tôrres, tivesse sido sacerdote zeloso e correto, e somente isso — estaríamos nós, aqui para festejar-lhe a memória? Estarei, porventura, sendo irreverente para com as instituições sagradas sob pálio das quais fui criado e aprendi a respeitar e cultuar com sincero fervor? Creio que não. Desejo ser simplesmente sincero comigo mesmo, para ser sincero com aqueles que me ouvem. Devo um preito de reconhecimento àqueles que me convidaram a falar sobre a figura empolgante pelo brilho da inteligência que foi Severiano de Resende, e este preito é o de ser veraz e autêntico. Só o verei, se disser o que maduramente refleti sobre o vulto que irá ocupar nossa atenção. Severiano de Resende é a prova mais gritante do poder do talento, da sua capacidade de sobrevivência pelo exercício pleno da beleza. Ele foi um criador e semeador do belo e por isso estamos aqui reunidos para cultivar-lhe a memória no centenário do seu nascimento. Seria necessário dizer que nasceu em Mariana a 23 de janeiro de 1871 e faleceu em Vichy, a 14 de novembro de 1931, vivendo, portanto, setenta anos? Nesses seis decênios de vida o que nos compete dizer é como os encheu Severiano de Resende.
Seu pai, natural desta ilustre cidade, Severiano Nunes Cardoso de Resende, foi um caracense, no tempo do caraça de Afonso Pena, Diogo de Vasconcelos, Sabino Barroso, Olegário Maciel e outros. Jornalista impetuoso, homem de combate, sabendo temperar o afã com as conveniências, foi um construtor da civilização mineira através da ação e da palavra na Assembleia Provincial, em Ouro Preto, criando a escola normal nesta cidade e escolas primárias em vários lugares de Minas. Latinista emérito, redigiu uma gramática da língua latina e vários livros de real valor, como um tratado de versificação, um drama sacro em quatro atos, A Virgem-Mártir de Santarém e tantos outros. Deputado em várias legislaturas, foi presidente da Assembleia Provincial e constituinte republicano de 1891. Famoso advogado provisionado, exerceu a função em Ouro Preto, Bom-Sucesso, Itapecerica e outras comarcas. Gozou de notável relevo no meio intelectual ao lado de Aureliano Pimentel, Gastão da Cunha, Basílio de Magalhães e outros de igual estatura. Esta cidade, seu berço natal, deve-lhe muito de seu progresso.
Vê-se, pois, que José Severiano de Resende nasceu em bom meio e usufruiu de exemplo magnífico. Herdou e ampliou qualidade e virtualidades paternas. Se o pai cultivou a inteligência, o filho José foi além: fez desse cultivo, como já afirmei, a razão de ser de sua vida.
Na trajetória terrena de José Severiano de Resende, iremos tocar nos píncaros, a fim de divisar os horizontes amplos de uma admirável existência, inteiramente consagrada às tarefas do espírito.
Poeta de inspiração peregrina, começou a versejar cedo. Após tentar o curso de direito na velha Faculdade de São Paulo, abandonou ali os estudos em virtude do que cognominou injustiça praticada na pessoa do Professor Justino de Andrade, Conselheiro do Império, monarquista convicto, então aposentado por Benjamin Constant. Fruto desse episódio é o volume Cartas Paulistas, publicado em Santos em 1890, em que reuniu os artigos de jornal escritos em defesa de seu professor. Isso o trouxe de volta a Mariana, e em 1894 ingressou no Seminário, dali saindo ordenado padre em 1897. Sobrevém na oportunidade o incidente com o Padre João Chanavat, lente de Moral, relatado pelo Cônego Raimundo Trindade nas páginas de seu monumental trabalho A Arquidiocese de Mariana e que constitui no seguinte: Vinha José Severiano de Resende compondo versos razoáveis pela inspiração sacra, quando o pai, vaidoso do sucessor, comete o delicioso pecado da promoção de seu filho e publica no Minas Gerais alguns sonetos que no dizer do preclaro historiador: — Santo Antônio subscreveria; Santo Ambrósio poderia chamá-los seus e o próprio David não se dedignaria de incluí-los entre os seus salmos penitenciais. Acontece que, naquela época, um seminarista se achava preso a preceitos rígidos, a penosos preconceitos. Não se lhe permitia aparecer assinando trabalhos nas colunas dos jornais. Foi a afoiteza paterna a causa do episódio entre Severiano e o Padre Chanavat, que o repreendeu pela exibição de talento, admoestando-o severamente. Severiano negou sua intromissão ou anuência do caso, culpando o pai pelo evento, homem importante na época, desejoso de projetar o filho. "Seja como for", retruca o Reitor do Seminário, "é preciso que isto não se reproduza, mesmo porque versos tão ruins não merecem publicidade. Rasgue, rasgue essa versalhada toda", foi a ordem terminante do superior. Severiano, fiel à disciplina, obedeceu às ordens e destruiu O Livro da Contrição, com lágrimas nos olhos.
Dois episódios são esses que marcam a vida de Severiano. Atualmente, com os dados da psicanálise, dispomos de instrumentos para fazer uma prospecção na alma do nosso biografado. As decepções, frustrações e recalques sofridos no caso paulista e nesse do Seminário Marianense, como, ainda, em outro que narraremos daqui a pouco, oferecem-nos a explicação do restante da vida desse grande e infeliz sacerdote, um dos prosadores mais castiços de Minas Gerais do princípio do século. Sua revolta contra o preconceito veio a manifestar-se mais tarde, quando forças suplementares e o amadurecimento da razão lhe oferecem o suporte da reflexão sobre si mesmo, isto é, o fim da alienação.
Espírito ardente, singularmente bem dotado, foi recolhendo os louvores que sua privilegiada inteligência provocava. Manejando como poucos a pena versátil e brilhante, o demônio interior aconselhava-o emancipar-se das peias que o tolhiam. Suas produções intelectuais constituíam já bagagem de vulto considerável, representadas por obras como Eduardo Prado, e farta publicação em jornais de artigos e poemas, que mais tarde seriam reunidos em Painéis Zoológicos, Livro da Contrição, que dizem ser a recomposição da obra destruída por ordem do Padre Chanavat, e Mistérios. Tão rico acervo dava-lhe base para proclamar a independência, abandonar de vez a estrada palmilhada obrigatoriamente anos seguidos e percorrer sendas novas. No entanto, permaneceu-lhe o culto da Virgem e a leitura quotidiana do Breviário. Sacerdos in aeternum... Despindo-se da batina, ferido por acontecimentos que lhe minavam a alma há decênios, cristalizados de maneira lenta, mas definitiva, para a decisão final, disse a vários de seus amigos, inclusive a Alphonsus de Guimaraens: — Vou-me daqui. Nunca posso estar tranquilo. Ser padre é um estado. Ter sido padre, porém, desconcerta, diminui o homem perante seu semelhante. E foi assim que conseguiu um emprego na Embaixada do Brasil em Paris e lá viveu até sua morte em 1931, ébrio e católico, rojando-se pelas igrejas, rezando, implorando a piedade dos céus para sua apostasia... conforme relata maldosa testemunha. Gilberto Amado dele conta episódios na vida boêmia de Paris, convivendo com Modigliani e outros artistas, fazendo a seu respeito o melhor juízo crítico. Afirma seguidas vezes tratar-se de um dos melhores engenhos do Brasil, perdido na bruma de Mont-Martre, etilizando-se, arrastando seu fulgurante talento pelas ruas da Cidade Luz. E nós sabemos que o sergipano universal nunca foi fácil nos elogios. Sua opinião acerca de Severiano de Resende, consumindo-se na esterilidade da boêmia de Paris, nos comove.
Ainda em setembro passado, palmilhando os boulevards e avenidas na capital francesa, lembrei-me de Severiano de Resende e tive vontade de saber onde se acha inumado para visitar-lhe a tumba. Infelizmente, não pude apurar e trouxe comigo essa mágoa, pois há anos me dedico ao estudo desse insigne escritor mineiro, cuja obra é ainda tão mal conhecida e seu nome não alcançou a consideração que mereceu.
Há almas que antecedem seu nascimento. Outras nascem anacrônicas. Severiano de Resende veio ao mundo com quase cem anos de antecedência. Seu comportamento de ser humano e sua prosa são os da atualidade. Parece que retirou de Erasmo de Rotterdam a concepção de vida, expressa em reiteradas passagens de sua obra. Em verdade — peço-vos permissão devanear um pouco — somos os loucos que não nos parecemos com os dos manicômios. Nenhum dos loucos internados e assim reconhecidos se importa de saber qual é a loucura do vizinho ou daquele que ocupou a cela antes dele. Nós, loucos livres, emprestamos imensa importância em sabê-lo. No entanto, o espírito humano torna-se menos capaz de erro desde que saibamos até que ponto e de quantas maneiras somos capazes de cometê-los, assim como jamais damos por terminada a tarefa de estudar a história de nossos desvarios. Eis a essência da lição que os historiadores nos ministram. Já o velho Sêneca afirmava que a qualidade principal de um espírito bem organizado é poder parar e permanecer consigo próprio. Foi precisamente o que, de certa feita, praticou Severiano de Resende, embora essa parada ou busca no tempo representasse a visão total de sua vida. Ele a enfrentou com destemor, realizando o que muitos não têm coragem, pois é a operação de esvaziamento total, ao mesmo passo que o vácuo é rápida ou tardiamente preenchido por outros valores.
Reiterados juízos seus acerca de Eduardo Prado, no ensaio redigido em 1901, podem ser-lhe atribuídos. Possuía, também como Prado, um estilo sóbrio e conhecimentos extensos e sólidos sobre múltiplos ramos do conhecimento, sem fazer ostentação deles.
Poder-se-ia proceder a uma análise do vocabulário usado por Severiano de Resende, no início do século, através do ensaio sobre Eduardo Prado, que é, em síntese, modelo de polêmica pela riqueza e vivacidade das expressões, pelo remoque pronto, a objurgatória ferina, o dito adequado e picante, o circunlóquio feliz. A malícia escorre, policiada e brilhante, das páginas desse volume redigido quando o autor contava apenas vinte e nove anos. Verifica-se então a propriedade dos termos oriunda do exato e profundo conhecimento das línguas Latina e Portuguesa. É curioso, por exemplo, o emprego de palavras hoje inteiramente desusadas do verbo “patefazer”. Diz ele: — A ilusão americana patefaz a sua erudição assombrosa, como sinônimo do verbo patentear, exibir. No conjunto, porém, é obra que se lê com desembaraço e prazer, pela fluência do estilo, exposição das ideias, enumeração de fatos, tudo condimentado num caldo polêmico, amigo que era da controvérsia, lembrando Camilo Castelo Branco e o Padre Senna Freitas. Com as imperfeições visíveis, estamos tentando o retrato inteiro de Severiano de Resende.
O terceiro fato que contribuiu para a tomada de posição de seu espírito foi o incidente provocaado por artigos publicados no jornal D. Viçoso, de que era diretor por determinação do arcebispo D. Silvério. Nesses panfletos, de enérgico zelo apóstolico, suscitou a ira de alguns, que revidaram, atirando uma bomba de dinamite à porta de sua residência. João Alphonsus relata sucintamente os fatos no prefácio às Poesias de Alphonsus de Guimaraens. Severiano de Resende, sacerdote desvelado no pastoreio das almas, criticava atitudes que lhe pareciam menos convincentes aos autênticos católicos, que praticaram o desforço obrigando-o a se retirar da cidade de Mariana, embora prestigiado por D. Silvério. Dali veio para a cidade de São João del-Rei, como Capelão da Santa Casa da Misericórdia.
Alma assim batida na sua pureza, cavaleiro da ideia que sempre foi, Severiano começa a acolher a sugestão de abandonar a batina, transferindo-se para o Rio onde se entregou ao jornalismo. É evidente que sua formosa inteligência, nutrida de sérias leituras e servido por um estilo brilhante, lhe propiciou logo, na Capital da República, acolhida entusiástica e lhe abriu largos créditos. Exercendo o jornalismo, como, em geral, o exercem até hoje os mineiros que emigravam para o Rio, Severiano de Resende, em breve, dominava e influía no meio intelectual, marcando sua presença, ditando a moda, como se diz. Mordido ainda pelo remorso, embora convivendo de igual para igual com os melhores talentos da época, tais como Olavo Bilac, Emílio de Menezes, Guimarães Passos, e frequentando a boêmia classificada do Café Papagaio e da Colombo, usando a batina correta, de barba escanhoada diariamente, com elegância inflexível, ia Severiano construindo as coordenadas de sua futura vida. Desse período intervalar, em que ia firmando seu renome de escritor e jornalista, mas conservando a condição sacerdotal, é que nasceu o excelente estudo sobre Eduardo Prado, espécie de manifesto monarquista, com o propósito original de espantar os apaixonados ou noivos da República. Foi a quadra mais fértil de seu talento e quando se apresentou candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, sendo derrotado precisamente porque, ao lado do talento, estava o sarcasmo, o vigilante destruidor das nulidades aparatosas, que figuram sempre na primeira fila. Logo em seguida, um grupo de distintos intelectuais resolve promover, como era moda então, uma série de conferências no velho Instituto de Música, para ali atraindo público seleto. Severiano de Resende foi incluído no elenco, como não podia deixar de ser. Escolhe para tema de sua palestra a Grafologia. E a pretexto de traçar esboços psicológicos, através da escrita, o que ele produziu, exibindo a assinatura e textos escritos à mão pelos autores estudados na conferência, foi uma crítica mordaz e espirituosa sobre os figurões da época: Machado de Assis, Rui Barbosa, José Veríssimo e outros. Espécie de sátira menipeia, onde sobressaem a copiosa erudição, solidez de conhecimentos, valentia, independência e graça na exposição. Fez furor essa conferência e com ela conquistou a malquerença daqueles que dispunham então das chaves do sucesso. Exibia a coleção de autógrafos, mostrava os estigmas da caligrafia, tecendo paradoxos cheios de ironia, opulentos pelo sabor clássico, como se fora um Menandro ou trêfego Aristófanes do Rio de Janeiro do princípio do século. Quem não temeria um espírito assim, pronto sempre a fustigar os ridículos e a desferir a gargalhada escarninha de Gavroche? Essa agressividade foi a arma que sua alma temperou para desforrar os dissabores e frustrações que a vida lhe pespegou.
Paris acabava de nos enviar a moda das aquarelas. Amadores requintados e artistas promoveram, na oportunidade, uma exposição de seus quadros. Os jornais elogiavam, como é de praxe, mais pelos nomes que os firmavam ou aos quais estavam ligados, do que pelo valor intrínseco das telas. Que fez então o Padre Severiano? Visitou-a e pôs em pânico os troca-tintas, redigindo uma crônica em O País, esfuziante de graça levando tudo aquilo na troça, na pura galhofa, reduziu os pseudo-artistas à sua exata proporção. Foi quando Artur Azevedo, que pontificava do outro lado, tomando a defesa dos pintamonos, publicou a quadra seguinte:
O Padre Zé Severiano
de Resende,
De tudo entende o magano,
Até de pintura entende...
Essa crônica de Severiano, repleta da mais ática das ironias, foi lida com curiosidade e indignação nos palacetes do Flamengo, Botafogo e Glória completando a malquerença e aumentando o temor dos poderosos contra a sua pessoa de cavaleiro andante da autenticidade, sob as vestes aparentes de Aretino.
É célebre também um folhetim a propósito da peça O Mártir do Calvário, que se levava com sucesso de bilheteria num teatro. O Pe. Severiano viu o dramalhão e arrasou a peça e os atores. Sua verve atingiu o ápice e sua revolta foi fulminante, porque a Virgem Maria era representada por uma artista cuja reputação moral pode ser hoje comparada à respeitosa de Sartre. É evidente que sua conduta desabrida provocou desafetos aos montes, principalmente entre os poderosos. Espadachim bem equipado de florete ágil que eram sua cultura e inteligência, dominou a crônica carioca. A revista Cá e Lá, lida então pela burguesia, estampou a caricatura do Padre Severiano, numa expressão boêmia, bem comido e bem dormido, tranquilo da vida, com esta quadra embaixo:
Garrido, bem trajado, uma teteia
De livro sempre em punho, bem escovado,
Apóstolo eu nasci, feito da ideia,
Pois ser apóstolo é o meu apostolado...
Era visível a represália ao zurzidor sem medo, ao satírico e mordaz escriba que descompôs meio mundo poderoso com sua pena adamantina e irreverente. Conduta sem hipocrisia, nesta época já quase egresso da batina, postava-se à hora marcada, em certo atelier da Rua do Ouvidor, aguardando a saída de sua eleita, uma francesa de bela estampa, que foi sua preferida por largo tempo. Sucessivas admoestações e turras com as autoridades eclesiásticas terminaram por levá-lo a abandonar de vez as vestes talares e decidir a viver fora do Brasil. Só regressaria à pátria uma única vez, em 1915, em plena guerra, com a França já invadida. Não quis ir a Mariana ver o amigo; seu encontro marcado em Belo Horizonte com Alphonsus de Guimaraens, a grande afeição de uma existência, desde os bancos escolares, está narrado no prefácio que o filho João Alphonsus escreveu às Poesias Completas do pai. Foi, efetivamente, um festim intelectual de alto nível, reunindo vinte e cinco dos melhores talentos da Capital Mineira, que saudaram Severiano e Alphonsus, numa apoteótica confraternização, pela palavra de Álvaro da Silveira, então presidente da Academia Mineira de Letras. O ágape se realizou nos salões do Club Acadêmico, havendo Severiano agradecido em nome dos dois homenageados, com sua voz forte e cheia, lembrando ainda os sucessos e as vitórias do púlpito, numa oração sentida, onde havia de tudo: saudade, eloquência, erudição, verdade e poesia. Terminou recitando poemas seus e de Alphonsus sob a ovação geral dos presentes. É dessa ocasião alguns poemas seus na Vida de Minas, revista editada em Belo Horizonte.
Nunca mais regressaria à pátria. Sempre místico, alma irmã à de Verlaine, em 1929, fez um longo retiro espiritual. Conquistou consideração em Paris, havendo merecido de Philéas Lebesgue, que então assinava a crítica literária do Mercure de France, conhecedor da literatura luso-brasileira, alguns juízos muito honrosos para sua produção poética. Nessa famosa revista de cultura da França publica Severiano alguns trabalhos. É bastante citada uma longa carta do próprio punho de Lebesgue a Severiano acerca de seu admirável livro místico O Meu Flos Sanctorum, publicado no Porto em 1908, e as poesias recolhidas, depois, no volume Mistérios, publicado em 1920, também no Porto. O conceituado crítico francês derrama elogios acerca dos trabalhos do nosso escritor.
Gostaria de deter-me no derrame de sua obra. Falar mais desse livro, estranha composição hagiográfica, O Meu Flos Sanctorum, que tanto me entusiasma pelo conteúdo e forma, livro paralelo ao de Jean Baptiste de Saint-Victor, superior, porém no modo de tratar a matéria. Todavia, neste panorama de uma existência, fiz questão de não me fixar em qualquer dos períodos, justamente para jornadear, vadiamente, com liberdade total, ao redor de todos eles. Ficam para os especialistas os aspectos mais subjetivos, tanto literários como filológicos ou estilísticos de sua obra de escritor. No momento da celebração do seu centenário de nascimento, serão estudados o prosador e o poeta.
Muito propositadamente, esforcei-me por esboçar o retrato de um homem que, bem ou mal, acabo de vos mostrar.
Falei de uma vida tumultuária no sentido da adversidade e sua constante superação, mas que foi bem vivida no sentido da dignidade da obra que nos legou, legítima na sua perpetuidade. Poderíamos a seu respeito repetir o verso acrescentando: — Foi poeta: sonhou, sofreu e amou na vida...
* Discurso pronunciado em 21/01/1971, por ocasião do centenário de nascimento do escritor José Severiano de Resende, extraído do "Novo Glossário das Gerais", 2000, edição da Imprensa Oficial para Edições Caraifas, pp. 123-132.
10 comentários:
Prezad@,
Tenho o prazer de hospedar no Blog de São João del-Rei o colaborador VIVALDI MOREIRA (1902-2001), o que vai sem dúvida engrandecer o nosso ponto de leitura.
Para estreia dessa ilustre colaboração, escolhi um discurso do ensaísta mineiro e presidente-perpétuo da Academia Mineira de Letras proferido em homenagem ao centenário de nascimento do escritor José Severiano de Resende (1871-1971).
Aos que se interessarem por maiores informações sobre José Severiano de Resende, recomendo a leitura da Bibliografia proposta no segundo item abaixo.
TEXTO DO DISCURSO
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/03/o-homem-severiano-de-resende.html
BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/03/colaborador-vivaldi-wenceslau-moreira.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Parabéns.
Obrigado, Mestre! Vamos à leitura.
Parabéns pela postagem!
--
Geraldo Reis
BLOG: O SER SENSÍVEL
http://poetageraldoreis.blogspot.com
Muito interessante. O discurso é também uma obra literária.
Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços. Diamantino.
Meu caro Francisco Braga
Agradeço-lhe o presente desse discurso do excelente e erudito escritor Vivaldi Moreira, de quem tenho a honra de ser parente e admirador, bem como a alegria de ter com ele convivido, sobre esse notável Severiano de Resende. Mineiros de esplêndida cepa!
Abraço amigo de
Anderson
Prezadíssimo Braga! Saúde!
Agradeço-lhe a estima por Vivaldi. Muito desvanece ao filho vê-lo lembrado em tão conceituado veículo de comunicação literária.
Meu agradecido abraço.
Pedro Rogério Moreira
Caro professor Braga
Ambos, texto e biografado, imensamente interessantes. Muitíssimo grato pela oportunidade da leitura.
Cumprimentos.
Cupertino
Obrigado e Parabéns pelo texto, Maurício
Bravo!
Postar um comentário