Transcrevemos com a devida vênia do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, na coluna ACONTECEU EM, artigos publicados na edição de quarta-feira nº 56.727, Ano 160º, 14/08/2024, pp. 30-1.
Se, pois, a padeira de Aljubarrota é um "mito", uma invenção popular do século décimo quinto, nem por isso o desprezemos. Um povo que dava a uma mulher ódio bastante contra os opressores estranhos, para haver de assassinar a sangue frio sete desses inimigos; um povo, dizemos, que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito, devia saber sustentar a independência nacional
ALEXANDRE HERCULANO.
... gloria-se um homem de ser Português, quando, folheando as nossas velhas crónicas, se lhe depara, resplandecente como os nomes mais gloriosos de que se ufana Roma, de que se ufana a França, este nome que por si vale um poema - Aljubarrota!
PINHEIRO CHAGAS.
Batalha de Aljubarrota (14/08/1385) |
O que se firma em Aljubarrota não é só a existência de Portugal como povo livre. Existir, com independência maior ou menor, é o menos. Só gozam o dom de vida plena os povos e os indivíduos que vivem historicamente; e viver historicamente é ter exercido a sua função, — causal, fecunda, criadora, determinante, — na evolução de um povo ou da humanidade. O que não teve consequências — deve esquecer-se. Um facto define-se pela sua função no fluxo de vida em que actuou, e a narrativa histórica só é História quando os sucessos são considerados em relação àquilo que veio depois, e ordenados por conseguinte numa série processual, como agentes de transformação e factores de desenvolvimento da consciência da nossa espécie. Só são "históricos", em suma, os factos que tiveram efeito no espírito humano sobrevindo, e a sua historicidade é proporcional à sua energia de progressão, à sua capacidade de servir de degrau à ascensão futura da humanidade; a historicidade de um homem, ou de um povo, é o volume dos resultados que teve no mundo a sua acção.
Portugal, no período gerador da primeira dinastia, é um organismo que se constitui. Existe, mas não tem ainda valor histórico. Não se sabe se será alguém na tragédia que representa o Homem. Para isso, é necessário que surja um facto que o faça destacar do côro de anônimos, dando-lhe um papel no evoluir do drama.
Tal é, ao que me parece, o significado de Aljubarrota.
O que vejo em Aljubarrota, portanto, não é uma luta de Portugueses e Castelhanos. O que aí importa para a História é menos a vitória de Portugal sobre o reino de Castela do que, dentro da sociedade portuguesa, a vitória da Burguesia sobre os aristocratas senhores rurais.
A aristocracia, os senhores rurais (que, como se sabe, se puseram do lado do Castelhano) constituem sempre em todos os povos um elemento de estabilidade, a que eles devem a pujança, a saúde, a solidez do seu organismo. Não há sociedade bem firmada, solidamente constituída, sem uma elite provinciana, a qual forme ao longo dela uma série de gânglios coordenadores que lhe dão ordem e direção; mas não há também sociedade expansiva, das que têm na Acção um vasto papel, das que transformam a economia do mundo, sem o predomínio progressista, mas facilmente corruptor também, da burguesia do litoral.
Em Aljubarrota os aristocratas, combatendo pelo Castelhano, (o rei legítimo à face da lei) defendiam, naturalmente, os princípios fundamentais do regime de que faziam parte, como seu elemento básico e genésico: estavam com a lei, portanto, de uma época que ia findar; estavam com o Feudalismo. Do lado do mestre de Avis vemos o burguês comerciante; e Nun'Álvares, adoptando este partido, saía do Feudalismo, e simbolizava assim essencialmente o caracter da Cavalaria, instituição em que cumpre ver, ao cabo de contas, não, como é uso, um órgão do Feudalismo, mas um seu elemento de dissolução, como factor que sempre foi — desde o início das Cruzadas — do movimento para o Oriente e da expansão comercial.
O que se criou em Aljubarrota, em suma, foi o condicionamento social para a empresa dos Descobrimentos. A derrota definitiva do princípio do Feudalismo, a vitória do Comércio com seu aliado a Cavalaria, eis, ao que julgo, o significado profundo dessa batalha, e a razão da sua importância se a quisermos ver na história humana, e não só à luz do sentimento pátrio. A burguesia, enfim dominante, vai poder realizar a sua obra; de ali, alçando-se triunfadores sobre o corpo abatido da civilização rural, o Comércio e a Cavalaria, unidos, soltam o vôo que no fim de um século os há de levar a Calicut.
O que hoje recordamos, portanto, é o acto preliminar da epopeia das Navegações. Assim, ao que me parece, cumpre considerar Aljubarrota, para que vejamos nesta batalha, mais que um brilhante episódio dum antagonismo de nações, um verdadeiro momento "histórico" na evolução da Humanidade.
* Pedagogo, jornalista, sociólogo, historiador e político português.
A PADEIRA DE ALJUBARROTA
Andavam já virotões no ar, e o condestável a cavalo, na vanguarda, confortando a gente, trazia um escudo para se defender dos tiros. Recomendava muito a firmeza: quando os castelhanos arremetessem, adiantassem as lanças, apertando-as rijo contra o cotovelo. A grita era forte; alaridos e apupos. E para os lados do mar, o sol ia baixando rapidamente. A confusão crescia. D. João I lançava sobre o peito uma cruz vermelha; e ao lado do rei o arcebispo, com o seu roquete sobre a armadura e a Virgem por pluma no elmo, precedido da cruz alçada, ia de uns a outros, por toda a parte, confessando e absolvendo, em nome do papa Urbano; recomendando muito que dissessem repetidas vezes:
— Et verbum caro factum est...
O que os rapazes traduziam, a rir:
— Muito caro feito é este.
OLIVEIRA MARTINS.
Distantes, os povos, enquanto se travava a batalha, espreitavam dos altos e recantos a qual dos contendores pertenceria a vitória para depois, ou fugir com os vencidos ou abater sobre eles. Aljubarrota não faltou à regra. Os habitantes da vizinhança ouviram pelo menos o estrondo do combate e a suas mãos ficaram muitos dos fugitivos. As mulheres são por contumácia não só as mais ruidosas como as mais encarniçadas. Foram-no em todos os tempos e em todas as épocas. Aljubarrota teve também uma mulher e essa mulher que teve na vida, se existiu, o nome de Brites de Almeida, e a alcunha de a "Pesqueira", teve na história o cognome glosioso de "A Padeira de Aljubarrota". Não é já uma mulher e um símbolo. Não é já um símbolo: é a realização de um ideal. Portugal queria ser livre. Pequeno sim mas livre. E livre foi. Para isso deu o concurso do seu povo — que foi o primeiro —, deu o concurso do seu solo, deu o concurso das suas mulheres. E como as armou? De espada e cota? Não. A umas mostrando-se em mente aos namorados, a outras açulando os homens pelos caminhos. Brites de Almeida desceu também à chacina com a sua pá do forno, que muitos anos depois esteve emparedada para não constituir um troféu. Não sabemos o que fez. Sabemos apenas que, quando ela voltou, encontrou prostrados de medo e lazeira, dentro do seu forno, sete guerreiros. Então realizou a mesma façanha que as tropas abissínias haviam, em nossos tempos, de realizar com as italianas. Apanhá-las à saída de um desfiladeiro. Uma boca de forno está para um enfornado como um desfiladeiro. E cada um que saía era derrubado. Uma pancada certeira o prostrava.
Mas quem era Brites de Almeida? Uma heroína, não resta dúvida. Dizem uns que era de Faro, outros de Aljubarrota. Atribuem-lhe coisas espantosas, como a de, sendo pedida por um soldado, só aceder ao casamento se fosse vencida em combate singular. Este realizou-se e o soldado morreu. Dizem que esteve presa dos mouros e foi mulher de uma cana mais rija que um varão de aço inquebrável. Que andou a monte disfarçada em almocreve, que roubou à dona a padaria onde fez a hecatombe. Contam dela façanhas incríveis. Terão sido verdadeiras? Serão falsas? Quem o sabe. Mas seja como for, a padeira de Aljubarrota é um nome, é uma lenda. Abençoada lenda que mostra que Portugal não morreu, que Portugal não morrerá. Não morre uma terra em que as mulheres disputam aos homens os sete palmos de morte que dão na História direito a duas linhas de prosa. Não morre um povo em que mães e esposas apontam aos homens o caminho a seguir. É verdade que a padeira tivesse existido? Bem. Houve mais uma grande mulher em Portugal. É lenda? Melhor ainda. Mostra que até quando elas faltam, o coração português as imagina. Houve fé. Bendito Deus. Deus nos dê fé. Dizem que ela remove montanhas. Não sei. Sei apenas que pelo menos ela matou sete castelhanos. Preguntem do norte ao sul de Portugal: sete. Nem um menos. Sete. Perigos de peste? Ah! meus amigos: um inimigo da pátria nunca cheira mal. Pensavam assim os higienistas e pensava assim Brites de Almeida, a que é eterna como os fornos de cozer pão, eterna como a recordação de Santa Maria da Vitória, entre as mulheres portuguesas.
* Escritor e bibliógrafo português, autor de um dos livros mais vendidos em Portugal durante o século XX, Palavras Cínicas, onde explora sua crítica social, tentando subverter a moral vigente, emitindo juízos anticlericais, contra a crendice popular, e a "esperteza" saloia, e deixando clara a sua opinião de que a vida não vale a pena no mundo em que se vivia.
4 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de transcrever no Blog de São João del-Rei dois artigos que apareceram no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, um século atrás, ou seja, no dia 14/08/1924, e reeditados na edição de 14/08/2024, a saber:
ALJUBARROTA, por ANTÓNIO SÉRGIO (1883-1969) e A PADEIRA DE ALJUBARROTA por ALBINO FORJAZ DE SAMPAIO.(1884-1949).
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/08/aljubarrota.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Laurinda Ferreira de Souza (mestra pela FGV-RJ em Psicologia da Educação, aposentada no INESP-Instituto Superior de Estudo e Pesquisa de Divinópolis (atual UEMG), autora do livro "Percursos Teatrais – pesquisas e vivências") disse...
Prezado Francisco Braga,
Muito interessante o segundo texto no seguinte trecho:
"Houve mais uma grande mulher em Portugal. É lenda ? Melhor ainda. Mostra que até quando elas faltam, o coração português as imagina."
Obrigada,
Laurinda
Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Discordando do professor A.Sérgio, Aljubarrota foi sim o embate entre duas nacionalidades, mesmo arriscando o anacronismo do conceito, dada a forte "mística lusitana", digamo-lo assim, que presidiu o nascimento daquele Estado e que encontrava naquele impulso a motivação talvez mais consciente. Pelo simples anteceder às Navegações, não resta dúvida de que projetos de visão burguesa tornaram-se próprios de uma aristocracia rural que nunca deixou de ser hegemônica e, talvez antes, se capitalizou. O chamado partido "castelhano" não é mecanicamente produto retrógrado de históricos interesses aristocráticos.
Quanto à figura curiosa da "padeira", o fato é que nunca se saberá sobre sua efetiva existência, embora "todo boato tenha seu fundo de verdade". Presta-se ao universo mesmo da Literatura.
Muito grato. Saudações!
Cupertino
Danilo Gomes ((escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras, Marianense de Letras e Brasiliense de Letras) disse...
Mestre Francisco Braga, minhas saudações amigas! Agradeço-lhe o envio desses dois magníficos direi mesmo antológicos textos dos escritores portugueses António Sérgio e Albino Forjaz de Sampaio. A saga de Aljubarrota é imortal. Lendária ou não, a Padeira de Aljubarrota é um estandarte a tremular na História de Portugal. Sim, Aljubarrota levou a Calicut. A Padeira como que pariu Vasco da Gama ( aliás, meu time, no Rio; em Minas, sou América !!!). Foi bom lembrar Aljubarrota na saga lusíada, na pena de dois grandes estilistas. Obrigado! Abraço do Danilo Gomes.
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