terça-feira, 30 de abril de 2024

Colaboradora: RACHEL AUERBACH

Rachel Auerbach e Hirsch Wasser desenterrando os escondidos arquivos Oyneg Shabbos em setembro de 1946

 

RACHEL AUERBACH (1903-1976) foi sobrevivente do Holocausto, escritora e historiadora. Ela estudou filosofia e psicologia em Lviv na década de 1920 e depois mudou-se para Varsóvia, onde trabalhou como jornalista. Após a invasão nazista da Polônia em 1939, Auerbach foi presa no Gueto de Varsóvia. Ali, ela dirigia uma cozinha comunitária e trabalhava para o arquivo subterrâneo de Emanuel Ringelblum, denominado Oyneg Shabbos ¹. Auerbach conseguiu escapar do gueto em 1943 e sobreviveu à guerra escondida. 

Após a guerra, ela continuou o trabalho de Oyneg Shabbos na Comissão Histórica Judaica Central na Polônia, garantindo que partes do arquivo fossem recuperadas de seus esconderijos. Em 1947, ela publicou um relato abrangente do campo de extermínio de Treblinka, intitulado “Nos Campos de Treblinka”. 

Em 1950, Auerbach emigrou para Israel, onde chefiou o Departamento de Contas de Testemunhas Oculares do Museu Yad Vashem. Ela lutou incansavelmente para garantir um lugar para as experiências de sobrevivência das vítimas na história do Holocausto. 

Em 1960-61, ela também apoiou os preparativos para o julgamento contra Adolf Eichmann e testemunhou em tribunal. 

Fonte: https://www.theholocaustexplained.org/resistance-responses-collaboration/individual-responses/rachel-auerbach/ 👈

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¹ O Arquivo Ringelblum é uma coleção de documentos do Gueto de Varsóvia da Segunda Guerra Mundial, coletados e preservados por um grupo conhecido pelo codinome Oyneg Shabbos (em hebraico israelense moderno, Oneg Shabbat; hebraico: עונג שבת), liderado pelo historiador judeu Emanuel Ringelblum. O grupo, que incluía historiadores, escritores, rabinos e assistentes sociais, dedicou-se a narrar a vida no Gueto durante a ocupação alemã. Trabalharam em equipe, coletando documentos e solicitando depoimentos e relatos de dezenas de voluntários de todas as idades. Os materiais apresentados incluíam ensaios, diários, desenhos, cartazes murais e outros materiais que descreviam a vida no Gueto. A montagem do arquivo começou em setembro de 1939 e terminou em janeiro de 1943; o material foi enterrado no gueto em três esconderijos. Após a guerra, dois dos três esconderijos foram recuperados e hoje o arquivo redescoberto, contendo cerca de 6.000 documentos (cerca de 35.000 páginas), está preservado no Instituto Histórico Judaico, em Varsóvia.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Ringelblum_Archive  👈

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Yizkor, 1943: uma história de vida no gueto de Varsóvia


Por RACHEL AUERBACH 
Traduzido do inglês por Francisco José dos Santos Braga, além de autor das duas notas explicativas
 
O ensaio abaixo é um dos poucos de Rachel Auerbach que têm sido traduzidos em inglês. Foi escrito por Auerbach quando ela estava no esconderijo após a destruição do gueto de Varsóvia, com o objetivo de informar outros poloneses a respeito do destinos de judeus da Polônia.  David Samuels
Ilustração: Joanna Neborsky and Corey Fogel

Uma vez vi uma inundação nas montanhas. Cabanas de madeira arrancadas de suas fundações foram carregadas acima das águas turbulentas. Ainda se viam lâmpadas acesas nelas; e homens, mulheres e crianças em seus berços foram amarrados às vigas do teto. Outras cabanas estavam vazias por dentro, mas dava para ver um emaranhado de braços balançando do telhado, como galhos ao vento, acenando desesperadamente em direção ao céu, em direção às margens do rio em busca de ajuda. Ao longe viam-se bocas abertas, mas não se ouviam os gritos porque o barulho das águas abafava tudo. 

E foi assim que as massas judaicas fluíram para a sua destruição no momento das deportações. Afundando impotentemente no dilúvio de destruição. 

E se, por um só dia da minha vida, eu esquecer como te vi então, meu povo, desesperado e confuso, entregue à extinção, que todo o conhecimento sobre mim seja esquecido e meu nome seja amaldiçoado como o daqueles traidores que são indignos de compartilhar tua dor. 

Cada instinto é revelado na massa — repulsivo, emaranhado. Todos os sentimentos agitados, febris até o âmago. Açoitado por centenas de chicotes de uma atividade irracional. Centenas de esquemas de resgate enganosos ou ridículos. E no outro polo, uma entrega ao inevitável; uma gravitação em direção à morte em massa que não é menos real do que a gravitação em direção à vida. Às vezes os dois antípodas se sucediam no mesmo ser. 

Quem pode traduzir as etapas da morte de um povo? Apenas o estremecimento de pena por alguém e por outros. E de novo, ilusão: esperando o milagre da sorte. O sorriso insano de esperança nos olhos do paciente incurável. Reflexos horripilantes de cor no rosto amarelado de alguém condenado à morte. 

 
Condenados à morte. Quem poderia... quem desejava compreender tal coisa? E quem poderia esperar tal grau contra as massas? Contra ramos tão baixos, judeus tão simples. As plantas humildes do mundo. Os tipos de pessoas que teriam vivido suas vidas sem debater com os justos — ou mesmo com os injustos — deste mundo. 
 
Como poderiam essas pessoas estar preparadas para morrer numa câmara de gás? Os tipos de gente que têm pavor de cadeira de dentista; que empalideceu ao arrancar um dente. 
 
E quanto a elas... as criancinhas? 
 
Os pequeninos, e os ainda menores, que até há pouco tempo se viam nos braços das mães, sorrindo para um pássaro ou para um raio de sol. Conversando com estranhos no bonde. Que ainda brincavam de “uni-duni-tê” ou gritavam “upa-upa” balançando as mãozinhas no ar. Ou chamavam de “pá-pá”. Ó, mundo irreconhecível para o qual essas crianças e suas mães se foram. “Arre!” 
 
Até os mais fofos: as crianças de dois e três anos que pareciam pintinhos recém-nascidos cambaleando sobre as pernas fracas. E até os levemente maiores que já conseguiam falar. Que perguntavam incessantemente sobre o significado das palavras. Para os quais tudo o que aprenderam foi sempre novinho em folha. Crianças de cinco anos. E crianças de seis anos. E aqueles que eram um pouco mais velhos — com os olhos arregalados de curiosidade sobre o mundo inteiro. E aqueles ainda mais velhos, cujos olhos já estavam velados pelas brumas da sua adolescência iminente. Meninos que, em seus jogos, se preparavam para conquistas que ainda estavam por vir. 
 
Meninas que ainda amamentavam suas bonecas nos cantos. Que usavam fitas no cabelo; meninas, como pardais, saltando nos pátios e fazendo o percurso dos jardins. E aquelas que pareciam botões semiabertos. Gente em cujas bochechas o primeiro vento do verão parece ter corado à primeira carícia. Meninas de onze, doze, treze anos com rostos de anjos. Brincalhonas como gatinhas. Flores sorridentes de maio. E aquelas que quase floresceram: as jovens de quinze e dezesseis anos. As Saras, as Rebecas, as Lias da Bíblia, com seus nomes reformulados em polonês. Seus olhos são azuis, cinza e verdes sob as sobrancelhas, como se vê nos afrescos desenterrados na Babilônia e no Egito. Senhoritas esbeltas dos poços de Hebron. Senhoritas dos Evangelhos. Concubinas estrangeiras de patriarcas judeus; donzelas do deserto com narinas dilatadas, cabelos em cachos, de pele escura, mas empalidecida pela paixão. Filhas espanholas, amigas de poetas hebreus da Idade Média. Flores sonhadoras curvadas sobre piscinas espelhadas. E na frente destas? Loiras delicadas nas quais a paixão hebraica se confunde com a alegria eslava. E as camponesas louras, ainda radiantes, mulheres de quadris largos, simples como pão preto; ou como camisa do corpo do povo. 
 
Foi uma excepcional abundância de beleza daquela geração que cresceu sob a bandeira cinzenta da pobreza do gueto e da fome em massa. Por que não ficamos impressionados com isso como um presságio do mal? Por que não compreendemos que esse florescimento implicava o seu próprio fim? 
 
Foram estas, e outros como elas, que foram para o abismo — as nossas lindas filhas. Estas foram as que foram depenadas e despedaçadas. 
 
E onde estão os jovens judeus? Sinceros e sérios; apaixonados como cavalos de alta raça, mordendo o freio, ansiosos para correr. Os jovens trabalhadores, os ḥalutsim, estudantes judeus ávidos de estudo, de desporto, de política. Aprimoradores do mundo e porta-bandeiras de todas as revoluções. Jovens cuja paixão os preparou para ocupar as celas das prisões de todo o mundo. E muitos foram torturados em campos de concentração, antes mesmo do início do assassinato em massa. E onde estão os outros jovens, mais simples que estes — as raízes terrenas de um povo disperso; a própria essência da sobriedade contrariando a decadência do idealismo no nascedouro? Jovens de espírito efervescente, de cabeça baixa como a de touros contra o decreto proferido contra o nosso povo. 
 
E judeus piedosos em gabardines pretas, parecendo sacerdotes nos seus trajes medievais: judeus que eram rabinos, professores que queriam transformar a nossa vida terrena num longo estudo da Torá e na oração a Deus. Foram eles os primeiros a sentir o desprezo do açougueiro. O discurso constante sobre o martírio acabou não sendo meras palavras vazias. 
 
E ainda outros judeus. De ombros largos, voz profunda, mãos e corações poderosos. Artesãos, trabalhadores. Condutores de carroças, carregadores. Judeus que, com um soco, poderiam derrubar qualquer hooligan que ousasse entrar em suas vizinhanças. 
 
Onde vocês estavam quando suas esposas e filhos, quando seus velhos pais e mães foram levados embora? O que lhes aconteceu para fazê-los fugir como gado atropelado pelo fogo? Não havia ninguém para lhes dar algum propósito na confusão? Vocês foram arrastados pelo dilúvio, junto com aqueles que eram fracos. 
 
E vocês, comerciantes tímidos e astutos, filantropos em seus casacos de pele curtos e bonés. Como foi que vocês não perceberam a fraude assassina? Pais — e mães de família; vocês, em Varsóvia. Comerciantes robustas com rostos orgulhosos irradiando inteligência acima de seus três queixos, paradas em suas lojas atrás de balcões repletos de montanhas de mercadorias. 
 
E vocês, outras mães. Vendedoras ambulantes e feirantes sobrecarregadas. Desgrenhadas e tão preocupadas com seus filhos quanto galinhas irritadas quando batem as asas. 
 
E vocês, outros pais, já desmontados (de seu cavalo), por assim dizer. Vendendo doces em suas mesas bambas na época do gueto. 
 
Que loucura é essa que leva alguém a listar os vários tipos de judeus que foram destruídos? 
 
Avôs e avós com muitos netos. Com mãos como folhas secas; suas cabeças brancas. Que já tremiam no final de seus dias. Eles não estavam destinados simplesmente a declinar cansados em suas sepulturas como almas em busca de repouso; como o sol afundando fatigado nas ondas do oceano. Não. Foi decretado que antes de morrerem, eles veriam a destruição de tudo o que haviam gerado, de tudo o que eles haviam construído. 
 
O decreto contra as crianças e os idosos foi mais completo e mais terrível do que qualquer outro. 
 
Os que calcularam e os que contaram para menos. Aqueles com aptidões desenvolvidas cuidadosamente ao longo de inúmeras gerações. Talentos incomparáveis, ricamente dotados de sabedoria e competência profissional: médicos, professores, músicos, pintores, arquitetos. E artesãos judeus: alfaiates — famosos e procurados. Relojoeiros judeus em quem os gentios confiavam. Marceneiros, impressores e padeiros judeus. O grande proletariado de Varsóvia. Ou devo consolar-me com o fato de, na maior parte dos casos, você ter conseguido morrer de fome e necessidade no gueto, antes da expulsão? 

 
Ah, as ruas de Varsóvia – o solo negro da Varsóvia judaica. 
 
Meu coração chora até pelo ladrãozinho da rua Krochmalna; mesmo para os piores assaltantes empunhando faca na estreita Mila, porque até eles foram mortos por serem judeus. Ungidos e purificados na irmandade da morte. 
 
Ah, onde estão vocês, ladrõezinhos de Varsóvia; vocês, vendedores ambulantes ilegais e vendedores de maçãs podres? E vocês, as pessoas mais prejudiciais — membros de grandes gangues que mantinham seus próprios tribunais; que sustentavam suas próprias sinagogas nos Dias de Temor ¹; que conduziam funerais festivos e davam esmolas como os burgueses mais prósperos?
 
Ah, a gente louca da rua judaica! Adivinhos desordenados em tempos de guerra. 
 
Ah, vendedores de roscas nas noites de inverno. 
 
Ah, crianças assoladas pela pobreza do gueto. Mascates do gueto; contrabandistas do gueto sustentando suas famílias; leais e corajosos até o fim. Ah, os pobres meninos descalços andando pela lama do outono com suas caixas de cigarros: “Cigarros! Cigarros! Fósforos! Fósforos!" A voz do pequeno vendedor de cigarros anunciando suas mercadorias na esquina das ruas Leszno e Karmelicka ainda ressoa em meus ouvidos. 
 
Onde está você, meu garoto? O que eles fizeram com você? Rolos do filme antes da expulsão inacabado e ainda não reproduzido, “The Singing Ghetto”, gira e desenrola em minha memória. Até os mortos cantaram naquele filme. Eles tamborilavam com os pés inchados enquanto imploravam: “Dinheiro, ah, dinheiro. Dinheiro é a melhor coisa que existe”. 
 
Não havia nenhum poder na terra, nenhuma calamidade que pudesse interferir com a sua presença hostil naquela rua judaica. Até que chegou o Dia das Maldições — um dia que foi inteiramente noite. 
 
Hitler finalmente alcançou sua maior ambição na guerra. E finalmente, seu terrível inimigo foi derrotado e caiu: aquele garotinho na esquina das ruas Leszno e Karmelicka; de Smocza e Nowolipie; da Rua Dzika. As armas das vendedoras ambulantes chegaram a todas as praças do mercado. 
 
Que luxo! Elas pararam de rasgar a própria garganta de manhã à noite. Elas pararam de roubar uma da outra pedaços de pão cor de barro e adulterado com barro. 

 
Os primeiros a serem presos foram os mendigos. Todos os desempregados e sem-teto foram retirados das ruas. Eles foram colocados em carroças na primeira manhã da Deportação e conduzidos pela cidade. Eles choravam amargamente e estendiam as mãos ou as torciam em desespero; ou cobriam o rosto. O mais novo deles gritou: “Mãe, mãe”. E, de fato, viam-se mulheres correndo pelos dois lados das carroças, os xales escorregando da cabeça enquanto estendiam as mãos para os filhos, aqueles jovens contrabandistas que haviam sido capturados ao longo dos muros. Em outras carroças, os cativos pareciam condenados à morte que, nas antigas gravuras em cobre, aparecem sendo conduzidos ao cadafalso em mortalhas. 
 
Os protestos cessaram na cidade e houve silêncio. Mais tarde, não se ouviam gritos. Exceto quando as mulheres eram capturadas e carregadas nas carroças e era possível ouvir um silvo de respiração suspensa, como o das aves ao serem carregadas para o matadouro. 
 
Os homens, em sua maioria, ficaram em silêncio. Até as crianças ficaram tão petrificadas que raramente choravam. 

 
Os mendigos foram presos e não se cantou mais no gueto. Só ouvi cantos apenas uma vez depois do início das deportações. Uma melodia monótona das estepes cantada por uma mendiga de treze anos. Durante um período de duas semanas, ela costumava sair de seu esconderijo à noite, quando terminavam as batidas do dia. A cada dia, parecendo mais magra e mais pálida e com uma auréola de aflição cada vez mais brilhante em volta da cabeça, ela tomava seu lugar habitual atrás de uma casa na rua Leszno e começava o gorjeio com o qual ganhava seu pedaço de pão... 
 
Os homens, em sua maioria, ficaram em silêncio. Até as crianças ficaram tão petrificadas que raramente choravam. 

 
Basta, basta... Tenho que parar de escrever. 
 
Não, não, não consigo parar. Lembro-me de outra garota de quatorze anos. A filha órfã do meu irmão em Lemberg, que eu carregava nos braços como se fosse minha própria filha. Lussye! E outra Lussye, mais velha que ela, uma das minhas primas que estudava em Lemberg e que era como uma irmã para mim. E Lonye, a viúva do meu irmão, mãe da primeira Lussye, e Mundek, um filho mais velho dela, que considero meu próprio filho desde que ficou órfão. E outra menina da família, uma pianista de treze anos, minha priminha talentosa, Yossima. 
 
E todos os parentes da minha mãe na aldeia distante de Podolia: tia Bayle; tia Tsirl; tio Yassye; tia Dortsye, o ideal de beleza da minha infância. 
 
Tenho tantos nomes para recordar, como posso omitir algum deles, já que quase todos foram para Bełżec e Treblinka ou foram mortos no local em Łanowce e Ozieran, em Czortków e em Mielnica. Em Krzywićze e alhures. 
 
Absurdo! Não pronunciarei mais nomes. Eles são todos meus, todos parentes. Todos os que foram mortos. Que não existem mais. Os que conheci e amei marcam a minha memória, que agora comparo a um cemitério. Único cemitério onde ainda existem indícios de que já viveram neste mundo. 
 
Sinto — e sei — que eles querem que seja assim. Cada dia me lembro de mais um dos que se foram. 
 
E quando chego ao fim da lista, segmento por segmento somado aos segmentos da minha vida atual na cidade, recomeço desde o início, e sempre com tristeza. Cada um deles me machuca individualmente, da mesma forma que sentimos dor quando partes do corpo são removidas cirurgicamente. Quando os nervos sobrevivendo no sistema nervoso sinalizam a presença de todos os dedos das mãos ou pés amputados. 
 
Não faz muito tempo, vi uma mulher no bonde, com a cabeça jogada para trás, falando sozinha. Achei que ela estava bêbada ou maluca. Acontece que ela era uma mãe que acabara de receber a notícia de que seu filho, que havia sido preso na rua, havia sido baleado. 
 
 “Minha criança”, ela gaguejou, sem prestar atenção às outras pessoas no bonde, “meu filho. Meu lindo, amado filho.” 
 
Eu também gostaria de falar comigo mesma como uma louca ou bêbada, como fez aquela mulher do Livro dos Juízes que derramou seu coração ao Senhor e que Eli expulsou do Templo. 
 
Não posso gemer nem chorar. Não posso chamar atenção para mim mesma na rua. 
 
E preciso gemer; preciso chorar. Não quatro vezes por ano. Sinto necessidade de recitar Yizkor ² quatro vezes ao dia. 

 
Yizkor elohim es nishmas avi mori ve’imi morasi... Lembre-se, ó Senhor, das almas daqueles que partiram deste mundo horrivelmente, sofrendo mortes estranhas antes da hora. E agora, de repente, tenho a impressão de me ver como uma criança em pé num banco atrás da minha mãe, que, juntamente com a minha avó e as minhas tias, está a rezar diante da parede leste da seção feminina da sinagoga em Łanowce. Fico na ponta dos pés olhando através das vidraças para a congregação na sinagoga que meu avô construiu. E justamente então o leitor da Torá, Meyer-Itsik de Hersh, sobe ao pódio e clama com uma voz poderosa de modo a ser ouvido por homens e mulheres em ambos os lados da divisória e pelos órfãos, meninos e meninas da comunidade, que já estamos de pé, esperando por este anúncio: “Recitamos Yizkor”. 
 
YIZKOR, Memorial prayers
 
Chegou o momento solene em que recordamos aqueles que já não estão conosco. Mesmo aqueles que terminaram suas orações chegam neste momento para ficar com todos os outros enquanto esperam pelas palavras: “Recitamos Yizkor”. 
 
E aquele que sobreviveu e vive e que se aproxima deste lugar, que incline a cabeça e, com o coração angustiado, ouça essas palavras e lembre-se de seus nomes como eu me lembrei dos meus — os nomes daqueles que foram destruídos. 
 
No final da oração em que cada um insere os nomes dos membros da sua família, há uma passagem recitada para aqueles que não têm quem se lembre deles e que, em vários momentos, tiveram mortes violentas por serem judeus. E são pessoas como essas que agora são a maioria. 
 
Aryan Side of Warsaw, novembro de 1943.
 
N.B.: Reimpresso de The Literature of Destruction: Jewish Responses to Catastrophe, editado por David G. Roskies com permissão da University of Nebraska Press. Copyright © 1989 da Sociedade de Publicação Judaica. 
 

 
II. NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga
 
 
¹  “Dias de Temor” são os 10 dias que seguem o Ano Novo, dedicados ao arrependimento, auto-exame e compromisso com uma mudança de hábitos, durante os quais não se deve dar ou frequentar festas.  
 
² Yizkor” (do hebraico "que Ele se lembre") é o serviço de finados executado no judaísmo quatro vezes ao ano — em Yom Kippur, Pêssach, Shavuót e Sucót (em Shemini Atzeret ) — após a leitura da Torá na sinagoga, como lembrança de familiares mais próximos falecidos. Consiste de rezas pelos mortos e a recitação da oração El Malé Rachamim.


sábado, 27 de abril de 2024

A Linguagem dos Sinos de São João del-Rei


Por João Paulo Guimarães * e pesquisador Aluízio José Viegas
 
Transcrevemos matéria publicada no JE-Jornal dos Estudantes, edição nº 17 de 31/03/1987, p. 11.
Sino da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar - Crédito: foto do portal São João del-Rei Transparente - Link: https://saojoaodelreitransparente.com.br/works/view/249

 

Os Sinos que Falam 

São João del-Rei, século XVIII. Começava na cidade um hábito trazido de Portugal, já adquirido em diversas cidades do Brasil; um verdadeiro noticiário ativo durante 24 horas sem interrupção, uma comunicação feita através de sons, de variados toques, através de uma linguagem falada por sinos. 

Atualmente este hábito virou tradição e orgulho de São João del-Rei, única cidade no Brasil onde os sinos ainda são ouvidos de dia e de noite com tantas variedades de toques. Muitos desses toques vieram de Portugal trazidos pelos colonos; em 1740 foi trazido um toque do Vaticano criado pelo Papa Bento XIV e colocado em vigor pelo Bispo de Mariana em 1757, o toque que relembra a morte do Senhor, toque ainda executado nos dias de hoje e muitos outros toques foram criados pelos próprios sineiros. 

Uma tradição passada de pai para filho. Através das gerações os sineiros ainda pequenos iam para as torres observar, executar seus primeiros toques e aprender a amar os sinos para mais tarde, passar tudo isso fortificado pela experiência aos seus filhos, a outros pequeninos, aos "moleques da torre". 

Uma tradição que virou arte. A arte de fazer os sinos falarem, uma arte aprendida sem escola, sem papel. Uma arte que está para sempre gravada na alma de São João del-Rei.

 


 

Sinos. Cada um com um nome, uma história, um som. Vidas sustentadas por vidas que se doam. Sorrisos e lágrimas que surgem graças a braços que executam uma linguagem feita através de variadas modalidades de toques. 
Dentre estas modalidades destacam-se o dobre simples, que ocorre quando o sino cai pelo lado em que está encostado o badalo, ocasionando uma só pancada em cada movimento, o dobre duplo, quando o sino cai pelo lado contrário ao que está encostado o badalo provocando duas pancadas em cada movimento e os repiques, que são o movimento feito somente pelo bater dos badalos, com o sino parado.
 
Entendendo as modalidades dos toques, podemos entender a Linguagem dos sinos, abaixo registradas:
 
1) AVISO DE MISSAS 
a) 1/2 hora e 15 minutos antes da hora marcada para a celebração, é dado o sinal no sino pequeno, em pancadas seguidas. No final do toque de entrada, as pancadas espaçadas indicam quem será o celebrante: 
3 pancadas - o coadjutor 
4 pancadas - o vigário 
5 pancadas - o bispo 
7 pancadas - o arcebispo metropolitano 
b) Se for missa festiva, repique depois da entrada e, no final, a indicação do celebrante. Se houver sermão em missa cantada, há dobre do sino grande. 
c) Na hora da consagração, 1 pancada em cada sino; 
d) na hora da elevação, depois da consagração, repique ligeiro; 
e) no final da missa, repique; 
f) havendo Bênção do Santíssimo, em qualquer situação, haverá repique ligeiro e baixo durante a Bênção.
 
2) Em qualquer ato haverá o toque de "entrada" referido na letra "a" (18 ou mais pancadas). 
 
3) NOVENAS E MÊS DE MAIO 
a) repique às 12, 15 e 18 horas. Terminado o ato, repique e depois o toque de "Almas", no sino grande (9 pancadas separadas). 
 
4) CHAMADAS DE IRMÃOS 
a) para enterros ou procissões: 18 pancadas ou mais no sino grande; 
b) para eleições ou definitórios - 9 pancadas no sino grande 1 hora, 30 minutos e 15 minutos antes do horário estabelecido. 
 
5) FESTA EM HOMENAGEM AOS SANTOS 
a) na véspera de festa de um santo que vai ser homenageado: repique às 20 horas, no sino grande, com dobre na igreja onde vai ser realizada a festa. 
 
6) FINADOS 
a) Na véspera de "finados", às 12 e 20 horas, dobre de defuntos (1 pancada em todos os sinos); 
b) no dia de "finados", dobre duplo na hora da celebração da Missa; 
c) ao meio-dia, 15 e 18 horas, dobre em todas as igrejas; 
d) nas vésperas de aniversários dos mortos de cada Ordem ou Irmandade, haverá dobre de defuntos (duas pancadas) às 20 horas; e) na hora da Missa e do Libera me, dobre. 
 
7) ENTERRO DE IRMÃOS 
a) homens - 3 dobres e 1 pancada; 
b) mulheres - 2 dobres e 1 pancada; 
c) crianças (de menos de sete anos) - repique festivo na hora do enterro; 
d) Se o homem foi mesário, dobre na hora em que se tomou conhecimento do falecimento e na hora do enterro (3 dobres duplos); 
e) se a mulher foi mesário, idem, idem, dois dobres duplos; 
f) se o irmão prestou grandes serviços à Ordem ou Irmandade, dobre de 1 em 1 hora, a critério da Mesa; g) falecimento do Papa, dobre de hora em hora em todas as igrejas; 
h) idem do Bispo, dobres de 3 em 3 horas; 
i) idem do vigário, dobres de 4 em 4 horas; 
j) idem de Padre, 5 dobres comuns. 
NOTA: os dobres de Papa, Bispo, Vigário e Padre são feitos em sentido contrário, ou seja, começam pelo sino grande, seguem pelo médio e terminam no pequeno. 
 
8) AGONIA 
a) no sino da Ordem ou Irmandade onde o moribundo é irmão: 9 pancadas no sino médio, bem espaçadas de 15 em 15 minutos (Praticamente não se usa mais este toque hoje em dia). 
 
9) INCÊNDIO 
a) rebate - pancadas no sino grande, seguido do médio, ligeiras com pequenos intervalos. 
 
10) NATAL 
a) dia 24, às 22 horas, dobres. Às 23 e 23h 30 min, entrada. Finda a Missa, repique.
 
11) PASSAGEM DE ANO 
a) Havendo Missa, obedece-se às mesmas disposições do dia de Natal. 
 
12) QUARESMA 
a) na igreja onde houver "via-sacra", dobre às 15 e 18 horas, a pancada no sino médio; 
b) durante a "via-sacra", uma pancada no sino médio cada vez que mudar de estação; 
c) na décima estação, três dobres, indicando a morte de Cristo. 
 
13) FESTA DE PASSOS 
a) na sexta-feira das Dores, às 5h 15 min, matinas (9 pancadas nos sinos grandes dos Passos e do Carmo, seguidas de dobres); ao meio-dia, 15 e 18 horas na hora da procissão, dobre; no momento em que a imagem sai da igreja, o sino dobra mais rapidamente; 
b) no sábado de "Passos", repetem-se os dobres, porém os sinos de São Francisco substituem os do Carmo que ficam em silêncio; 
c) no domingo do "Encontro", repete-se tudo nas três igrejas (Pilar, Carmo e São Francisco); 
d) ao meio-dia, dobre nas três igrejas; 
e) às 16 h 30 min, toque de chamada de irmãos, para a procissão das 17 h; 
f) na saída da procissão, dobres nas igrejas do Carmo e São Francisco; 
g) quando a procissão de N. Sr. dos Passos atinge o "passo" da rua da Prata, os dobre param. Terminados o Responsório e o Moteto, reiniciam os dobres até que o cortejo atinga a Ponte do Rosário, descaindo; volta a dobrar, a passar pela igreja do Rosário, descaindo; volta a dobrar, a passar pela igreja do Rosário, até o Passo daquela praça; terminada a cerimônia, dobres até atingir a Catedral. Nesse ponto, entram os sinos dos Passos e Sacramento que tocam até a procissão passar ao lado da Catedral. Ao atingir a Praça Barão de Também, entra o sino das Mercês que toca até a chegada ao Passo daquela praça. Terminado o "Encontro"(sermão do Encontro), toca novamente até chegar ao Largo da Cruz, entra em funcionamento o sino do Carmo, até que a procissão atinja o "Passo" da Rua Direita. Terminado o ato ali, toca novamente até as proximidades do sobradão de D. Amélia Ferreira, quando descai para a entrada dos sinos dos Passos e Sacramento, até a entrada da procissão. 
 
14) SEMANA SANTA 
a) Na quinta-feira santa, depois do Glória da Missa da Instituição da Eucaristia até o Glória da Ressurreição, nenhum sino toca, seja qual for o motivo; 
b) na Ressurreição tocam os sinos de todas as igrejas (toques festivos). 
 
15) FESTA DA BOA MORTE 
a) no final da última novena (13 de agosto), toque de matinas do trânsito de Nossa Senhora (repiques: SENHORA É MORTA), esse repique é usado até no Glória de 15 de agosto (Assunção de Nossa Senhora) com repiques em todos os sinos da Catedral. 
 
16) TOQUE DO PARTO 
a) 9 pancadas no sino médio das Mercês de 1/2 em 1/2 hora até a delivrance (este toque não é mais usado atualmente). 
 
 17) ANGELUS 
a) 9 pancadas no sino do Sacramento às 18 h diariamente. 
 
18) ALMAS 
a) 9 pancadas no sino das Almas às 20 h diariamente. 
 
19) AVE-MARIA 
a) 9 pancadas no sino das Almas, às 21 h, espantadamente. NOTA: da Ressurreição até Corpus Christi, os toques de Angelus, Almas e Ave-Maria serão dados pelos sinos do Sacramento (pequeno e grande), com os dois badalos de uma vez, nos devidos horários. 
 
20) CHAMADA DE SINEIRO E SACRISTÃO 
a) 3 pancadas no sino pequeno, espaçadas, diversas vezes até ser atendido. 
 
21) RELEMBRANDO A MORTE DO SENHOR 
a) Um dos dobres que tem desafiado a ação do tempo, é o que nos faz lembrar a morte do Senhor: todas as sextas-feiras, às 3 horas da tarde, o sino dos Passos traz à lembrança a hora da morte de Jesus. 
 
* Editor do JE-Jornal dos Estudantes, que assim se manifestou a respeito da colaboração do pesquisador Aluízio José Viegas: "Agradecemos a participação de Aluízio Viegas, sem o qual seria impossível a realização desta matéria."
 
Página 11 do JE-Jornal dos Estudantes, edição nº 17 de 31/03/1987.

 
 
VIDEOGRAFIA 
 
 
TV DelRei: A Linguagem dos Sinos de São João del-Rei
 
________: Colocando o sino a pique em São João del-Rei

quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de Abril para continuar


Editorial do PÚBLICO por David Pontes
 
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da quinta-feira, de 25/04/2024, na coluna Editorial, p. 4.

 

25 de ABRIL-50 ANOS-O caminho da liberdade

 

Capitão do Exército Português que liderou as forças revolucionárias durante a Revolução de 25 de Abril de 1974 ou Revolução dos Cravos, que marcou o final da ditadura em Portugal. Fotografado no Largo do Carmo (Lisboa).

Propaganda da Revolução dos Cravos


Este deveria ser um editorial muito fácil de escrever: 50 anos do 25 de Abril. Evocar aqueles rostos jovens dos capitães que não queriam ir à guerra e foram pelas cidades dizer que era precisa acabar “com o estado a que chegámos”. Soldados pela esperança, a descobrirem que havia um povo farto de esperar, cansado de calar. Juntos na rua terminaram com o silêncio, cantaram canções novas, descobriram como chamar sua a liberdade. 

Quantos povos poderão celebrar a data fundacional da sua democracia com uma revolução feita quase sem sangue, de cravo na ponta da arma, nenhuma vontade de vingança e com o fim de uma guerra que fez brotar múltiplos novos países? Como não nos emocionarmos com o momento em que metade de nós, as mulheres, pela primeira vez na centenária história do país, pôde sonhar em ter os mesmos direitos da outra metade? Abraçar quem estava proibido de voltar a casa, abraçar o mundo, poder ler, ver, sorrir, falar sem ter de olhar por cima do ombro. 

Tantas coisas num só dia há 50 anos, que podia ser só mesmo agradecer, com um obrigado imenso, a quem nos libertou e a todos os que antes deles sofreram por sonhar, pagaram por ousar, morreram a tentar mudar. Muito, muito obrigado e editorial acabado. 

Só que são mesmo 50 anos e isso é muito, mesmo para um país de tempo longo como o nosso, e por essa razão o agradecimento não pode acabar logo ali, nesse “dia inicial inteiro e limpo”. Porque em 25 de Abril de 1974 não tínhamos só 2162 funcionários de polícia política e 20 mil informadores, tínhamos também uma guerra longínqua a devorar a juventude. Porque nos envergonhávamos com uma taxa de mortalidade infantil das mais elevadas da Europa, com quase um quinto da população analfabeta e em que só 4,2% frequentavam o ensino superior. Vivíamos em casas em que menos de metade tinha água canalizada e só 60% ligação à rede de esgotos. Éramos pobres, sujos e mal-educados e continuávamos com rota traçada para continuar pobres, ainda focados em industrializar o país, quando pelo continente já se falava em desindustrializar. 

É certo que em muitos parâmetros ainda somos pobres, mas a abertura política e a abertura à Europa, que o 25 de Abril possibilitou, fizeram com que nos tornássemos um país tão bom para viver que até quem nasce em sítios bem mais ricos por aqui quer ficar. Sim, claro que é porque somos baratos, mas também porque nestes 50 anos conquistámos tanta coisa, na saúde, na educação, no apoio social, na cultura, nas infra-estruturas, que até nos damos ao luxo de achar que não é nada, que tudo está num caos e pouco se aproveita. Um engano imenso que um editorial pode facilmente rebater com os números que não enganam, mesmo que haja quem não os queira ler. Um editorial de conforto, por termos chegado até este lugar, a partir do qual ainda falta muito, mas de onde é possível ver o tanto que já se conseguiu. 

Mas este não está talhado para ser um editorial fácil. Porque como nunca nestes 50 anos de crescimento este corpo esteve tão ameaçado. Há um cancro a minar-lhe as entranhas, capaz de dizer com desfaçatez que “no tempo da outra senhora é que era bom”, cuspindo na razão e na cara de todos os que lutaram e trabalharam para chegar até aqui. Capaz de afirmar, sentado na vice-presidência da Assembleia da República, que “a liberdade não existe de facto, existem narrativas, continua a existir censura (...), continua a existir um Estado ocupado, não vivemos em liberdade e é isso que temos de reconquistar, essa liberdade autêntica que não nos chegou com o 25 de Abril”. 

“Reconquistar”? O que precisamos de reconquistar é algum sentido de decência e de vergonha que faça regressar a mentira ao buraco obscuro de onde nunca devia ter saído. Enquanto não o fizermos, a democracia a que nos conduziu o 25 de Abril está sob ameaça, não só pelas ideias que defendem os que a atacam, mas pelas ferramentas que usam para o fazer. Não é possível construir uma sociedade democrática e saudável sem verdade. É por isso que a equipa deste jornal continua a lutar diariamente com maior empenho, porque sentimos que nunca, como hoje, a mentira teve uma perna longa e nunca, como hoje, foi capaz de dividir para reinar no descontentamento. 

Este podia ser um editorial fácil, cheio de gratidão e de regozijo. Mas nos tempos que vivemos não basta, tem de ser também um editorial de luta. Hoje, quando desfilarmos pelas ruas que ainda continuam a ser de todos, gozando da liberdade autêntica que nos chegou com a Revolução dos Cravos, vamos ter de juntar ao obrigado uma jura de que não vamos deixar que nos interrompam o 25 de Abril. Ele veio para sempre e tem de continuar.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O livro sobre Kubrick que o próprio proibiu foi finalmente editado


Por PÚBLICO
 
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da segunda-feira, de 22/04/2024, na coluna Cultura, p. 29.
The Magic Eye: The Cinema of Stanley Kubrick, livro de Neil Hornick com uma “visão imparcial” sobre o trabalho do realizador, esteve mais de meio século na gaveta.

No dia 30 de Abril, a Sticking Place Books, editora nova-iorquina dedicada à publicação de livros sobre cinema, lança The Magic Eye: The Cinema of Stanley Kubrick, livro sobre a obra de um dos realizadores fundamentais do século XX, autor de filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971), The Shining ¹ (1980) ou Nascido Para Matar (1987). 

A obra, escrita por Neil Hornick, começou a ser pensada há mais de meio século, a propósito de uma encomenda feita ao autor pela editora The Tantivy Press. Mas viria a ser barrada por Kubrick, após ter lido uma versão inicial do manuscrito. 

A Tantivy Press assinara um acordo com o cineasta, prometendo que não publicaria nada sem os conteúdos da obra merecerem a sua aprovação. Segundo a explicação dada agora ao diário The Guardian por Hornick, que hoje tem 84 anos, Kubrick terá ficado desagradado, por exemplo, com o facto de o livro ter “um sumário das coisas boas” de cada um dos seus filmes “seguido de um sumário das coisas más”. Na visão do cineasta, estes apontamentos negativos sobrepunham-se sempre aos mais elogiosos, “devido à forma excessivamente enfática” como eram apresentados. 

Kubrick terá dito que as críticas “inaceitáveis” ao seu trabalho constituíam um terço do manuscrito, um texto com cerca de 70 mil palavras. Hornick foi duro para com Lolita (1962), adaptação do romance homónimo de Vladimir Nabokov, publicado sete anos antes. “No entanto, expressei grande admiração pela maioria dos seus outros filmes”, diz o autor ao The Guardian

Filippo Ulivieri, escritor italiano e especialista na obra de Kubrick, disse ser “bastante chocante ler a correspondência entre os advogados do realizador e a editora de Neil”. “Kubrick queria um livro que elogiasse os seus filmes e o livro de Neil não era assim. Os seus filmes até então haviam sido avaliados positivamente, mas alguns críticos, especialmente em Nova Iorque, tinham feito apreciações mais negativas. Então ele precisava de um livro que fosse completamente positivo. The Magic Eye, continua Ulivieri, “oferece uma visão muito precisa e imparcial dos filmes de Kubrick”. Público

 

NOTA EXPLICATIVA

 

¹  Embora em Portugal tenha sido mantido o título original em inglês, no Brasil saiu como O Iluminado.  

terça-feira, 16 de abril de 2024

OBRAS DE 30 ARTISTAS HÚNGAROS SOBREVIVENTES AO HOLOCAUSTO SÃO EXPOSTAS EM BUDAPESTE


Por EURONEWS
 
As recordações desconhecidas do Holocausto: a Hungria está inaugurando nesta data uma nova exposição de 30 artistas húngaros, que sobreviveram ao Holocausto, ilustraram as sevícias que passaram nos guetos, bem como nos campos de concentração e de trabalhos forçados. A maioria das obras foi realizada entre 1944 e 1947.
Desde 2000, o dia 16 de abril é o dia dedicado à memória das vítimas do Holocausto na Hungria. Há 80 anos, em 1944, membros da administração húngara e da polícia húngara, que colaboraram com os ocupantes nazis, começaram a criar neste dia os primeiros guetos e campos de concentração na região da Transcarpácia.

Uma supervisora (Aufseherin) alemã corta os cabelos de uma judia horrorizada

Mulheres judias provavelmente do campo de Birkenau em fins de 1943, quando Dr. Mengele era o médico-chefe do setor das mulheres. Cerca de 7.000 a 20.000 mulheres sofriam de tifo e ele propôs uma "solução radical" para parar a epidemia.

Enfileiradas, as mulheres judias são encaminhadas à câmara de gás por um oficial alemão

A Galeria Nacional Húngara de Budapeste está inaugurando nesta terça-feira (16/04/2024) uma exposição especial de memórias pessoais do Holocausto de artistas húngaros que sobreviveram ao referido genocídio. Nas paredes da galeria ficarão expostas as obras de uns 30 artistas na sua maioria desconhecidos até à data, que foram perseguidos pelos fascistas. 
 
Algumas obras foram feitas nos guetos, campos de trabalhos forçados e de concentração, enquanto outras foram realizadas depois que seus criadores retornaram vivos à casa: o desenho era para eles uma terapia. 
 
As obras são figurativas, quase como desenhos em quadrinhos, não são abstratas, mas sim reflexivas em seu enfoque da experiência do Holocausto, afirma Zsófia Farkas, curadora da exposição. Aqui também poderão ser vistas obras provenientes do estrangeiro, de Israel e da Alemanha. Depois da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas deixaram a Hungria e o seu legado artístico ainda hoje se encontra em Israel e penso que é muito importante que possa ser visto aqui na Hungria, acrescentou.
 
As obras se tornaram memórias 
 
Com o passar do tempo, à medida que as memórias dos sobreviventes se desvanecem, estas obras tornam-se também recordações extraordinárias, sublinham os organizadores. 
 
As obras, majoritariamente realizadas entre 1944 e 1947, refutam a afirmação de que falar sobre o Holocausto era tabu depois da guerra. 
 
A exposição estará aberta até 21 de julho. 
 
 

II. AGRADECIMENTO
 
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das imagens utilizadas neste texto.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

A VIDA TROPICAL DE JOSEF MENGELE, o “Anjo da Morte” de Auschwitz


Por António Araújo *
 
Transcrevemos com a devida vênia do suplemento de artes ÍPSILON do jornal PÚBLICO, edição da sexta-feira, de 12/04/2024, p. 12.
Baviera Tropical, da jornalista brasileira Betina Anton, conta a história do médico nazi mais procurado do mundo, que viveu quase duas décadas no Brasil sem ser capturado.

 
 “Posso afirmar categoricamente que este homem está bem morto”, disse o delegado Romeu Tuma, com gélida ironia, aos jornalistas que, naquela quinta-feira, 6 de Junho de 1985, o acompanharam ao Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, a 25 quilómetros do centro de São Paulo. 
 
Ao seu lado, na vala aberta, um esqueleto desfeito em pedaços, que os coveiros iam retirando osso a osso, começando pelo crânio, logo entregue ao dr. José António de Mello, vice-director do Instituto Médico-Legal de São Paulo, que o exibiu triunfalmente aos repórteres, como se fosse um troféu de caça, que em parte o era. Por perto, uma mulher de ascendência alemã, Liselotte Bossert, que durante anos dera guarida ao criminoso nazi mais procurado do mundo, Josef Rudolf Mengele, apelidado “Anjo da Morte” pelos prisioneiros de Auschwitz. 
 
Ao contrário do que frequentemente se diz, Mengele não era o médico-chefe de Auschwitz-Birkenau, cabendo esse título sinistro a Eduard Wirths, que se suicidou por enforcamento em Setembro de 1945, após ter sido capturado pelos Aliados. Contudo, é Mengele que sempre se recorda como símbolo maior das atrocidades perpetradas pelos médicos que trabalhavam nos campos de concentração e que, à chegada dos comboios, seleccionavam os que deveriam ir de imediato para as câmaras de gás e os que viam a morte adiada, enquanto eram sujeitos a abomináveis experiências pseudocientíficas que ora os matavam em lenta agonia, ora lhes deixavam marcas e traumas para o resto dos dias. 
 
Não sendo uma biografia de Josef Mengele, até porque esse trabalho já foi feito por vários autores, com destaque para Gerald Posner e John Ware (Mengele: The Complete Story, 2000), mas também, na esteira destes, por Anna Revell (Josef Mengele: Angel of Death, 2018) ou por David Marwell (Mengele: Unmasking the “Angel of Death”, 2020), Baviera Tropical, da jornalista brasileira Betina Anton, é uma trepidante narrativa da fuga e da estada do criminoso nazi no Brasil, onde pôde esconder-se e sobreviver incólume durante duas décadas, até morrer afogado, em 7 de Fevereiro de 1979, após ter sido vítima de um AVC enquanto se banhava nas águas cálidas da praia da Enseada, em Bertioga, no litoral de São Paulo. 
 
Uma sorte dos diabos 
 
A ida para a América do Sul não se deveu ao apoio da mítica Odessa, organização que nunca terá existido, segundo a autora, mas das famosas ratlines, as redes de fuga que, por vezes com a cumplicidade do Vaticano, permitiram que muitos nazis escapassem à acção da justiça terrena. Mengele e tantos outros beneficiaram do amparo das ditaduras sul-americanas da época — a de Stroessner no Paraguai, a de Perón na Argentina, a do Brasil dos militares — e tiveram o discreto auxílio, anos a fio, dos familiares que ficaram na Alemanha ou na Áustria (o que, no caso de Mengele, vindo de gente de posses, donos de uma empresa de máquinas agrícolas, foi um apoio precioso). Mais decisivamente ainda, contaram com as comunidades de língua alemã radicadas nos trópicos ou, melhor dizendo, com alguns membros dessas comunidades, como Wolfram Bossert e sua mulher, Liselotte. 
 
Foi esta, fiel até ao fim, que os jornalistas surpreenderam no Cemitério do Rosário. E, por incrível que pareça, uma das mais remotas memórias de infância de Betina Anton, a autora de Baviera Tropical, é a de “Tante Liselotte” (“Tia Liselotte”), sua querida professora numa escola em Santo Amaro, São Paulo. Betina, também ela uma mulher de ascendência germânica, só soube muito mais tarde, como é evidente, que, durante dez anos, a sua ex-professora protegeu Josef Mengele contra tudo e todos, recebeu-o em sua casa, levou-o a passear à praia aos fins-de-semana. Depois, quando ele morreu, foi Liselotte que o enterrou — e como ele queria, com os braços colocados ao longo do tronco, como um guerreiro em sentido. Mesmo correndo riscos sérios, nunca o denunciou à polícia e, mais ainda, resistiu às ofertas milionárias que as organizações mundiais judaicas e os “caçadores de nazis”, com Simon Wiesenthal à cabeça, faziam em troca de informações sobre o paradeiro de um dos fugitivos mais procurados do planeta. 
 
Mengele teve também uma sorte dos diabos — e a astúcia que faltou a outros, como Adolf Eichmann, cuja captura num subúrbio de Buenos Aires, em Maio de 1960, e subsequente julgamento em Jerusalém, em muito perturbaram o “Anjo da Morte”, que passou a segunda metade da sua existência em permanente sobressalto. O livro mostra também — e esse é um dos seus pontos mais interessantes — que o médico nazi acabou por beneficiar da indecisão dos seus captores e, em especial, da oscilação da política de Israel em matéria de ex-criminosos de guerra, cuja captura ora foi assumida como prioridade número um dos serviços secretos, ora foi relegada para segundo plano em face de outras e mais urgentes ameaças, como as da guerra do Yom Kippur (curiosamente, depois de terem descurado a sua descoberta, os israelitas insistiriam, contra o parecer dos investigadores brasileiros, alemães e norte-americanos, que Mengele não só não morrera no Brasil como continuava a residir tranquilamente no Paraguai). A Alemanha, outro actor decisivo nesta trama, só despertou tardiamente para o imperativo de capturar e julgar os criminosos do III Reich; em bom rigor, as autoridades alemãs mobilizaram-se apenas em 1963, com os “julgamentos de Frankfurt-Auschwitz”, e, mesmo assim, nem sempre com especial empenho, como o mostrara o exemplo de Fritz Bauer, o procurador de Frankfurt que, em meados dos anos 50, e ante a passividade dos magistrados e das polícias do seu país, acabou por transmitir ao director da Mossad, Isser Harel, informações cruciais que permitiram a localização de Adolf Eichmann e o seu sequestro pelos israelitas. 
 
Não só nada disto é novo como tem sido abundantemente tratado em livros e documentários, filmes e séries de televisão, inclusive em obras romanceadas, como O Desaparecimento de Josef Mengele, de Oliver Guez (Planeta, 2018). Entre nós, e sobre a caça aos nazis, dispúnhamos já, entre outros, de Eu Persegui Eichmann, de 1972 (Círculo de Leitores), e Os Assassinos Entre Nós, de 1974 (Editores Associados), ambos da autoria de Simon Wiesenthal, um homem que acabou por ter um papel negativo nas buscas por Josef Mengele, ao insistir vezes sem conta que ele se encontrava no Paraguai, e não no Brasil (infelizmente, não foi traduzida entre nós a sua biografia da autoria de Tom Segev, Simon Wiesenthal: The Life and Legends, de 2010, nem sequer The Wiesenthal File, de 1993, da autoria de Alan Levy, igualmente interessante). Além de livros sobre ex-nazis, os horrores da medicina nazi foram tratados em Os Médicos da Morte, de Philipe Aziz, de 2019 (Livros do Desassossego), havendo também uma obra, Quando a Medicina Enlouqueceu — A Bioética e o Holocausto, de Arthur L. Caplan (Instituto Piaget, 1997), que discute a questão de saber se será ético utilizar, nos nossos dias, os dados recolhidos nos campos de morte e o produto das experiências aí realizadas. Infelizmente, permanecem por traduzir as duas grandes obras sobre a medicina nazi, o clássico de Robert Jay Lifton, The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide, de 1986, e Murderous Science: Elimination by Scientific Selection of Jews, Gypsies, and Others, Germany 1933-1945, de Benno Muller-Hill, 1988 (citamos a edição inglesa, mas há tradução brasileira). Menção ainda, como é evidente, para a investigação de José Pedro Castanheira sobre o médico português Ayres de Azevedo, primeiro saída no Expresso e, mais tarde, em livro: Um Português no Coração da Alemanha Nazi, de 2010. 
 

 
Em face desta esmagadora bibliografia, Baviera Tropical consegue surpreender, trazendo factos novos e desconhecidos, fruto do notável labor de Betina Anton, que percorreu arquivos de todo o mundo e conseguiu entrevistar alguns dos protagonistas-chave desta saga, como Liselotte Bossert, o já falecido Rafi Eitan, chefe do comando israelita que raptou Eichmann, Yigal Haychuk, o agente brasileiro da Mossad que participou nas frustradas operações de captura de Mengele, diversas vítimas deste, com destaque para Eva Mozes Kor, também já falecida, polícias, médicos, investigadores e vários membros da comunidade alemã de São Paulo, que falaram sob anonimato. O seu trabalho de muitos anos permitiu-lhe ainda, e entre outras descobertas, aceder a quase uma centena de cartas escritas por e para Josef Mengele, cujas transcrições não deixam de nos arrepiar, ao revelarem o quotidiano do monstro, mas também a sua enorme capacidade de ardil e dissimulação, deixando entrever o que já adivinhávamos: uma personalidade transviada, incapaz de empatia com os outros, recheada de tiques autoritários, barbaramente racista e desumana. 
 
No fundo, e em síntese, Betina Anton teve uma intuição certeira, ao perceber que seria inútil escrever mais uma biografia de Josef Mengele, sendo muito mais inteligente — e produtivo — explorar os seus três grandes trunfos: a ascendência germânica, o acesso à comunidade alemã de São Paulo, onde cresceu, e o facto de ter nascido e de viver no país que Josef Mengele escolheu para sua última morada (aliás, a dois passos de Mengele, o qual, a convite de Liselotte Bossert, chegou a visitar a escola que Betina frequentava...) 
 
O resultado é um livro apaixonante, escrito como um thriller, segundo a sua autora. Terminada a leitura, a sensação que fica, porém, é de desapontamento e injustiça. Condenado eternamente pelo juízo da História, Josef Rudolf Mengele conseguiu furtar-se ao julgamento dos homens; e, pior ainda, o rasto de horror e trevas que deixou parece estar hoje esquecido, tantos são os que reclamam o seu macabro legado, ou que o relativizam e menorizam. Por isso, até por isso, um livro muito importante.
 
* António Araújo é historiador, crítico literário, responsável pela escolha dos autores da colecção retratos da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Também é conselheiro do presidente da República. É licenciado e mestre em Direito e doutor em História. Publicou já vários livros sobre direito e história contemporânea, recebendo destaque: Da direita à Esquerda-Cultura e sociedade em Portugal, dos anos 80 à actualidade.

 
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OBS. do Gerente do Blog de São João del-Rei
À maravilhosa bibliografia fornecida pela resenha de António Araújo, convém adicionar pelo menos mais dois livros de grande utilidade para pesquisadores da vida tropical de Josef Mengele ou de sua biografia. O primeiro consiste num livro pelo dramaturgo e escritor norte-americano Ira Levin (1929-2007), que escreveu um romance de ficção científica intitulado The Boys from Brazil, transportado para as telas de cinema por Franklin J. Schaffner em um thriller de ficção científica de título homônimo, em 1978. O papel de Josef Mengele coube a Gregory Peck, enquanto o caçador de nazistas Ezra Lieberman ficou com o ator Sir Laurence Olivier, e o de Esther Lieberman, com Lili Palmer. Nesse filme que entre nós recebeu o nome de Os Meninos do Brasil e, em Portugal, o de Os Comandos da Morte, o caçador de nazistas Ezra Lieberman segue a pista de criminosos de guerra até a América do Sul, onde descobre e tenta impedir que o plano diabólico do cientista do III Reich Josef Mengele planeja o nascimento do IV Reich através de 94 clones de Adolf Hitler quando este ainda era garoto, utilizando para tal fim várias mães de aluguel em uma clínica brasileira, e enviá-los para serem adotados em diversos países. Claro que só isso não basta, pois era preciso ainda serem criadas diversas variáveis para traçar o perfil psicológico de Hitler. Isso se passa, enquanto Josef Mengele vivia anônimo no Paraguai. 
 
Editora Círculo do Livro, 1985
 
 
O resumo do livro abaixo foi feito pela jornalista Márcia Lira em 24/04/2010 para Menos1naestante, a saber: 
No Brasil da década de 70, um médico nazista reúne um grupo de ex-oficiais de Hitler para cumprirem a missão de matar 94 homens de 65 anos em vários países da Europa. É a primeira fase de um plano para instaurar o IV Reich. Pistas dele chegam ao judeu “caçador de nazistas” Liebermann, que é o Sherlock Holmes da história. Se não quer saber o final do livro, pare por aqui. 
Descobre-se, depois de muitas páginas, que a conspiração envolvia avançada tecnologia molecular: o médico Josef Mengele conseguiu criar crianças-clones e espalhá-las para adoção por famílias “perfeitas” da Europa. Bebês com as características da “raça ariana”, mais especificamente clones de Hitler. Os assassinatos eram mais um cuidado dos conspiradores para reproduzir o ambiente social em que o líder nazista, que perdera o pai quando era adolescente, vivera. 
O mais bizarro foi constatar que o médico Josef Mengele (fotos abaixo), mais conhecido como “O Anjo da Morte”, existiu e realmente executou inúmeras e hediondas experiências com gêmeos judeus prisioneiros de Auschwitz. 
Registros indicam que ele se refugiou no Brasil, mais especificamente no Rio Grande do Sul. No ano passado, o jornalista argentino Jorge Camarasa lançou o polêmico livro O Anjo da Morte na América do Sul, onde explora a passagem do alemão por aqui. O escritor aborda os rumores de que o médico teria, usando nome falso, continuado suas experiências no País, e assim influenciado o alto índice de gêmeos na pequena cidade de Cândido Godói (RS), por volta de 1963. Em vez da média nacional de um parto de gêmeos em 80, na época, o lugar teria um desses para cada cinco partos. 
 
Uma de cada cinco gestações em Cândido Godói resultou em gêmeos - Crédito: The Telegraph

 
Muitos cientistas negam a possibilidade, mas ela é super intrigante. Saiba mais aqui e aqui.
A única coisa que dá para concluir é que esses rumores inspiraram o romance de Ira Levin, o dramaturgo e escritor que faleceu em 2007. A história foi transformada em filme, em 1978. Ele explorou bastante o suspense, sendo inclusive lisonjeado com comparações com Hitchcock. O filme O Bebê de Rosemary é adaptação do livro dele chamado A Semente do Diabo.
 
 
BIBLIOGRAFIA


LIRA, Márcia: "Os Meninos do Brasil", ficção científica nazista de Ira Levin, publicado em 24/04/2010 pelo portal Menos1naestante
Link: https://menos1naestante.com/quando-uma-ficcao-cientifica-nazista-nao-e-bem-uma-ficcao/  👈

THE TELEGRAPH: Nazi angel of death Josef Mengele 'created twin town in Brazil' por Nick Evans em Buenos Aires, em 21/01/2009 


WIKIPEDIA: verbete "The Boys from Brazil"
Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Boys_from_Brazil  👈