Por LUIZ CÉSAR SARAIVA FEIJÓ *
Vou falar na primeira pessoa, porque a mentira nunca vem em primeiro lugar em qualquer narrativa. Ela vem, muitas vezes dissimulada, lá no fim da história. Às vezes, no meio. O que vou narrar são fragmentos de uma vida dedicada ao ensino, verdadeiramente. Atividades dentro de salas de aula, durante muitos anos...
Há mais de 60 anos eu inovava em sala de aula, tentando ser diferente, pois percebi, logo que iniciei minhas atividades docentes, que os alunos não mais se interessavam pelo blá, blá, blá de uma escola que não atendia às ansiedades deles. A Escola envelheceu rapidamente. Ou não acompanhou a modernidade que chegava rapidamente.
Minhas novidades pedagógicas surgiram muito antes da Lei 5.697, de 1972. Aboli, definitivamente, as notas, substituindo-as por conceitos. Quem foi meu aluno, nesse tempo, deve ainda lembrar daqueles desenhos em forma de notas. Figurinhas motivacionais servindo de conceitos, que se encaixavam na faixa etária das primeiras séries do então Curso Ginasial. Ficaram famosos, entre a gurizada, ei-los: Porquinho Rindo; Porquinho Sério; Porquinho Triste e Porquinho Desesperado. Não havia correspondência entre estes termos linguísticos e os números. Era só isso, mesmo. Os alunos pareciam que gostavam da minha avaliação e percebiam que com um bom desempenho na avaliação, todos ficavam felizes, e como sorriam... mas ao receberem um desenho de porquinhos aflitos, agitados, percebiam, também, que o tal Porquinho Desesperado não era lá mesmo uma boa coisa. Evidentemente, aquilo era o resultado de algo nada interessante para a sua vida escolar. E ficavam tristes. Mas a tristeza passava rápido, porque, olhando para a figura dos porquinhos desesperados, ingenuamente riam e a ludicidade daquele ícone não agredia como os numerais 1, 2 e ZERO. De fato, ninguém queria ter uma coleção desses suínos... mas que eles eram bonitinhos, eram, sim! Em sua ingenuidade, chegavam a interpretar aquilo como uma brincadeira. Aquelas crianças aceitavam essa nova forma de materializar um desempenho escolar – estou certo disso – porque a nota em forma de desenho, uma quase brincadeira mesmo, representava, no fundo, no fundo, o seu desempenho nas provas e a sua dedicação aos estudos. De fato, havia embutido nos conceitos, um valor, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Um troféu gostoso, lúdico, para o desempenho de cada um. Nada de destruir a participação do aluno, muitas vezes criativa, nas tarefas propostas, com palavras incompreensíveis, sem censura, sem rabiscos alusivos aos erros ou equívocos. Eu não rabiscava a prova de meu aluno. Nada disso. Evidentemente, não valorizávamos, também, o erro.
Abolimos, em seguida, o uso do terno e gravata como uniforme do professor em sala de aula, substituindo-o pelo jaleco branco. Fiquei até parecido com médico. Foi uma atitude unilateral, passível de repreensão, eu sei, mas o calor de 40° da Cidade Maravilhosa, em seus verões de arrepiar, falou mais alto... Abolimos, logo depois, o uso do livro didático em sala de aula e sofremos a fúria das editoras especializadas. Passamos a usar qualquer jornal do dia, sem exigir nenhum, em especial. Tentávamos fazer com que o aluno adquirisse o hábito de comprar e ler jornal, mesmo em dia de recesso, feriados, fins de semana e férias... Pouca coisa? Creio que não. Eles participaram, pela primeira vez, de uma relação comercial e aprenderam a gostar de ler, além de exercitar as contas aritméticas, praticando o troco e aprendendo a economizar num produto mais barato (havia jornais de vários preços naqueles tempos). Todos gostavam de ler, nos jornais, a seção das Histórias em Quadrinhos, um “entre lugar”, dividido com a literatura e o cinema. Nunca eles haviam comprado alguma coisa sadia, para consumo próprio. Estavam comprando e consumindo informações e notícias, as mais variadas possíveis, a primeira parcela de uma enorme conta de somar, na contabilidade da vida, formando, cada um, o seu repertório cultural. Eles, os alunos, aprimoravam, com o jornaleiro da esquina da escola, a sua matemática e desenvolviam a prática de se expressar em público, pedindo claramente o que desejavam. Pouca coisa? Mais uma vez, não! O próximo passo foi abolir o tradicional quadro-negro. Bem, nem todo. Deixei uma parte para fixar algo importante. Só a usávamos, basicamente, para a fixação da aprendizagem. Creio que pela primeira vez se utilizou, em colégio público, nas aulas de Língua Portuguesa, material tão, aparentemente, incompatível com fonemas, sílabas, classes de palavra, conjugações, vozes verbais, figuras de sintaxe, polifonia, metafonia. Apresentávamos essas coisas de nomes esquisitos, através de situações, retiradas dos textos dos jornais e de histórias contadas. É claro que isso não era tudo de improviso. Dava um trabalhão...
Tudo era misturado a muita alegria e satisfação. Passamos também a usar cola plástica, tesoura, barbante, papel de mimeógrafo, recortando as notícias do dia, interpretando-as e com elas partindo para a leitura e para as análises de todos os tipos programáticos, montando até um novo jornal, deixando a sala imunda para o professor seguinte de outra matéria, que me substituiria. Como os serventes trabalhavam! Depois de algum tempo e muitas reclamações, as aulas de Língua Portuguesa passaram a ter mais alguns minutos de duração e foram colocadas nos últimos seguimentos do horário do dia, fechando o turno da manhã, para faxina geral. Ocorreu, então, mais uma aceleração pedagógica, inovadora, com reflexos futuros, pois as aulas de Curso Ginasial passaram a ter 100 minutos de duração. O primeiro colégio do Rio de Janeiro a adotar essa nova minutagem foi o Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ).
Estas foram algumas atitudes pedagógicas tomadas há mais de 60 anos, em escolas públicas oficiais, sob a responsabilidade da Secretaria de Educação do Estado da Guanabara, hoje, Estado do Rio de Janeiro. Sabem em que colégio tudo isso começou? Nada mais, nada menos que no maior colégio do Rio de Janeiro, na época: o Instituto de Educação, aquele mesmo! Aquele prédio lindíssimo, em estilo barroco mexicano, na Rua Mariz e Barros, 273, entre a Praça da Bandeira e a Tijuca, que formava as nossas professorinhas primárias, com diminutivo afetivo e tudo. Pelo que fizemos, quase apanhamos das mães dos pequeninos alunos que não entenderam imediatamente o que estava acontecendo. A Direção queria me expulsar do magistério. Lutei bravamente, numa época difícil de regime político de exceção, mas consegui não ser penalizado e, de certa forma foi reconhecido, saindo até vitoriosa a minha teoria revolucionária de motivação na aprendizagem. Se fomos seguidos? Não importa. O que importa é que fomos reconhecidos, não imediatamente, pois a educação é um processo, lento e contínuo. Não existem frutos para serem colhidos imediatamente. A safra custa amadurecer...
Depois do Instituto de Educação fomos trabalhar no Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade, no subúrbio da Leopoldina, na Penha. Lá também inovamos. Criamos a primeira radioescola do Brasil, em colégio público de Nível Médio, graças à compreensão de seu diretor, um professor fabuloso, um homem de bem, de fina sensibilidade, filólogo e poeta. O Professor Jairo Dias de Carvalho, que já não está entre nós, tornou-se meu grande amigo, desde os bancos escolares da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Jairo Dias de Carvalho dirigiu o Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade com saber, dignidade, patriotismo e democracia plena, em tempos muito difíceis, de estado de exceção conflagrado institucionalmente. Recebeu com todo respeito e atenção meu projeto inovador de Comunicação Pedagógica, implantando no colégio que dirigia, a Radioescola Gomes Freire de Andrade. O empreendimento foi reconhecido pelo Secretário de Estado de Educação, na época, Celso Octávio do Prado Kelly, pai do João Roberto Kelly, o músico carnavalesco de marchinhas irreverentes, estão lembrados?
De lá saí para o Colégio Estadual Barão do Rio Branco, na última estação do trem da Central do Brasil, bem depois de Campo Grande. Ficava no Matadouro de Santa Cruz. Lá, introduzimos a semente dos festivais de música e poemas escolares, numa “mistureba” cultural de shows e poesia. Além disso, construímos, com recursos próprios, uma sala especial de Latim. Isso mesmo, Latim. Parecia uma sala de museu. Gastei meus parcos recursos. Suados cruzeiros, cruzados e muitas novas moedas das quais não mais lembro seus nomes, nem delas tenho saudade. Mas tudo em educação, se não tiver muito amor, comprometimento, conscientização e continuidade, se esvai como água entre os dedos e a sede do saber não satisfaz o desejo de se crescer intelectualmente. Lutei muito. Coloquei em livretos todas essas experiências, que o editor, Lúcio de Abreu, da Editora Gernasa, publicou para orgulho meu. Lúcio de Abreu foi um arauto da boa e inovadora educação; um grande amigo, que também já se foi e a quem muito devo, por acreditar nas “maluquices" de um jovem e inquieto e iniciante professor. Nunca acreditei que somente o cuspe e giz pudessem servir para muita coisa dentro de uma sala de aula.
Pois é, existe ainda no Brasil uma grande defasagem entre o que o aluno espera da escola e aquilo que ela lhe oferece. É verdade. Desenvolvi esse tema também em um livreto da Editora do Lúcio de Abreu. Do meu bom amigo Lúcio...
Se estes fragmentos memoriais vão servir para alguma coisa, não sei dizer. Sei que enquanto me lembrar do que fiz de bom, de útil e correto vou registrando, antes que as nuvens negras da tempestade cerebral descarreguem seus raios fúlgidos, mas trágicos, em minha cansada memória e apague tudo. Nessa época atual, em que a figura do professor está tão desprestigiada, sirva essa voz tosca de um mestre-escola, para mostrar que ensinar é ainda a mais nobre de todas as profissões. Assim, entendo e sempre entendi que o professor tem de ser mestre do absurdo, porque só os grandes impactos constroem, enquanto as pequeninas coisas, sempre repetidas, decoradas, corroem, enjoam e estragam a nossa vida, a vida de todos nós, a vida do homem comum, a vida de nossos alunos. Todos nós precisamos e, o aluno, em particular, precisa de felicidade para viver, desenvolvendo-se confiante. É dever do professor abastecer essa demanda. O professor, antes de tudo deve ser professor de felicidade.
Fonte: Um Fantasma em Crônicas, por Luiz César Saraiva Feijó (p. 73 a 78).
* Professor Adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro da Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), ocupante da cadeira nº 28.
10 comentários:
Prezad@,
Tive o prazer de estar a conversar com PROFESSOR FEIJÓ (como gosta de ser chamado), ontem, Domingo de Ramos, data de abertura da Semana Santa de São João del-Rei. Na despedida, presenteou-me com dois livros de sua autoria: UM FANTASMA EM CRÔNICAS e UMA FLOR AMARELA - CRÔNICAS, ambos de 2021.
Passando uma rápida vista d'olhos pelos dois exemplares, escolhi uma de suas crônicas, PROFESSOR DE FELICIDADE, para dar-lhe boas vindas ao Blog de São João del-Rei, com votos de outras futuras colaborações, para além do jornal O PROGRESSO DA FOZ, Porto, Portugal.
TEXTO
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/04/professor-de-felicidade.html 👈
AUTOBIOGRAFIA
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/04/colaborador-luiz-cesar-saraiva-feijo.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Muito obrigado! Que seja o início de uma profícua e sincera amizade.
Em tempo:
Meu amigo fantasma ficou emocionado!
Forte abraço, uai!
Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços.
Meu querido amigo, breve estarei de volta ao Brasil, depois de um longo periodo no exterior. Aproveitarei para apreciar as crônicas a que vc se refere. Abs
MUITO BOM, CARO BRAGA.
Obrigado... vamos ler atentamente.
Obrigado, Francisco. O texto fez-me evocar uma poesia que decoramos no tempo do seminário:
Antigamente a escola era risonha e franca.
Do velho professor as cãs, a barba branca,
infundiam respeito, impunham simpatia,
modelando as feições do velho que sorria...
O professor Jeijó, de fato, esteve muito à frente de seu tempo.
Abraço.
Caro amigo Braga
De fato! Concordo com o que disse, acima, o Escritor João Alvécio Sossai: “o Professor Feijó era um homem bem à frente de seu tempo”!
Apreciei o que disse o Prof. Feijó, em sua interessante Crônica “Professor de Felicidade”, em termos de inovação ou empreendedorismo: “Não existem frutos para serem colhidos imediatamente. A safra custa amadurecer...”
Vivi isso durante muitos anos, lecionando no magistério superior.
Forte abraço.
O amigo Mario Cupello
Caro professor Braga
Não apenas uma crônica, mas um memorial de uma concepção de prática pedagógica libertária !
Excelente!
Saudações
Cupertino
Caro amigo e confrade Francisco Braga
Agradecemos com alegria os seus votos de Feliz Páscoa. O mesmo lhe desejamos na certeza de que continuaremos a desfrutar dos bons resultados do seu Blog em benefício da vida humana e cristã.
Respeitosamente,
Pe. Sílvio Firmo do Nascimento
Diocese de São João del-Rei
Professor Aposentado pelo UNIPTA
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