sexta-feira, 17 de maio de 2024

QUEM TEM MEDO DE OLHAR PARA TRÁS?


Por LUÍS RIBEIRO *
Transcrevemos com a devida vênia da revista VISÃO, artigo publicado na edição da quinta-feira, de 16/05/2024, nº 1628, pp. 46-52.
Falámos com vários investigadores representantes das comunidades negras em Portugal sobre os impactos do tráfico de escravos e da colonização nas sociedades e as eventuais reparações às ex-colónias. Afinal, por que razão ainda não estamos prontos para começar o debate? E de que reparações estamos a falar?, diz Luís Ribeiro
 

“Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e responsáveis que não foram presos? Há bens que foram saqueados e que não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso.” 

Pagar. Devolver. Reparar. Em poucos segundos, Marcelo Rebelo de Sousa incendiou meio País. A condenação às declarações do Presidente da República, num jantar a 23 de abril com jornalistas estrangeiros, foi ruidosa, sobretudo à direita. 

Três dias depois, Marcelo tentou justificar-se, mas não recuou. Portugal tem “a obrigação de liderar” o processo de reparações, disse, durante a inauguração do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche. Mas isso não significa necessariamente pagar alguma coisa a alguém. “A reparação é pagar uma indemnização? Não, é uma realidade que já começou há 50 anos”, continuou, dando como exemplos o perdão da dívida a países colonizados e o estatuto de mobilidade a cidadãos dos países de língua oficial portuguesa. 

A insistência levou a novas indignações, com o Chega a anunciar, na semana passada, o recurso à bomba atómica: um processo a Marcelo por “traição à pátria”, encetado na Assembleia da República pelo recurso ao Artigo 130º da Constituição, com vista à sua destituição. Bomba que se revelou um foguetório, já que se sabia que teria chumbo garantido, o que se confirmou, quando todos os deputados dos outros partidos votaram contra. 

Assente a poeira, para lá da polémica e da espuma das indignações, o que ficou? Uma mão-cheia de nada e um debate por fazer, dizem-nos investigadores, historiadores e pessoas que lutam pelos direitos da comunidade negra em Portugal.

IDENTIDADE NACIONAL EM XEQUE

“A minha ideia era abrir a discussão para a necessidade de se descolonizar o imaginário colonial. Não eram propostas minimamente radicais. E foram rejeitadas num quadro de maioria de esquerda”, diz Joacine Katar Moreira, ex-deputada

Há quatro anos, Joacine Katar Moreira apresentou a proposta Descolonização do Conhecimento, na qual se previa a restituição às ex-colónias de património cultural (o que constava do programa do Livre). A proposta chumbou, apesar de uma maioria de esquerda, e a deputada acabou por ser vítima de ataques virulentos por se atrever a levantar a questão, com André Ventura a propor mesmo que a deputada fosse “devolvida ao seu país de origem”. 

“O colonialismo foi um projeto político e ideológico, e tem de ser desmantelado política e ideologicamente. A minha ideia era abrir a discussão para a necessidade de se descolonizar o imaginário colonial”, recorda Joacine Katar Moreira. “Não eram propostas minimamente radicais. Falavam da criação de um grupo de trabalho para se dar início ao debate e da inventariação do espólio oriundo das colónias. E foram rejeitadas, note-se, num quadro de maioria de esquerda.” 

A somar à “reação visceral de todas as alas políticas”, a historiadora e ativista sublinha a posição de intelectuais, “que até concordavam com a ideia de restituição e reparação, mas diziam não ser aquele o momento nem a forma indicados”. “Qual é o momento e a forma, então? Sim, é uma discussão desconfortável, e tem de o ser, para ser desmantelada. A desumanização do colonialismo tem de ser algo que nos desconforta.” 

Esta resistência da sociedade portuguesa em reconhecer o lado negativo da sua História está enraizada na própria identidade do povo, diz Joacine Katar Moreira. “A identidade nacional assenta na ideia de um passado glorioso, que por sua vez é oriunda da maneira como a História colonial é ensinada: uma História maravilhosa, sempre na ótica da heroicização do povo, omitindo e tornando invisível toda a violência. Daí que, quando alguém diz que é necessário refletir e reconhecer os erros do nosso passado colonial, as pessoas respondam imediatamente que não têm nada de que se envergonhar.” 

Salão Nobre da Assembleia da República de Portugal

 

Murais polêmicos Um projeto de resolução de Joacine Katar Moreira recomendou à Assembleia da República a contextualização das pinturas no Salão Nobre, que normalizam   "a subjugação de outros povos" - Crédito pela foto: Marcos Borga
 

José Pedro Monteiro, especialista no período imperial e colonial, diz que a investigação científica desenvolvida em Portugal fez aumentar muito o conhecimento sobre o colonialismo, mas os debates públicos continuam a estar presos em “estribilhos e dicotomias, com formas de debater e factos que não refletem o conhecimento disponível”. “A discussão continua no ‘Não vamos reparar o que aconteceu há cinco séculos’. Mas há imensa gente ainda viva que passou pela realidade do colonialismo português.” 

Além disso, adianta o historiador, não faz sentido continuarmos a debater a História no espaço público com a mesma abordagem do século XIX. “As sociedades evoluíram. A ideia do Estado Social é corrigir desigualdades, de modo que a sorte e o azar não sejam os únicos determinantes das histórias individuais. E nós hoje conseguimos rastrear os efeitos do colonialismo e o modo como o passado violento marcou as sociedades contemporâneas. É óbvio que não podemos olhar para o passado com olhos do presente, mas podemos pensar se, de facto, queremos uma postura diferente da que tivemos.”

NÃO É UMA QUESTÃO DE DINHEIRO

“Grande parte das instituições, que ainda hoje perduram, foi fundada com dinheiro proveniente da escravatura e do colonialismo. Não foi todo gasto em sedas e em especiarias”, diz Ana Cristina Pereira, investigadora

Ana Cristina Pereira, investigadora em Ciências Sociais, defende que a narrativa gloriosa dos Descobrimentos não é falsa, mas é “muito incompleta”, e que “o passado não fica no passado”. “Não somos outra coisa senão a nossa História. É preciso olhar para ela por forma a saber para onde queremos ir. Não precisamos de ter vergonha ou de rejeitar a História, mas temos de perceber que também foi uma História de abuso.” E lembra que Portugal ganhou muito com a violência e a opressão. Falta saber exatamente quanto. “Grande parte das instituições que ainda hoje perduram foi fundada com dinheiro proveniente da escravatura e do colonialismo. Não foi todo gasto em sedas e em especiarias. Este tema ainda não está aprofundado. Nos EUA, sabe-se de onde veio o dinheiro para fundar as instituições, as universidades.” 

A investigadora coordenou o projeto Oficina de Reparações, um workshop com académicos e ativistas, que redundou na Declaração do Porto, em julho do ano passado, com uma proposta de 18 medidas de reparação. Entre elas, encontram-se o reconhecimento de crimes, o perdão das dívidas das “províncias ultramarinas” e a restituição de obras de arte, mas também várias iniciativas para apoiar os descendentes dos colonizados em Portugal, como políticas contra a desigualdade racial (incluindo quotas) e a criminalização do racismo, além da eliminação de propinas para alunos oriundos dos países colonizados. “Receber alunos das ex-colónias nas nossas universidades, sem que tenham de pagar propinas, seria uma belíssima maneira de reparação, porque os antepassados deles ajudaram a criar riqueza sem receberem os benefícios”, sustenta. 

Há ainda processos de autorreparação que envolvem o espaço público. “Não estou a falar de destruir monumentos ou de deitar abaixo estátuas, mas de erguer outras estátuas e monumentos. É urgente a construção do memorial às pessoas escravizadas, em Lisboa, aprovada em 2017 num orçamento participativo. É também consensual que o 25 de Abril começou em África, que as lutas africanas não foram contra o povo português, mas contra o governo, e no entanto não temos nenhuma estátua de Amílcar Cabral.” 

Ana Cristina Pereira admite, porém, que o debate é muito difícil de se fazer quando se põe a questão em termos financeiros. “O Presidente falou em pagar a conta, e isso inquinou o debate. Não é por aí, apesar de os países ex-colonizados aproveitarem para insistir na narrativa da cooperação, a pensar no hoje e nos trocos, o que revela falta de visão de futuro. As elites políticas são todas muito parecidas.”

COMPENSAR OS AFRODESCENDENTES

“Não há dinheiro que pague o que foram a escravatura e a colonização. Mesmo nos grupos negros, a questão do dinheiro não surge como assunto principal. A dívida é eterna”, diz Apolo de Carvalho, investigador

Para Apolo de Carvalho, investigador envolvido no projeto Afro-Port – Afrodescendência em Portugal, é moralmente irrelevante falar em eventuais indemnizações monetárias. “Não há dinheiro que pague o que foram a escravatura e a colonização. Mesmo nos grupos negros, a questão do dinheiro não surge como assunto principal. A dívida é eterna.” 

Importante, diz, é tentar compensar os países africanos de outras formas, através, por exemplo, do apoio diplomático à sua entrada em organismos internacionais de relevo, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas ou o FMI, ou ainda resolvendo as burocracias e os abusos nos serviços consulares. “Os cabo-verdianos são humilhados e tratados como animais para vir para Portugal”, acusa. 

Há igualmente passos com enorme importância simbólica que também não custam nada, seja em dinheiro seja em honra ferida. “Como é que a língua cabo-verdiana não é reconhecida como língua nacional, ao lado do mirandês? Língua é cultura, é identidade da existência de um povo, e basta vontade política.” É também este tipo de iniciativas que Joacine Katar Moreira favorece. 

“Devemos mudar a legislação para melhorar a vida das populações descendentes dos países colonizados. Desracializar a lei, acabando, por exemplo, com o Artigo 250º do Código de Processo Penal, que diz que polícia pode interpelar e interrogar indivíduos com suspeitas de permanência ilegal em território nacional, o que é usado pela polícia para interpelar e algemar pessoas racializadas, quando a única suspeita é a cor. Advogo também a existência de quotas raciais, tal como há para as mulheres, para acelerar a justiça histórica.” 

As reivindicações centrais são conhecidas e públicas, garante a socióloga Cristina Roldão, ainda que não tenham grande repercussão no espaço público. “Tivemos um debate sobre a recolha de dados étnico-raciais, estamos há anos a falar dos manuais escolares, de quotas para o Ensino Superior e para a Administração Pública, da política das zonas urbanas sensíveis... E nada avançou.” No Reino Unido, aponta, o assunto já está noutro patamar, com “políticas de ação afirmativa, recolha de dados étnico-raciais, representatividade nos media e até bancos a assumirem que têm património com origem na escravatura”. “Temos de ver o que os outros têm feito. Talvez nos possamos inspirar.”

O benemérito.... esclavagista

A primeira rede de escolas primárias em Portugal foi paga pelo Conde de Ferreira, que fez fortuna a traficar pessoas escravizadas

Joaquim Ferreira dos Santos emigrou para o Brasil em 1800 e fez uma fortuna no tráfico transatlântico de escravos. Em 1832, fugiu para Portugal, ao ser apanhado a traficar pessoas ilegalmente (o Brasil baniu o tráfico em 1831). Em 1866, já conde, morreu sem descendentes, tendo deixado a imensa herança à Santa Casa, com instruções para construir um hospital psiquiátrico no Porto e 120 escolas primárias em todo o País. “Foi a primeira rede escolar em Portugal. Revolucionou socialmente gerações de pessoas e teve um enorme impacto no País”, diz Nuno Coelho, investigador-principal de um projeto sobre o Conde de Ferreira. 

Ainda hoje, o antigo esclavagista dá o nome a dezenas de escolas e de ruas. “Esse lado foi invisibilizado, mas não podemos falar dele como benemérito sem explicar a origem do dinheiro.” Nuno Coelho sublinha ainda que o caso do Conde de Ferreira pode servir para ajudar a calcular quanto Portugal ganhou com o esclavagismo. “Ele foi responsável pelo tráfico de dez mil pessoas, o que representa 0,17% do total. Onde está o fruto dos restantes 99,87%? Que famílias têm ainda hoje dinheiro ganho dessa forma?” 

A (lenta) evolução dos manuais

Os livros escolares continuam a dar uma imagem acrítica e desumanizante da escravatura, diz investigadora, mas tem havido mudanças

Quando Marta Araújo coordenou um primeiro projeto sobre a escravatura nos manuais de História do 3º Ciclo, entre 2008 e 2012, tirou várias conclusões: África era apresentada como um continente sem História, primitivo; as Descobertas representaram um “encontro entre culturas”; não era feita qualquer ligação entre a escravatura e o racismo nem havia referências aos movimentos de resistência liderados por negros. Entretanto, a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra iniciou outro projeto semelhante e, numa análise prévia, diz que já são visíveis várias alterações, mais nos manuais do 9º ano do que nos do 7º e do 8º. “É hoje menos frequente o uso de terminologia que objetiva a população escravizada, em que o escravo é apresentado como um produto em circulação equivalente às especiarias e ao marfim, e está presente uma maior relação entre a escravatura e a violência, omitida noutros manuais.” 

Marta Araújo diz, no entanto, que ainda há muito a fazer. “Falta vontade política para mudar o sistema no seu todo, com orientações curriculares mais específicas nesta matéria. A própria formação de professores tem de ser repensada. E não estamos a ver estas mudanças noutros ciclos do ensino.” A investigadora acrescenta que “os ganhos não são garantidos”, dando o exemplo de um retrocesso: em 2003, um manual dizia que se haviam dado “grandes migrações” de europeus para a América, “enquanto escravos africanos negros eram levados à força”; em 2008, o manual da mesma editora dizia que tinham ocorrido “movimentações de povos – de emigrantes europeus e de escravos africanos sobretudo para a América”. 

A especialista em exclusão e em racismo institucional avisa, contudo, que, apesar de haver muitas medidas que não implicam necessariamente maior dispêndio de orçamento”, há outras que vão mesmo custar dinheiro (ainda que admita não ter estimativas de quanto poderá ser, até porque “não há espaço para fazer essa discussão”). Mas não deve ser o povo português a temer esse lado mais materialista do debate. “As elites é que enriqueceram às custas dos africanos escravizados, dos povos indígenas, dos camponeses, dos portugueses pobres. Não é por acaso que, em alguns países, o que se tem tentado perceber é a origem das grandes fortunas. As plantações de cacau em São Tomé e Príncipe, nos anos 60, por exemplo, foram feitas com muito trabalho forçado. Isto é algo que a sociedade portuguesa precisa de saber. Se pudéssemos avançar de forma mais séria neste debate, talvez tivéssemos uma opinião pública menos crispada.”

SEM VOZ 

Entre a comunidade negra lamenta-se que, mais uma vez, sejam chamados à discussão os mesmos de sempre. “Não é aceitável que as pessoas negras não estejam neste debate, dado que, até na perspetiva vivencial, há todo um dano ao nível das heranças etnorraciais”, diz Paula Cardoso, fundadora da rede Afrolink, comunidade de profissionais africanos e afrodescendentes. “Há uma responsabilidade da comunicação social em perceber que não tem essa diversidade nas suas estruturas e que, para refletir a diversidade da sociedade, tem de ir ao encontro das pessoas.” 

Cristina Roldão alinha na crítica. “É preciso ouvir quem foi lesado pelo processo, dar-lhe mais espaço. Só temos ouvido homens brancos a discutir o assunto, uma elite cultural e intelectual, quando as pessoas prejudicadas com o processo colonial são racializadas e eram da classe trabalhadora.” 

Já o argumento, muito repetido, de que a sociedade ainda não está preparada para ter esta conversa não colhe junto de Apolo de Carvalho. “Qual sociedade? A negra, que há muito tempo vê negada a pertença a este País, quer um programa de reparações, não como esmola mas como política de justiça reparativa. Mas essa sociedade não é auscultada. Tem produzido um conjunto de estudos, documentos e propostas na área das desigualdades étnico-raciais, mas acaba sempre relegada para segundo plano.” 

O investigador deixa ainda uma crítica à afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa de que cabe a Portugal “liderar” o processo de reparações. “É como dizer que o criminoso é que decide as indemnizações às vítimas. Não, não tem de liderar. Portugal tem, sim, de abrir conversações com os países africanos, que têm as próprias agendas, e estar aberto para ouvir as pessoas negras que cá vivem.”

 * Jornalista da revista VISÃO desde 1999.


BIBLIOGRAFIA (já publicada no Blog de São João del-Rei)

 

AÇORIANO ORIENTAL: HISTÓRIA NÃO SE COMPENSA, por Cáti Martins, artigo publicado na edição da quinta-feira, de 16/05/2024, na coluna OPINIÃO, p. 14.
 
PÚBLICO: “A expansão portuguesa é indissociável da escravatura”, falta Portugal reconhecê-lo, por António Rodrigues, edição da quinta-feira, artigo de 02/05/2024, na coluna Destaque Reparações históricas, pp. 2-4 

3 comentários:

Fernando de Oliveira Teixeira (poeta e professor universitário, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Um tema realmente impactante e que merece reflexo. Abraço amigo.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Um painel que parece dar conta das implicações dessa desafiadora questão. Temos ainda, somadas a esta, a agravante das atuais condições das imigrações tanto luso-africanas quanto brasileiras para Portugal.
Cumprimentos.
Cupertino

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Diplomado em Direito, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, Membro Correspondente do IHG de Minas Gerais, entre outras importantes instituições culturais de Minas. Membro Efetivo da Academia Valencia de Letras, onde participou da diretoria por mais de 12 anos sucessivos. disse...

Caro amigo Maestro Braga
Embora com algum atraso, agradecemos pelo envio.
Muito interessante!
Abraços, meus e de Beth
Mario Cupello