quarta-feira, 30 de outubro de 2024

HOJE O CÉU ESTÁ EM FESTA


Por Frei Fabiano Aguilar Satler, o.f.m.
A irmã morte não é um tema que agrade a Frei Joel. Seus confrades, sabedores disso, sempre o provocam com temas ligados à morte, para que ele ponha fim ao assunto com o seu convite clássico: "Vamos falar de flores?" A exceção nesse assunto ocorre quando ele se refere ao carinho que nutre em relação ao Ofício Divino das Comunidades, tratado como um filho querido. Ele afirma que, no seu sepultamento, deseja ter, entre suas mãos, essa obra singular.
Esta é uma homenagem que o Blog de São João del-Rei, através de seu gerente, o pianista Francisco Braga, presta ao maestro e organista Frei Joel Postma (8/3/1929-30/10/2024) pela dedicação de toda a sua vida à música litúrgica.

 

CNBB agradece ao legado de frei Joel Postma em publicação de 30/10/2024

 

Prelúdio 
 
No dia 8 de março de 1929 nascia Frederik Otto Postma em Haia, Holanda. (...) 
Era o 3º filho da Sra. Foekje Tienstra com seu segundo esposo, André Postma, oficial de polícia em Haia. Em um tempo em que a religião era um forte identificador social, o lar do Sr. André Postma e da Sra. Foekje Tienstra não fugia a essa regra: era o típico lar de uma família de tradição católica. Desse ambiente familiar católico, três filhos do casal trilharam o caminho da Vida Religiosa Consagrada. O primeiro filho do segundo casamento da Sra. Foekje, Jan, frequentou o noviciado dos Padres Brancos (Sociedade dos Missionários da África). Após deixar o noviciado, foi ordenado padre diocesano na Diocese de Nelson, próxima a Vancouver, Canadá. Deixou o ministério e casou-se com uma sul-coreana. Outro irmão, Otto Johannes, seguiu os passos de Frederik: ingressou na vida franciscana: foi missionário no Paquistão; fundou um semi-internato para filhos de famílias católicas pobres, cujos pais eram quase sempre, sweepers (varredores de rua), e faleceu no dia da invasão americana no Afeganistão, em 7 de outubro de 2001. (...) 
 
Primeiro movimento: formação franciscana e musical 
 
Além do ambiente familiar religioso, o menino recebeu em sua casa a influência e a presença de seu tio-avô paterno, Frei Columbanus Postma, o.f.m., muito importantes para o despertar de sua vocação para a vida franciscana. Frei Columbanus foi missionário na China e, após a Revolução Comunista de Mao Tsé Tung, em 1949, passou a trabalhar na Indonésia, onde faleceu. Após desejo manifesto pela vida franciscana, os pais de Frederik acompanharam-no, para um primeiro contato com o Seminário Menor Franciscano São Willibrordus, em Katwijk, próximo a Haia. (...) 
O adolescente, nessa altura com 13 anos, iniciou seus estudos no Seminário Franciscano, que estava funcionando provisoriamente em Haia. (...) 
No dia 7 de setembro de 1949, com 20 anos, e juntamente com outros 29 candidatos, ingressou no noviciado franciscano em Vlodrop e recebeu o nome pelo qual se tornou conhecido: Frei Joel. No dia 8 de setembro de 1950 professou os primeiros votos. Após o noviciado, ele foi cursar Filosofia em Venray, seguida de dois anos de estudos de Teologia em La Verna e os dois últimos anos em Weert. Depois de sua profissão solene em 8 de setembro de 1954, foi ordenado presbítero no dia 11 de março de 1956 em Weert, por Dom Guillaume Lemmens (1884-1960), bispo de Roermond. (...) 
Juntamente com a sua formação para a vida franciscana, Frei Joel teve sua iniciação em música ainda na casa de seus pais, no piano de sua irmã mais velha, Antônia. Tocava o piano dela "de ouvido". Somente em 1948, último ano do seminário menor, começou a tocar utilizando partitura. Um dos frades do seminário menor, Frei Engelmundus Beker, iniciou Frei Joel na arte da escrita e da leitura da gramática musical. As aulas prosseguiram durante o noviciado, sobretudo para acompanhamento do canto gregoriano, e tiveram continuidade durante os estudos de Filosofia e Teologia. 
Por coincidência ou pela providência divina, Frei Odulfo van der Vat (1900-1966), que viera para o Brasil em 1932, regressou a Holanda em 1947, lá permanecendo até 1958, para tratamento de saúde. Durante esse período, exerceu a função de Secretário das Missões Franciscanas e, antes de voltar ao Brasil, foi nomeado lente do Teologado em Divinópolis. Este, conhecedor do talento musical do jovem Frei Joel, indicou-o ao Ministro Provincial para que ele fosse para o Brasil atuar como mestre de canto em Divinópolis. Convite aceito, Frei Joel tratou de preparar-se, da melhor forma possível, para a missão que lhe fora confiada. Após sua ordenação presbiteral, em 1956, e durante 3 anos (1957-1959), Frei Joel estudou no conceituado Instituto Holandês para Música Sacra, em Utrecht. Nesse instituto, fundado por um franciscano, Frei Joel teve como professores: de órgão, Albert de Klerk (1917-1998); de harmonia, Herman Strategier (1912-1988) e de piano, Job Wilderbeek. Os dois primeiros anos foram cursados em regime de internato no Instituto e, no terceiro ano, Frei Joel residiu no convento dos frades perto da mesma instituição. Findos os 3 anos de curso, Frei Joel partiu, finalmente, para a missão para a qual fora indicado 4 anos antes. 
 
Segundo movimento: Terra Brasilis 
 
Em outubro de 1959, Frei Joel e outros 5 frades embarcaram de navio para o Brasil, entre os quais se achavam os Freis Eliseu Tijdink e Rufino Peeters (1899-1986), este fumante de cachimbo. Frei Joel trazia na sua bagagem um clavicórdio, feito especialmente para ele por um amigo, e um gravador Philips de rolo, presente de seu pai. Esse instrumento musical foi utilizado mais tarde por ele para compor, a cantata O Peregrino de Assis, sua obra mais conhecida. 
Dezessete dias depois de deixar a Holanda, o navio aportou no Rio de Janeiro e os freis se dirigiram à Província Santa Cruz no bairro Cascadura. Logo em seguida, Frei Joel viajou para Divinópolis, seu destino no Brasil, ali permanecendo do fim do ano de 1959 até abril de 1964. 
Chegando a Divinópolis, a primeira tarefa confiada a ele foi substituir Frei Paulino Bouwmeester na função de mestre de canto dos frades estudantes de Teologia. Havia nesse tempo muitos clérigos na cidade e alguns deles eram holandeses, a saber: Frei Diogo Reesink, Frei Justino Burgers, Frei Tiago Kamps, Frei Ronald Zwinkels, Frei Paciano van Schaik, Frei Cornélio van Velzen, Frei Eliseu Tijdink e Frei Lourenço Tollenaar. Os primeiros meses foram dedicados ao aprendizado da língua portuguesa, iniciado ainda em Utrecht, durante o último ano no Instituto, onde teve a oportunidade de estudar a gramática da língua portuguesa. Mas falar e compreender o que é dito numa língua, requer mais do que a gramática da língua. Esse aprendizado foi possibilitado por meio de um dos trabalhos confiados a Frei Joel: dirigir o Coral dos Meninos Cantores da Cruz de São Damião, criado por Frei Paulino, que atuava nas Missas e festas do Santuário Santo Antônio. Com as crianças e adolescentes desse coral, o aprendizado do português tornou-se mais fácil para o novo mestre de música. Simultaneamente, Frei Joel foi auxiliado por uma professora de uma escola pública local. 
Em Divinópolis, realizou uma proeza que o tornou muito conhecido na ocasião: a gravação dos salmos do jesuíta Pe. Joseph Gelineau (1920-2008), em português. Frei Joel tivera contato com o trabalho do Pe. Gelineau ainda durante seus estudos no Instituto. No Brasil, o cônego Amaro Cavalcanti de Albuquerque, da Arquidiocese do Rio de Janeiro e Presidente da Comissão Nacional de Música Sacra, havia publicado uma pequena brochura com uma seleção das composições do Pe. Gelineau, com a letra dos salmos e dos cânticos traduzidos e metrificados para o português. De posse desse material e de seu bom gravador Philips de rolo, as versões para o português do Cônego Amaro foram sendo gravadas por Frei Joel em Divinópolis. Para essa tarefa de gravações artesanal, feitas na sala do coral da paróquia e no coro do Santuário, pois não havia estúdios à disposição, contou com os diferentes corais à sua disposição: Coral dos Meninos Cantores da Cruz de São Damião, Coral do Santuário Santo Antônio, Coro dos Frades Franciscanos, e algumas gravações foram executadas em modo solo por ele próprio. Esse trabalho perdurou ao longo de 1962 até 1963. Com a gravação em mãos, Frei Joel e Frei Eliseu, foram ao Rio de Janeiro apresentá-la ao Cônego Amaro, que se surpreendeu com a qualidade da obra e autorizou, prontamente, a divulgação da gravação. A prensagem dos dois LPs dessas gravações ficou a cargo da gravadora RCA Eletrônica Brasileira, de São Paulo. A divulgação foi feita pelo Instituto de Catequese da Província Santa Cruz, o Informac-Catequista, em Belo Horizonte. 
Esses dois LPs foram pioneiros no seu segmento de música litúrgica em língua vernácula. A gravação recebeu uma acolhida vibrante. Toda uma geração de religiosos, religiosas e seminaristas, acostumada a cantar gregoriano em latim, podia, finalmente, cantar música litúrgica de qualidade na sua própria língua. Com justiça, Pe. Joseph Gelineau pode ser chamado o patriarca da música sacra conciliar, em vernáculo, com a colaboração de Frei Joel. 
A gravação desses salmos e cânticos proporcionou a Frei Joel o reconhecimento do seu talento e sua sensibilidade na área da música litúrgica e religiosa. Ele passou a ser convidado por Cônego Amaro Cavalcanti para assessorar os Cursos de Canto Pastoral, que ocorriam nas diferentes regiões brasileiras. Em função disso, aconteceu o início da sua projeção na Igreja do Brasil. 
Em 2011, a Paulus Música lançou uma versão em CD dos 2 LPs originais, com uma gravação profissional executada pelo Coral Voz Ativa Madrigal. O motivo principal para essa regravação foi o uso da tradução atualizada e oficial dos salmos usados nos livros litúrgicos da Igreja no Brasil. (...)
 
Cantata Peregrino de Assis 
 
No início de 1963, com a transferência de Frei Davi Ruigt para Belo Horizonte, o Seminário Seráfico, em Santos Dumont-MG, ficou sem o professor de música. Frei Joel Postma pediu, então, ao Ministro Provincial Frei Jerônimo Jansen (1917-2000) transferência para Santos Dumont. A transferência, autorizada e publicada em 8 de abril de 1964, foi efetivada pouco depois. (...)
Ao chegar a Santos Dumont, a primeira tarefa de Frei Joel foi assumir, de maneira provisória e emergencial, o cuidado pastoral da paróquia, para o qual não estava preparado. Nessa tarefa, foi auxiliado por Frei Pedro Schretlen (1896-1972), que residia em Ubá. Com a nomeação de Frei Jorge para a paróquia, Frei Joel pôde, finalmente, passar a residir no Seminário Seráfico e dedicar-se ao trabalho para o qual fora originalmente designado nessa cidade. 
 
Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont
 
O Seminário Seráfico (seminário menor) em Santos Dumont contava, nessa altura, com cerca de 120 meninos, distribuídos no curso ginasial (4 anos) e curso médio (3 anos). Para o maestro e músico, a presença dessa faixa etária de meninos era oportuna: tinha à disposição os principais tipos de vozes dentro do Seminário, sem precisar recorrer a pessoas de fora. Foi uma época de muita vibração musical e cultura, reflexo do que ocorria na Igreja de uma maneira geral. Nessa altura, alguns frades já se aventuravam a andar sem o hábito religioso. 
Frei Joel teve o apoio, durante a execução do trabalho dele, de Frei Justino (1932-2016) e Frei Patrício (1931-2016) Nessa altura, o coral do seminário fez um tour de apresentações em cidades próximas, cantando exclusivamente músicas religiosas compostas pelo Pe. Jocy Rodrigues, posteriormente publicadas em 3 volumes, sob o título Evangelho em Ritmo Brasileiro. Os dois primeiros volumes foram publicados pela Seção Brasileira da Universa Laus, em 1967, e o terceiro, pelas Edições Paulinas, em 1971. 
O primeiro contato de Frei Joel com Pe. Jocy ocorreu em um encontro de liturgia, no Rio de Janeiro, onde Pe. Jocy apresentou a Frei Joel uma brochura manuscrita com suas composições, posteriormente publicadas pelas Edições Paulinas. Reconhecendo imediatamente a qualidade das composições, durante a noite e com a autorização do Pe. Jocy, Frei Joel copiou, à mão, todas elas. Essas partituras manuscritas, antes da edição impressa, foram utilizadas pelo coral do Seminário.
É desse período, em Santos Dumont, a primeira e, talvez, a mais significativa composição de Frei Joel: a cantata O Peregrino de Assis. O motivo da sua composição foi a comemoração dos 25 anos do Seminário Seráfico, celebrados em 1966. A iniciativa de verter a cantata francesa Le Pélerin d'Assise para o português ocorreu no ano anterior ao jubileu, em 1965. O texto da cantata é de autoria do teatrólogo francês Léon Chancerel (1886-1965). 
Teatrólogo francês, Léon preocupou-se com a renovação da arte teatral por meio da formação da juventude. Já no final da sua vida, fundou e presidiu a ASSITEJ (Association des Amis du Théâtre pour l'Enfance et pour la Jeunesse). Viajou pela Itália, o que o inspirou a escrever O Peregrino de Assis, texto poético que narra a experiência custosa de um poeta, perdido na vida, que se reencontrou em Assis. 
O ponto de partida para a versão em português foi o LP Messire François, com músicas compostas pelo suíço Pierre Kaelin. Frei Urbano Plentz (1931-2000) encarregou-se de traduzir o texto poético para o português. À medida que Frei Joel ia compondo as músicas, elas eram apresentadas à sua amiga e também maestrina Maria Alice de Azevedo Sad, que foi a primeira pianista a executar a cantata junto com o coral, formado exclusivamente por alunos do Seminário Seráfico. Da composição original de Pierre Kaelin, foi aproveitada apenas a melodia do refrão da canção "Água Fresca". A primeira melodia para a canção de abertura - "Embaixada do Desesperado" -, composta por Frei Joel, era, originalmente, mais sóbria. Depois, inspirado pelo ritmo vibrante e imperativo da música "Vem, vem, Senhor Jesus, vem! Vem, bem-amado, Senhor!", de Pe. Geraldo Leite, foi composta uma segunda melodia, de tom e ritmo mais brasileiro, que prevaleceu sobre a primeira. A mudança atendia a uma característica forte desse período: a "inculturação". 
O resultado foi muito fluido pela qualidade do texto original de Léon Chancerel e pela tradução primorosa de Frei Urbano Plentz, que conseguiu preservar a densidade poética do texto original. Trata-se daquela feliz união entre a poesia do texto com a poesia das notas musicais. Esse mesmo resultado não foi possível de ser obtido com uma segunda cantata, composta em parceria com o mesmo Frei Urbano, um ano depois, em 1967: "Francisco, Jogral de Deus". O texto, de autoria do próprio Frei Urbano, não dispunha do lirismo poético da cantata de Léon Chancerel. 
A cantata é dividida em três atos, intercalando declamação, canto e breves solos instrumentais. Inicia-se com uma vigorosa e alegre saudação aos presentes e introduz o seu protagonista, Francisco de Assis, com quem o autor sente-se profundamente identificado e irmanado. Pelos olhos de Francisco, o autor irmana-se com as paisagens da Toscana, de Siena e do Brasil. Percorre o pequeno jardim de Clara em São Damião e prova da água do fontanário em Assis. Entretanto, toda alegria rasa é efêmera. Das alturas do êxtase inicial, o peregrino é puxado pelas mão do Tentador para a baixeza da sua própria realidade. E, confrontado com suas trevas interiores e ainda sem experimentar a misericórdia divina, seu rosto perde as feições humanas em decorrência da tristeza: "Perdoai-me, Senhor, esta tristeza amarga, este riso malvado que deforma a boca, este desgosto da vida, e esta preguiça e este abatimento em que me comprazi". E, então, ao unir-se ao Cristo Ressuscitado na eucaristia, o peregrino reencontra a alegria. Contudo a plena ressurreição e alegria definitiva só são possíveis após uma última e definitiva reconciliação: abraçar e saudar a irmã morte, como o fez Francisco: "Que a nossa irmã, a Morte, seja bem acolhida, como a gente acolhe o sono, depois de um dia bem ocupado". E, assim, desponta a verdadeira alegria: a grande confraternização dos filhos e das filhas de Deus na praça da nossa cidade definitiva: a Jerusalém celeste. Nesse momento, todo o público, atendendo ao convite do peregrino, com palmas, une-se em um único canto alegre, experimentando, por meio da música final, um pouco da alegria e da comunhão trinitária a que chegaremos um dia: "Dancemos na praça da nossa cidade, dance, dança, dancemos a dança, a dança alegre dos Filhos de Deus!". 
A força dessa pequena obra-prima talvez esteja no fato de traduzir, de maneira poética e musical, tão cordialmente reconhecível, nossas próprias experiências de libertação interior, quando passamos do canto de "Perdoai-me, Senhor, esta tristeza amarga..." para "Dancemos na praça da nossa cidade!". 
Depois da sua apresentação inaugural em 1966, após repetidas execuções pelo coral Trovadores da Mantiqueira e depois de a partitura ter sido transcrita para o formato eletrônico, em 1966, pelo músico-liturgista Frei Joaquim Fonseca o.f.m., a cantata foi gravada em um CD, em 1997, pelo Coro de Câmera Pró-Arte, sob a regência do maestro Carlos Alberto Figueiredo e publicada pelas Edições Paulinas (COMEP). (vide link abaixo)
A coroação da versão orquestral dessa obra de arte, pelas mãos do maestro Sérgio Di Sabbato, ocorreu no ano de 2008, por ocasião da abertura da Comemoração Latino-Americana e Caribenha do Oitavo Centenário do Movimento Franciscano, em Brasília, de 17 a 19 de outubro de 2008, organizada pela FFB-Família Franciscana do Brasil. A execução instrumental foi feita pela Orquestra de Cordas da Universidade de Brasília, cuja coordenadora artística era Glêsse Collet. O coral Cantus Firmus, cuja fundadora e regente titular era Isabella Sekeff, cantou o texto. O regente do conjunto era o maestro Emílio de César. O Teatro Nacional de Brasília foi o palco dessa execução memorável. (vide link abaixo)
 
Sinfonia: um regente, vários músicos 
 
O período de Frei Joel em Santos Dumont (1964 a 1984) corresponde à sua fase mais produtiva como compositor. Todo esse trabalho fecundo, além da sua participação nas diversas edições dos cursos de canto pastoral, Brasil afora, tornaram-no a pessoa apropriada para assumir um serviço importante na Igreja do Brasil: assessor do Setor de Música Litúrgica da Comissão para a Liturgia da CNBB. 
O convite para trabalhar na CNBB partiu de Dom Geraldo Majella Agnelo. Outros bispos com que Frei Joel trabalhou estreitamente próximo na CNBB, e com quem manteve uma grande amizade foram Dom Clemente José Carlos de Gouvea Isnard (1917-2011) e Dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006). Frei Joel foi indicado para esse trabalho por Pe. José Weber, SVD, que ocupara, até então, essa função por 16 anos. Frei Joel já havia trabalhado intensamente com Pe. Weber na metrificação dos salmos para uso na Igreja do Brasil. (...) 
Indicação aceita e malas prontas, Frei Joel mudou-se da Serra da Mantiqueira para o Planalto Central. Passou a residir junto com os frades da Paróquia Santo Antônio na Asa Sul de Brasília, permanecendo nessa função de 1984 a 1997, quando regressou a Santos Dumont. Nessa fraternidade, Frei Joel foi prontamente acolhido e atuou muito próximo a eles e às irmãs franciscanas que trabalhavam no Colégio Santo Antônio, junto à paróquia. 
Pouco tempo depois de chegar a Brasília, Frei Joel recebeu um feliz pedido dos antigos membros de um coral fundado por Frei Beraldo José Hanlon o.f.m., propondo continuar a atuação do coral na Paróquia Santo Antônio. O coral, então, renasceu com o nome de Trovadores do Planalto. Além de cantar semanalmente na missa dominical da paróquia, o coral atuava, frequentemente, na catedral de Brasília, no tempo do Arcebispo Cardeal José Freire Falcão. 
Na CNBB, rapidamente Frei Joel precisou adequar-se ao ritmo do trabalho diário, com as constantes reuniões e a organização dos cursos de canto pastoral, que continuavam sendo oferecidos. Viajava muito, visitando e assessorando as diferentes dioceses. O fruto de todo esse trabalho era um enriquecimento permanente, à medida que ia estabelecendo contato com diferentes realidades e agentes litúrgicos. 
O Setor de Música Litúrgica, a exemplo de outros setores da Igreja no Brasil, viveu um período florescente do ponto de vista da reflexão, produção e animação desde os tempos do Concílio Vaticano II (1962-1965). Contribuiu para isso o fato de que o primeiro documento conciliar a ser realizado e publicado, logo ao fim da primeira sessão do Concílio, em 1962, a Sacrosanctum Concilium, tratava justamente da renovação litúrgica da Igreja. A conclusão ágil desse documento, por sua vez, indicava que o movimento de renovação litúrgica já estava razoavelmente amadurecido por ocasião da abertura do Concílio. No Brasil, não foi diferente. Já foi mencionado anteriormente Cônego Amaro Cavalcanti de Albuquerque, protagonista de primeira hora nesse processo. Os cursos de canto pastoral, sob a inciativa do seu grupo de trabalho, foram um meio eficaz de animação e formação teórica e prática de toda uma geração de talentosos compositores de música litúrgica e sacra no Brasil. (...) 
Outro elemento importante desse período foi a presença de missionários holandeses, alemães, franceses e italianos que chegaram ao Brasil com uma mentalidade distinta da consciência colonizadora de costume. (...) 
Sabia-se tudo da música clássica europeia e da liturgia romana e não eram percebidas as riquezas da nossa música de raiz, menos ainda da música religiosa de raiz, como os benditos populares. Os únicos brasileiros que claramente trilharam caminho distinto foram Pe. Jocy Rodrigues e Pe. Geraldo Leite Bastos. Pode-se afirmar, sem exagero, que estrangeiros ajudaram os brasileiros, nesse período, a descobrirem os valores da própria cultura. 
Frei Joel fez parte desse grande grupo de músicos formado por brasileiros e estrangeiros, como o Cônego Amaro Cavalcanti (o líder dessa turma), Pe. Nicolau Vale (holandês que fez uma importante pesquisa sobre as características da música nordestina e utilizou essa pesquisa para criar músicas que tivessem essas características), Pe. José Alves (um grande amigo de Frei Joel), Domingos Sanchis (francês de pele morena, falava muito bem o português, conhecia a cultura brasileira, sobretudo a literatura e a música popular brasileira que florescia nessa época; teve um papel muito importante nesse grupo de músicos litúrgicos ao oferecer critérios para ajudar a perceber valores da nossa própria cultura, para os quais não se tinha a devida sensibilidade), Frei Francisco van der Poel, Sílvio Milanez, Frei Tito (carmelita), Pe. Jocy Rodrigues e Reginaldo Veloso (presbítero das CEBs). 
No meio desse grupo, é importante ressaltar a figura ímpar do Pe. Geraldo Leite Bastos, da Arquidiocese de Olinda-Recife-PE, uma das figuras de maior importância nesse processo de criação de uma música nordestina, não somente do ponto de vista da criação musical, mas de todas as linguagens artísticas: arquitetura, teatro, poesia, música e coreografia. Todas essas manifestações da arte somaram-se para tomar parte na criação de um liturgia de um povo que, em sua grande maioria, é afrodescendente. Padre Geraldo Leite soube reconhecer essa realidade negra na cultura brasileira, a ponto de dizer que, enquanto muita gente no Brasil de pele negra definia-se como "preto de alma branca", ele se definia como um "branco de alma negra". Padre Geraldo Leite realmente se aproximou da cultura do Candomblé, da Umbanda e dos benditos populares. Ele transitou entre a tradição do catolicismo popular e a música negra proveniente dos terreiros. Juntamente com Pe. Jocy Rodrigues, foram grande amigos e colaboradores de Frei Joel, em um enriquecimento mútuo. (...) 
 
De Profundis: a oração e o canto dos empobrecidos 
 
Três frutos concretos dos 13 anos em que Frei Joel esteve à frente do Setor de Música Litúrgica da CNBB merecem ser destacados. 
O primeiro deles é o CELMU-Curso Ecumênico de Formação e Atualização Litúrgico-Musical. O curso foi concebido para formar e preparar compositores, letristas, animadores de canto, regentes e instrumentistas que estivessem engajados no ministério litúrgico-musical. Foi, em certo sentido, uma evolução natural dos antigos cursos de canto pastoral. No curso, organizado na modalidade de curso de verão, durante três janeiros seguidos, eram ministradas aulas de canto coral, canto gregoriano, ecumenismo, educação musical, harmonia e contraponto, história da música na liturgia cristã, iniciação musical (metodologia para o ensino), liturgia e pastoral da música litúrgica, percepção musical, prática instrumental, prosódia, regência, religiosidade popular e liturgia, técnica vocal e teoria musical. Pela lista dos temas oferecidos, pode-se ter uma ideia da qualidade do curso. Nove entidades (entre elas a CNBB) já chegaram a estar envolvidas nesse curso, dado o seu caráter ecumênico. 
O segundo fruto nasceu como uma iniciativa direta do Setor de Música Litúrgica da CNBB, no entanto, teve em Frei Joel um grande colaborador e incentivador: o Ofício Divino das Comunidades (ODC). A gênese dessa obra está ligada à pessoa de Pe. Geraldo Leite, que, ao regressar ao Brasil, depois de uma experiência junto com os Irmãos de Taizé, na França, tomou a iniciativa de reunir a sua comunidade eclesial no Morro da Conceição, no Recife, para rezar os salmos. Conhecedor da cultura dos empobrecidos, sabia que o texto cantado é fixado com mais facilidade do que o texto falado. Começou a ganhar forma, ali, aquilo que viria a se tornar uma rica experiência da Igreja no Brasil. (...) 
Cotidianamente, o Ofício Divino das Comunidades era cantado no Seminário Seráfico, em Santos Dumont, onde Frei Joel se encontrava após sua passagem pela CNBB, de 1997 em diante. A qualidade poética melódica dos salmos e cânticos do ODC abre, com mais facilidade, a porta de entrada para a rica espiritualidade dos salmos e a realidade existencial do salmista original, estabelecendo a comunhão entre aquele que canta e aquilo que é cantado, seja a alegria do louvor ou o sofrimento físico e existencial presente nas súplicas. (...) 
Finalmente, um terceiro fruto do trabalho de Frei Joel na CNBB é o conjunto de Hinários Litúrgicos, iniciado durante o seu trabalho no Setor de Música Litúrgica. A gênese desse trabalho está ligada aos diversos cursos de canto pastoral, quando eram apresentadas e conhecidas diversas composições, algumas delas muito boas do ponto de vista da poesia, da harmonia, do acento nas palavras, do caráter bíblico e litúrgico. Outras, entretanto, eram de pouca qualidade. Assim, gradativamente, foi surgindo a necessidade de fazer uma seleção nessa miríade de composições e organizá-las para um melhor uso na Igreja do Brasil. 
 
Frei Joel, sempre munido do seu Hinário e do Ofício Divino das Comunidades

 
Formalmente, entretanto, a ideia de organização de um repertório litúrgico-musical surgiu na CNBB, motivada por Frei Joel. O primeiro passo nesse sentido foi estabelecer uma comissão formada por músicos de diferentes partes do Brasil. Em seguida, essa comissão traçou os critérios para a seleção do repertório. Entre outros critérios bem conhecidos e expostos no 2º volume da coleção de hinários, deu-se primazia à letra das músicas em diferentes aspectos, principalmente no aspecto poético e bíblico. (...) 
Reginaldo Veloso, membro dessa comissão, era enfático nesse aspecto. Frei Joel ficou responsável por estabelecer uma seleção inicial de cantos, que ele recolheu durante os cursos de canto pastoral. A definição da organização inicial dos volumes partiu de Pe. Geraldo Leite: um volume para o Advento/Natal, um segundo para Quaresma/Páscoa, um terceiro para o Tempo Comum e um quarto para os santos. (...) 
Todas as edições dos quatro volumes contaram com o trabalho artesanal de Frei Joel na composição das partituras (escritas manualmente) e das letras (datilografadas à máquina elétrica). (...) 
Uma das alegrias e surpresas de Frei Joel, ao chegar ao Brasil e começar a tomar contato com as musicas populares do Nordeste brasileiro, foi constatar a presença de tons modais na tradição musical dessa região. Os primeiros migrantes que vieram para o Brasil e estabeleceram-se no litoral do Nordeste brasileiro eram provenientes da Península Ibérica, que durante sete séculos fora ocupada pelos muçulmanos. Não havia, nessa região, instrumentos melódicos como a guitarra, apenas instrumentos de ritmo. Os tons modais, provenientes do oriente, trazidos para o Brasil pelos primeiros colonizadores, foram preservados na cultura musical e na tradição nordestina. Representam uma grande riqueza para a música em relação às composição na escala única de Dó Maior ou Dó Menor que se fixou na tradição ocidental e europeia. O canto gregoriano também preservou os tons modais. O compositor Reginaldo Veloso é um exemplo típico dessa tradição, que compõe um tom modal de Ré mesmo sem se dar conta disso. "Artesão musical", como ele mesmo se define, compõe "de ouvido". (...)
O fato é que, pouco a pouco, o repertório dos hinários litúrgicos estão se firmando Brasil afora, educando toda uma geração de fiéis nas assembleias litúrgicas a uma poesia e música de qualidade. 
 
 "Vocês são o sal da terra" 
 
 (...) Essa metáfora pode ser aplicada à vida e à missão de Frei Joel nos seus 96 anos de vida e 57 anos de atuação no Brasil. A vida e o talento dele, feitos sal, dissolveram-se na vida da Igreja no Brasil e na vida de tantas pessoas que com ele conviveram. Basta pensar o grande número de candidatos à vida franciscana que passaram pelo Seminário Seráfico, em Santos Dumont, e foram iniciados na teoria e na prática musical, nos instrumentos e no canto. Ou, então, ter em mente todos aqueles talentosos compositores que foram incentivados e projetados por Frei Joel em direção ao atual papel que eles desempenham na Igreja do Brasil. Adicionalmente, escutar toda uma multidão de fiéis que, de norte a sul do Brasil, entoam suas composições no momento da celebração eucarística. 
A Província Santa Cruz, de um modo especial, é devedora e grata a esse irmão franciscano. Pode-se afirmar, com clareza, que ela é portadora de uma tradição litúrgica e musical, fruto do trabalho incansável e persistente desse irmão menor. Por tradição litúrgica entenda-se a beleza e a simplicidade do canto, que mais eficazmente abre o espírito humano para a mensagem revelada. É a via pulchritudinis, o caminho da beleza que leva a criatura ao Criador, na forma do canto e do lamento dos empobrecidos. É a tradição franciscana mais autêntica, radicada no Cântico das Criaturas, de Francisco de Assis, outra das composições mais famosas de Frei Joel. 
 
Frei Joel lanchando no refeitório do Seminário Seráfico

São muitos os que tiveram as suas vidas salgadas pela vida e pelo talento desse irmão franciscano. Com a alegria do dom dessa vida feita sinfonia em nosso meio, o espírito faz aquilo que, naturalmente, é impelido a fazer: cantar alegremente, como o peregrino na praça da cidade. 
 
Fonte: FREI JOEL POSTMA: Composições e Arranjos, vol. 1, "Frei Joel Postma: uma vida sinfônica", por Frei Fabiano Aguilar Satler, o.f.m., Belo Horizonte: Gráfica do Colégio Santo Antônio, pp. 7-23. Direitos autorais: Província Santa Cruz. A coleção completa consiste de 15 volumes, contendo o vol. 2 (cantata O Peregrino de Assis), vol. 3 (cantata Francisco, Jogral de Deus, vol. 4 (opereta Legenda de Santa Clara), vol. 5 (cantata Os Louvores de São Francisco), vol. 6 (Missa João XXIII), vol. 7 (Missa em honra de São Francisco), vol. 8 (Missa do Matrimônio), vol. 9 (Missa do Coração de Jesus), vol. 10 (Missa da Ressurreição (Exéquias), vol. 11 (Missa da Páscoa-Ressurreição do Senhor), vol. 12 (Cantos Quaresmais), vol. 13 (Cantos para a Semana Santa), vol. 14 (Missa de Pentecostes I), vol. 15 (Missa de Pentecostes II).

Links disponíveis:
 
A morte de São Francisco de Assis (Orquestra e coro/cantata O Peregrino de Assis) 
 
https://www.youtube.com/watch?v=EwGFFT5NkXE (Coro de Câmera Pró-Arte/cantata o Peregrino de Assis)
 
Embaixada do Desesperado (Orquestra e coro / cantata O Peregrino de Assis)
 
Cântico das Criaturas (Coral Trovadores da Mantiqueira)

O Senhor é meu Pastor (Salmo 23/solista Frei Joel)

Missa S. João XXIII (Glória)

Fotos selecionadas
 
Da esq. p/ dir.: o gerente do Blog, Francisco Braga, sua esposa cantora Rute Pardini e Frei Joel Postma presente à posse do primeiro como membro efetivo da Academia Divinopolitana de Letras em 14/12/2016

Pose ao final da apresentação da cantata O Peregrino de Assis: embaixo o pianista acompanhador Francisco Braga, a cantora Rute Pardini e Frei Joel Postma; ao fundo, 6 seminaristas tenores do Coral Trovadores da Mantiqueira

Regente Frei Joel e seu Coral Trovadores da Mantiqueira, num dos famosos Encontros de Corais promovidos pelo Seminário Santo Antônio de Santos Dumont-MG / Crédito: Cristina (cantora)     

Idem / Crédito: Cristina (cantora)                                                                                                                              



















Coral Trovadores da Mantiqueira durante uma apresentação

Frei Joel tirando dúvidas de seu pianista antes dum ensaio

Idem com frei Joel pensativo.













Frei Joel analisa a partitura sob supervisão coletiva de América e do casal Almir e Rose

Ensaio do pianista sob a supervisão atenta de Frei Joel durante um ensaio

Amigos da primeira hora: Francisco Braga, Frei Joel e Rute Pardini, que representou a personagem Hortulana, mãe de Santa Clara de Assis, na opereta Legenda de Santa Clara


II. AGRADECIMENTO

O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação de todos os registros fotográficos utilizados neste trabalho.

domingo, 20 de outubro de 2024

Apresentação do livro LUÍS DE CAMÕES FABULOSO E VERDADEIRO


Por BERTRAND Editora
 
Convite para a apresentação do livro na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP)

Num tempo em que se professava nas universidades «a opinião de que o tudo o que havia a dizer sobre o autor dos Lusíadas estava dito», Aquilino Ribeiro ousou dizer «não». Entre 1949 e 1950, o escritor publicou dois livros em que defendeu «a revisão a fundo e com meticulosidade» da história de Luís de Camões, chocando o «público ilustrado», ao afirmar que o poeta «não era aquilo que ensinavam na escola». 
 
Alicerçando-se na releitura atenta dos estudos de, entre outros, Teófilo Braga, José Maria Rodrigues, Wilhem Storck e Hernâni Cidade, e em «três cartas particulares» de Camões, Aquilino, primeiro em Camões, Camilo, Eça e Alguns mais e depois em Luís de Camões. Fabuloso * Verdadeiro, contrariou a imagem de um poeta de origem aristocrática que era veiculada pelo regime e apoiada por académicos de Coimbra, e construiu um retrato real, de um «gentil homem pobre, mas invejável», que gerou grande polémica. Um retrato que ainda perdura. 
 
Passados 74 anos da publicação de Luís de Camões. Fabuloso * Verdadeiro, o mais impetuoso dos dois estudos, e numa altura em que se comemoram os 500 anos do nascimento do poeta, a Bertrand Editora lança uma nova edição do livro, que celebra a vida e obra de Camões, e é prefaciada pelo jornalista António Valdemar, que privou com Aquilino. 
 
A obra será apresentada pela Profª Dra. Vanda Anastácio, especialista em Camões, e contará com a presença do Prof. Dr. Diogo Ramada Curto, diretor da BNP, onde Aquilino trabalhou, de António Valdemar, que escreveu o prefácio a esta edição, e de Eduardo Boavida, nosso Diretor Editorial,  e de Aquilino Machado, em representação da família do autor.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

UMA PUBLICAÇÃO DE 11 ANOS DE ATIVIDADE DA UCCLA - UNIÃO DAS CIDADES CAPITAIS DE LÍNGUA PORTUGUESA


Por NOTÍCIAS UCCLA
Transcrevemos, com a devida vênia da "UCCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa", a presente "Notícias UCCLA" nº 105, de 15 de outubro de 2024. 

 

No mês de outubro de 2024, Vítor Ramalho, Secretário-geral da UCCLA, irá cessar funções, decisão voluntária que será oficializada na Assembleia Geral da instituição, no próximo dia 25 do corrente mês, na Ilha do Príncipe, em São Tomé e Príncipe. 

Na presente “Notícias UCCLA”  a última publicada durante este seu mandato enquanto Secretário-geral, que termina com a XL Assembleia-geral a ter lugar na Ilha do Príncipe, no próximo dia 25 de outubro  trouxe a notícia de sua despedida:

"A presente “Notícias UCCLA” é a última que será publicada durante este meu mandato enquanto Secretário-geral, que termina com a XL Assembleia-geral a ter lugar na Ilha do Príncipe, no próximo dia 25 de outubro. Ao fim de quase 12 anos de funções decidi, depois de muito avaliar, informar o Eng. Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que não integraria a lista candidata a novo mandato. A razão desta minha decisão tem em exclusivo a ver com o facto de sempre ter entendido que os mandatos, ainda que renováveis e sem limites, não isentam os seus titulares de voluntariamente lhes porem termo se assim o entenderem. Sem falsa modéstia, procurei honrar as funções que me confiaram que com muito gosto exerci, porque elas têm a ver com a conceção universalista das culturas dos povos de língua oficial portuguesa, resultantes de encontros seculares. (...)"

Juntamente com o anúncio, foi publicada uma brochura especial que reflete as principais iniciativas e realizações durante os onze anos e meio da sua liderança. 

A brochura “UCCLA 2013 - 2024”, descrita como um testemunho de trabalho, oferece uma visão abrangente dos projetos concretizados com a participação dos colaboradores da UCCLA, do apoio solidário dos representantes das entidades associadas e dos amigos da UCCLA. 

Entre os destaques estão os caminhos percorridos para reforçar os laços entre as cidades e os países de língua portuguesa, promovendo uma plataforma de cooperação multilateral que transcende fronteiras geográficas, culturais e económicas. A publicação espelha a contribuição de Vitor Ramalho para a afirmação da língua portuguesa e para a criação de novas parcerias estratégicas entre as cidades membro da UCCLA. 

O documento faz, ainda, uma retrospetiva dos eventos culturais, económicos e sociais promovidos pela UCCLA sob a sua liderança, bem como da ampliação da presença internacional da organização num cenário global cada vez mais interligado. 

Assim, com a brochura, Vitor Ramalho assinala o encerramento de um ciclo marcado pelo fortalecimento das relações entre os países de língua portuguesa, deixando à UCCLA uma base sólida para que o seu sucessor, para quem deseja os maiores êxitos, continue a trajetória de crescimento e cooperação concretizados pela instituição. 

Consulte a publicação através do link https://issuu.com/uccla/docs/uccla_2013_2024online

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

EDMÍLSON CAMINHA RECEBE EM LISBOA O PRÊMIO GALA DA LUSOFONIA


Por DANILO GOMES *

Edmilson Caminha, o homenageado

 

No próximo dia 12/10/2024, o professor, jornalista e escritor Edmílson Caminha, há dezenas de anos residindo em Brasília, receberá em Lisboa, no Cassino Estoril, o Prêmio Lusofonia 2024 – Prêmio Especial Língua Portuguesa. É o chamado Prêmio Gala da Lusofonia, instituído pela Associação Internacional da Língua Portuguesa - AILP e que contempla anualmente intelectuais e artistas das nações lusófonas: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Timor-Leste. A proposta, este ano, partiu do embaixador brasileiro Lauro Barbosa da Silva Moreira e foi aclamada por unanimidade pela AILP. Trata-se de importante láurea, um galardão de cariz simbólico, constituído por um troféu e um diploma. Edmílson Caminha, 72 anos, formado em Letras, nasceu em Fortaleza, foi consultor legislativo da Câmara dos Deputados, é autor de vários livros, especialista em Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Antônio Carlos Villaça e Rachel de Queiroz e é membro da Associação Nacional de Escritores-ANE, da Academia Brasiliense de Letras, da Academia Cearense de Letras e da Academia de Letras do Brasil. 

Edmílson Caminha é verbete do livro Dicionário de Escritores de Brasília, já em 4ª edição, de autoria de Napoleão Valadares.

* Danilo Gomes é natural de Mariana-MG e colaborador do Blog de São João del-Rei, tendo sido redator de publicidade, advogado, jornalista profissional, assessor do secretário de imprensa e divulgação da Presidência da República (1985-2004). Atualmente, exerce diversas atividades literárias, destacando as de cronista, pesquisador literário, comentarista de livros e colaborador em periódicos. Pertence à Associação Nacional de Escritores, à Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, à Academia Marianense de Letras, à Academia Divinopolitana de Letras, à Academia Mineira de Letras, à Academia de Letras do Brasil, ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, à Academia Brasiliense de Letras. É cidadão Honorário de Belo Horizonte. 

 

NOTA EXPLICATIVA do gerente do Blog 


Para maiores informações sobre a produção literária do escritor Edmílson Caminha, favor consultar sua biografia na ANE-Associação Nacional de Escritores no Link: https://anenet.com.br/edmilson-caminha/

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

AMENIDADES CAMONIANAS


Por VIVALDI MOREIRA *

Coletânea de conferências proferidas no Congresso Nacional em homenagem ao IV Centenário (1572-1972) de Os Lusíadas

Presidente Murilo Badaró, eminentes Senadores José Lindoso e Magalhães Pinto, Deputado José Bonifácio, Ministro Décio Miranda, minhas Senhoras, meus Senhores, mocidade do Brasil.
 
Honra e engrandece o Congresso Nacional esta Semana de Estudos Camonianos ¹, feliz iniciativa da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, sob a dinâmica presidência do Deputado Murilo Badaró, inteligência vibrátil, homem público dos mais lúcidos, herdeiro e continuador da mais pura e elevada tradição dos políticos da minha terra. Alia S. Exª à ação mais intensa e profícua ampla cultura e amor pelo saber, o que o torna, ilustre Deputado Murilo Badaró, portador de fulgurante porvir nos quadros da Nação. 
Desejo agradecer ao jovem Presidente e aos eminentes membros da Comissão o honroso convite para esta noite, vendo unidos, num ato de cultura, o povo e seus representantes no Congresso Nacional, o que foi também, nós o sabemos, uma das aspirações evidentes de Luís de Camões, o Vate da língua. 
Quero também agradecer, comovido, as palavras do eminente Senador José Lindoso, homem público respeitado em todo o País, inteligência brilhante, professor de Direito, membro da Academia Amazonense de Letras, meu confrade, portanto. Suas palavras, meu querido Senador, tão generosas, acabam de evidenciar que o nosso imenso País é um todo compacto e diferenciado na policromia de sua unidade indissolúvel. Ele estendeu a mão do extremo da Pátria ao confrade mineiro, para significar, com um gesto, que o elo que nos prende não é gerado nas entranhas da compulsão, mas se inspira na esplêndida fraternidade democrática, o destino do Brasil. 
 
Vou, aqui, tentar celebrar minha missa camoniana. 
É preciso falar sobre o gênio? Discorrer sobre sua vida e peripécias? Creio que não. O gênio é evidente por si mesmo. Ao gênio, como à divindade, nós oramos simplesmente. Dirigimos-lhes preces. Discorrer acerca do gênio seria como se nos puséssemos a decantar a claridade do sol. Diremos somente Camões, e tudo já se acha implícito na enunciação do nome. 
Quis a bondade vossa que um estudioso da província viesse aqui orar convosco nas solenidades com que se comemora o Quarto Centenário da publicação do poema excelso  Os Lusíadas. Formularei, como puder, os termos da prece, inspirando-me unicamente na leitura dos versos imortais daquele que, neste instante, minhas palavras procuram rememorar. 
Eruditos e especialistas já depuseram e deporão, aqui, nesta audiência, a respeito do vate incomparável. Resta-me simples nesga. Tentarei, por isso, algumas amenidades camonianas. Entendo porém, que o trato pessoal é o dado mais precioso. Todos nós tivemos a experiência camoniana e a oração melhor que votaria ao gênio seria relatar-vos a minha. 
Sua vida? Não vale a pena. Fruto de numerosas conjecturas em quatro séculos, desde Pero de Mariz, passando por Severim de Faria, Faria e Souza, Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Juromenha, Storck, Teófilo Braga, Carolina Michaëlis, até o grande mestre da camonologia contemporânea, o ilustre Professor Hernani Cidade. A este me apraz citar: Escassíssimos os documentos relativos ao Poeta. Viveu no esplêndido isolamento dos gênios, só lhe fazendo referências os seus contemporâneos, depois que, já morto, a ninguém a sua glória podia fazer sombra e ninguém podia negar então a da Pátria, garantida pelo poema em cuja realização todos sonharam (Lições de Cultura Luso-Brasileira, pág. 125). 
Eis aí o epítome da biografia de Camões e a ementa de seu destino. O gênio vem para luzir, fulgurar, abrir clareiras, mostrar caminhos, desvendar horizontes e desaparecer tão misteriosamente quanto misteriosamente apareceu. O homem muito explicadinho, sem véus ou mistérios, é o homem comum. O grande homem, o mais das vezes, nasce não se sabe onde, emite seus raios pela combustão do gênio e, depois, fica encantado, como disse miraculosamente o nosso Guimarães Rosa. 
Briguei com Camões aos dezessete anos. Que mal me fez, sem premeditação, o meu querido professor da nossa língua! A culpa, já confessada algumas vezes, não foi minha. A experiência que irei narrar é a de toda a minha geração e de cada um de nós em particular. O poema, que já provocou a admiração de tantos homens ilustres como Montesquieu, Voltaire e Humboldt, segundo me certifiquei depois, na Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Foi-me apresentado Camões como um poeta caolho, soldado infeliz nos amores com Caterina de Ataíde, mudado o nome no anagrama Natércia. Salvara-se de um naufrágio nas costas da China com o horrendo livro de versos à mão. Naquela idade, e com o espantalho da chamada análise lógica pela frente, lastimei que o naufrágio não fosse total, ou não consumasse o trabalho: poeta e poema completamente tragados pelas ondas do mar Índico. 
Meu professor, Albino José Dias Moreira Júnior, cadete republicano, expulso da Pátria pelas revoluções, sabia a língua e, como bom português que era, conhecia perfeitamente Os Lusíadas. A tediosa análise lógica, à procura de sujeitos e objetos que se escondiam mais do que dinheiro em bolso de usurário, me incompatibilizou, de saída, com o que havia de ser uma das mais fortes paixões de minha vida intelectual. Foi no Canto III, episódio de Inês de Castro: 
Estavas, linda Inês, posta em sossego, 
De teus anos colhendo o doce fruito, 
Naquele engano da alma, ledo e cego, 
Que a fortuna não deixa durar muito; 
Nos saudosos campos do Mondego, 
De teus formosos olhos nunca enxuito, 
Aos montes ensinando, e às ervinhas, 
O nome, que no peito escrito tinhas.
 
 O Sr. aí. É o Sr. mesmo! (Eu estava atônito, metralhado pela exigência do professor.) Quem fala? Quem está falando neste verbo estavas?, rugia o professor do alto da cátedra. 
Sabia eu lá quem estava falando? Assim, sem nenhuma preparação, entrávamos, de súbito, no âmago do poema, para explicar as extravagâncias e profundidades do poeta genial. Haviam, também, me ensinado o horror ao cacófato e às assonâncias, e o último verso da estrofe, o nome que no peito escrito tinhas, este escrito tinhas me implicava. Rui Barbosa havia iniciado um período pospondo a variação pronominal, para evitar o cacófato e isto era para mim o cânon, a regra áurea e definitiva. Nas Cartas de Inglaterra, no estudo sobre Carlyle, o mestre da prosa brasileira, modelo dos puristas, escreveu: Eu tinha-me aventurado muitas vezes por essas paragens singulares, etc. Em vez de eu me tinha, a fim de fugir à dissonância. É que tínhamos no Ginásio outro professor fanático pelo grande Rui Barbosa. Recitava-lhe de cor vários trechos, e só Rui era a sabedoria. A hoje tão proclamada contestação, que na época não trazia este nome, começou aí. Nem Camões nem Rui, por desaforo. Vede só, dois pecados de uma só vez. Com Rui Barbosa, só vim fazer as pazes após a biografia do homem, escrita por Luiz Viana Filho. Mas com Camões eu as refiz, logo após sair da Faculdade de Direito e ir advogar no interior, na solidão de uma cidadezinha mineira das margens do rio Doce. Uma edição prefaciada por D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos na prateleira de um amigo português, apanhada por desfastio, me reaproximou do vate. 
 Isto é que é poeta, começou logo a dizer o jovem causídico, entusiasmado como aquele personagem de Chesterton, que acabara de descobrir a própria ilha em que habitava. O que me feriu logo a sensibilidade foi a última estrofe do Canto Primeiro: 
No mar tanta tormenta e tanto dano, 
Tantas vezes a morte apercebida! 
Na terra tanta guerra, tanto engano, 
Tanta necessidade aborrecida! 
Onde pode acolher-se um fraco humano, 
Onde terá segura a curta vida, 
Que não se arme, e se indigne o céu sereno 
Contra um bicho da terra tão pequeno?
(Canto Primeiro, 106)
 
Quero que penetreis no âmago, na mágoa profunda destes oito versos para deles haurirdes toda a sabedoria que encerram. Depois de lê-los atentamente, naquela noite feliz da redescoberta, foi que vi o tempo perdido em não cultuar Camões. 
Na escola, quase vinte anos antes, não atinara que me defrontava com um dos textos mais belos em matéria de realização literária, uma das peças mais finas da poesia universal, em que o lírico se insere no épico com a naturalidade das águas que nascem e correm em plano inclinado. 
Volvi, então, ao que me entediava e encetei a leitura do poema desde As armas e os barões assinalados... Quando me deparei na sua integridade, com o episódio de Inês de Castro, foi como se o visse pela vez primeira. O frescor da brisa matinal inundou meu ser: 
Tu, só tu, puro Amor, com força crua, 
Que os corações humanos tanto obriga, (...)
Assim como a bonina, que, cortada, 
Antes do tempo, foi cândida e bela, 
Sendo das mãos lascivas maltratada 
Da menina, que a trouxe na capela, 
O cheiro traz perdido, e a cor murchada: 
Tal está morta, a pálida donzela, 
Secas do rosto as rosas, e perdida 
A branca e viva cor, com a doce vida.
(Canto III, 119, 134) 
 
Que há de mais cantante, mais puro e doloroso em qualquer outro lírico de qualquer outra língua? E, ao mesmo tempo, que há de mais épico do que aquilo que fica em estrofes anteriores, quando o poeta põe na boca de Inês de Castro as palavras, nas quais roga clemência ao Rei Afonso, pai de seu amante, avô de seus filhos, a fim de comutar a pena de morte sumariamente realizada pelos verdugos do monarca, vencedor de mouros, desabrido no combate: 
Se já nas brutas feras, cuja mente, 
Natura fez cruel de nascimento, 
E nas aves agrestes, que somente 
Nas rapinas aéreas tem o intento, 
Com pequenas crianças viu a gente 
Terem tão piedoso sentimento, 
Como co'a mãe de Nino já mostraram 
E co'o irmãos que Roma edificaram: (...)
Ó tu que tens de humano o gesto, e o peito, 
(Se de humano é matar uma donzela 
Fraca e sem força, só por ter sujeito 
O coração a quem soube vencê-la) 
A estas criancinhas tem respeito, 
Pois o não tens à morte escura dela: 
Mova-te a piedade sua e minha, 
Pois te não move a culpa que não tinha.
(Canto III, 126, 127) 
 
A madrugada, anunciada pelo amiudar dos galos, me surpreendeu no Canto V: 
Porém, já cinco sóis eram passados 
Que dali nos partíramos, cortando 
Os mares nunca de outrem navegados 
Prosperamente os ventos assoprando.
(Canto V,  37) 
 
Eu ia recompondo minha vida aos passos do poema camoniano e me recordava de que, por certas insubordinações e transgressões disciplinares, me fora imposto decorar, num domingo, privado da saída e passeio pela cidade, como supremo castigo, dezesseis estrofes do episódio Adamastor. Que estupenda pedagogia vigorava ainda no Brasil na década de 20! Sabia-se de cor, como ainda hoje, mas sua leitura, no contexto global do poema, e as trinta e seis estrofes anteriores, afiguraram-se-me algo novo, um romance de aventuras, cujas páginas ia devorando na sofreguidão da noite, povoada de ninfas e duendes, mescladas às reflexões, produzidas ao contato do gênio. Ah! A felicidade da descoberta! Enxerguei Camões pela primeira vez. Até ali, Os Lusíadas eram para mim um monumento da língua. Passaram a ser algo mais, algo que possui vida, que pulsa, que comunica a verdade, que nos segreda aos ouvidos nas horas incertas, e percebi a sua duração, a sua perenidade e como puderam reerguer uma pátria e ser o alimento de seus filhos nas horas tormentosas das desventuras e deleite nas horas tranquilas de fruição e prazer. Naquela noite de setembro de 1939, selei minha amizade com Camões. 
Deixemos de lado as especulações se Os Lusíadas são a história poetizada das glórias de um povo. São também isto, evidentemente. Mas não são propriamente história em verso. Hoje, podemos asseverar que valeram como grito existencial, emitido na hora certa. 
Diferente de todos os poemas épicos, desde a Ilíada e a Odisseia, porque Camões cantou efetivamente a epopeia de um povo, seu personagem central, invisível embora, é a totalidade da nação lusitana, representada às vezes na pessoa do ilustre Gama e seus sequazes  a marinhagem que singrou mares, dobrou o Cabo Tormentório, chegou a Calecute, extasiou-se com as riquezas do Oriente. A verdade expressa, logo na terceira estrofe do Canto I, é: Que eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Netuno e Marte obedeceram. Tal categoria foi reconhecida pelo próprio censor da Inquisição, Frei Bertholameu Ferreira, na licença para impressão do poema: Vi por mandado da santa e geral Inquisição estes dez cantos de Os Lusíadas de Luís de Camões, dos valorosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa... 
Se fossem só história em verso, como pretenderam não só os detratores, mas alguns comentadores sem perspectivas, é claro que Os Lusíadas não teriam vindo até os quatrocentos anos. Muitos outros exercícios pretensiosos, com finalidade semelhante, foram tentados, antes e depois de Os Lusíadas. E, no entanto, não alcançaram a mesma nomeada. A detração veio de longe, e até o frade arreliento José Agostinho de Macedo, no início do século XIX, tentou denegrir o vate nacional, publicando o hoje ilegível Oriente, após as difamações mais rubicundas e saloias produzidas nos panfletos Censura dos Lusíadas e Reflexões Críticas sobre o Episódio do Adamastor que mereceram, na época, as reprimendas mais aceradas do honesto e eruditíssimo Cardeal Saraiva, D. Francisco de São Luís, Patriarca de Lisboa, fino escritor, nas suas admiráveis páginas da Apologia de Camões, liquidando as pretensões do zoilo despeitado com a glória consolidada. 
Inúmeras outras informações eruditas, achegas curiosas para ilustrar a história e a compreensão do poema, poderiam ser aqui enumeradas, colhidas ao longo da leitura dos mais famosos comentaristas de Camões e sua obra. Tudo, porém, seria matéria de repetição e que os especialistas dizem melhor. Achados surpreendentes que esmaltam a leitura foram e continuam sendo o cuidado de muitos estudiosos. Já sobre o nome do poema começa a disposição erudita. Reproduzo, agora, uma página de meu diário, quando me preparava para compor estas palavras. Traduzem elas fielmente minhas preocupações.
“22-7-72 O que realizo não é nem a centésima parte do que idealizo ou planejo. Esta manhã, li minucioso estudo de Alfredo Pimenta, erudito respeitável, sobre a origem da palavra lusíada, que André de Resende afirmou haver empregado pela primeira vez. Que debate mais bizantino para quem não está vivendo o problema como eu estou agora. A verdade é que tudo sobre Camões me interessa neste momento. Possuo sobre ele e sua obra mais de vinte volumes especializados e talvez outros tanto de referência. Todos lidos no tempo devido e sem pressa. Agora, estou relendo ou repassando os olhos em todos. E a angústia me atormenta, não por desejar dizer tudo, o que seria tolice, mas por querer dizer o essencial daquilo que penso. Original, a meu modo. E o original seria uma reflexão atual sobre a importância do Poeta num mundo que conhece a psicanálise, a energia atômica, a velocidade da cápsula espacial, as viagens estratosféricas e outros avanços da técnica e da ciência. Que poderia dizer? A sua língua é nossa, evidentemente. Camões prestou-nos o serviço de fixar a nossa linguagem. Está mais próximo de nós, decorridos quatrocentos anos de sua obra máxima do que ele estava de Fernão Lopes ou André de Resende. Nosso idioma, isto é, sua funcionalidade e poder expressivo, nasceu com ele. Isto prova sua atualidade. Camões é atual não só pela língua, mas pelos sentimentos que expõe em seu poema, em seus sonetos e outras composições. Os problemas pessoais e muitas das relações com o cosmos são os mesmos até hoje. De modo que não é difícil fazer-se um cotejo do núcleo da obra camoniana com os tempos atuais. A questão é saber se terei força para efetuar esse trabalho de cotejo. Gostaria, agora, de compor um ensaio bastante lúcido sobre o tema; o vivo e o morto em Camões. Arrastaria o homem para os dias de hoje, mergulharia em sua obra ou submetê-la-ia aos testes atuais como num laboratório. Mas, para que tanto esforço, se os problemas com que nos defrontamos exigem medidas e soluções completamente estranhas, há quatro séculos?
Nesta pequena nota íntima exponho as dúvidas e mostro os andaimes da construção que estou tentando. 
Dona Carolina Michaelis, José Maria Rodrigues e outros mais afirmam ser André de Resende, o mestre da Universidade de Évora, o inventor da palavra lusíada, que Camões adotou para título de seu poema maior, sem usá-la uma só vez no corpo da composição. Com irretorquíveis subsídios, acolhidos em obras anteriores, Alfredo Pimenta desmonta a autoria de André de Resende e mete no chinelo os abonadores dessa autoria. Pergunto eu: em face da sugestão imponente do poema, daquilo que ele provoca em nossa alma, que vale a indagação de seu título? 
Príncipe dos poetas épicos, afirmam-no desde sua morte. E príncipe por quê? Porque seu poema merece leitura por si mesmo, independentemente do assunto, do tema e das virtuosidades do poeta. Repensou e trabalhou o petrarquismo, diremos nós. Até ali, Sá de Miranda e seus antecessores quinhentistas petrarquizaram somente. Camões, dentro do espírito renascentista, retomou a matéria e nela verteu o talento incomum na arte do verso, seu sentimento, seu gênio, afinal. A teoria do amor, a que foi tão magistralmente enunciada na Ode VI: “Aquele não sei quê, / Que aspira não sei como, / Que, invisível saindo, a vista o vê, / Mas para o compreender, não acha tomo”, e, mais tarde, no Soneto 81 das Rimas: “Amar é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento descontente; / dor que desatina sem doer”, se foi bebida em Petrarca, foi depurada, em seguida, na quintessência do gênio camoniano. 
A originalidade em Camões reside precisamente nisto. Se em Petrarca o leitor sagaz percebe logo que o amor é um fino, um hábil instrumento de sua arte, uma gratuita manifestação vocabular, em Camões, a teoria se faz carne, transubstancia-se, é a obsessão de sua vida, um sentimento profundo, que ele eleva à perfeição poliédrica, através da lírica mais requintada na sua simplicidade. O amor é tão essencial que essa paixão se funde à retórica, que o ornato desaparece da frase, da composição, oferecendo unicamente ao poema os elementos de que necessita para atingir a suprema conquista da estesia. “Manda-me Amor que cante o que a alma sente, / caso que em verso nunca foi cantado, / nem dantes entre a gente conhecido...”
O que nos assombra em Camões é a justaposição, tanto na lírica como na épica, do conceito à imagem. Poesia, no alto dizer de Valéry, é dança, como a prosa é marcha, e nesta cabem os conceitos ficando as imagens para aquela. Ora, Camões, humanista como Petrarca, conseguiu fundir imagem e conceito, realizando a penetração no ser, conforme o ensinamento dos modernos. 
Se a mestria na Gaya Scienza do soneto é unicamente atribuída a Petrarca, parcela não menos considerável de críticos e poetas, com Eugenio D'Ors à frente, reconhece que, dentro da produção poética lusitana, o cânon do soneto de Camões é a forma típica por excelência, antonomástica, por assim dizer, que dá estilo a todo conjunto de ilustres epígonos, a começar por Bocage, passando por Antero de Quintal até Fernando Pessoa. Eis aí a diferença: enquanto os outros permaneceram petrarquistas, Camões tornou o soneto forma sua, peculiar, antonomástica, de modo que, ao dizermos soneto, logo podemos acrescentar camoniano, embora Pierre de Vignes o inventasse em França e Petrarca o marmorizasse na Itália no limiar da Renascença. 
A maneira vital com que Camões concebe os fatos do mundo encontra-se com toda potência em sua obra. Os Lusíadas, poema dito épico, é um produto além do racional. Foi pena que Bergson não houvesse conhecido a poesia camoniana para nela versar a sua doutrina da intuição. O filósofo iria fornecer-nos dados maravilhosos, hauridos nas estrofes de Os Lusíadas, para nos demonstrar que a razão não é o modo superior do conhecimento, que a relação cognoscitiva estava ligada a essa intimidade transracional e com a realidade vivente. A própria vida, no seu fluir, é que é o método do conhecimento. Camões viveu a matéria de seu poema. O que se passa em Camões, não só em Os Lusíadas, mas nos sonetos, odes, elegias, églogas, oitavas, redondilhas, canções e sextinas, é o sopro vitalista da realidade, o problema da vida é o que ele projetou em sua arte total. A matéria poética ali é pura manifestação vital. 
Um de meus propósitos aqui não é recitar os versos, mas somente chamar a atenção sobre eles, oferecendo aos ouvintes a dádiva da descoberta ou redescoberta, como foi no meu caso, das belezas vitais do poema. Não só do artifício vocabular, ou da arte de compor a rima, através de engenhosas metáforas, mas da própria significação do conteúdo, do núcleo da mensagem camoniana, desejo falar. 
Vou ao Canto IX e rogo-vos que leiais o desembarque na Ilha dos Amores e penetreis no que significam a imortalidade e a recompensa ou o prêmio da "Fraca carne humana": 
“Oh, que famintos beijos na floresta, 
E que mimoso choro que soava! 
Que afagos tão suaves, a ira honesta, 
Que em risinhos alegres se tornava! 
O que mais passam na manhã e na sesta, 
Que Vênus com prazeres inflamava, 
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo; 
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.”
(Canto IX, 83) 
 
Eis aí a mais delicada e fina descrição do amor físico, transubstanciado na experiência vivencial do poeta. Por isso em Camões não se encontram somente a doxa, isto é, a notícia, a coisa fria, de segunda mão, referida já por outro e que entra mecanicamente na rima, mas ainda epístemo, isto é, o conhecimento, como ele mesmo colocou nos decassílabos finais do Canto X, como conselho aos pósteros: “Não se aprende, senhor, na fantasia, / Sonhando, imaginando, ou estudando, / Senão vendo, tratando, e pelejando.”
Vêem-se em Dante ou Vergílio os modelos de Camões, para a composição de seu poema. Ouso afirmar que esses modelos se restringem unicamente ao emprego do verso, para exprimir sua concepção do mundo. 
A mensagem moderna de poetas ciclópicos ou megalópicos, digamos assim, da linha camoniana, nós a temos em T.S. Eliot ou Ezra Pound. Em que diferem e em que se assemelham a Camões, para os trazermos aqui à colação? É que no lusitano não se evidencia com tanta clareza a consciência dividida que esses poetas ostentam. A nostalgia, que é a consciência da ruptura com a ordem estabelecida há séculos, Camões a sublimou na sua lírica com acentos parêmicos, ao passo que a ambivalência em Eliot, por exemplo, assume a equivalência de cataclismas. Para Eliot, o arquétipo é a Divina Comédia, do Dante, culminância e expressão maior deste mundo, a que ele opõe The Waste Land, a terra devoluta, que nós dizemos hoje a terra poluída. Eliot colocou em outros padrões a tradução dos mesmos valores que Camões expôs na sua épica e na sua lírica. A sociedade moderna, desde as claras origens renascentistas, como vemos em Camões, vem desaguar nas sórdidas e fantasmagóricas realidades contemporâneas descritas em Eliot. As fontes espirituais em um e outro são as mesmas. A tradução, em termos de comunicação, difere, porque o material utilizado por Eliot foi enriquecido por quatro séculos de conquista científica e empobrecido por outros tantos de desilusões. Digamos ousadamente: se Camões usou as palavras na sua pureza original, na aurora vocabular, Eliot parece que ajuntou cacos de palavras, despojos, fragmentos, o subfolclore, o colóquio mais rasteiro e repugnante, intercalados na linguagem mais castiça, na prosopopeia mais dinâmica, entre citações de Dante, Shakespeare, Santo Agostinho e os Upanishades. Estudamos o mundo da Renascença em Camões, assim como penetramos na essência do mundo de nossos dias, na situação presente, nos versos de Eliot e sua Terra Poluída. Um crítico filólogo poderia asseverar que as palavras em Camões nascem naturalmente como o fruto da flor que se sustenta pelo caule, ao passo que em Eliot elas se apresentam na forma de colagem, usada na pintura moderna, ou através de citações com força de provérbios. Oriundos, ambos da mesma tradição espiritual, Camões partilhava de crença profunda nela, ao passo que Eliot, se não nega a tradição e até a cultua do modo mais peremptório, não acredita em sua eficácia. Não obstante, sua grande poesia é a reconquista da herança europeia, embora negando a lógica e o princípio da analogia, e utilizando o processo destruidor da unidade da consciência pela associação de ideias. 
Volto a insistir: Camões é original em tudo. Não desejo, aqui, trazer fastidiosos laudos de heurística ou cotejos cansativos entre Os Lusíadas e paralelos poemas épicos anteriores. Recordemos, porém, a lição de Hegel em sua Estéticas  “Para que a epopeia nacional ofereça interesse duradouro a povos e idades afastados é preciso que o mundo que ela observou e descreveu pertença a uma nacionalidade particular, mas que seja de tal sorte que este povo especial, no seu heroísmo e empresas, seja profundamente repassado do caráter de humanidade em geral.” Foi precisamente este modelo que Camões preencheu com Os Lusíadas. Se não houvesse neles o tal caráter de humanidade, aludido em Hegel, ninguém mais leria o poema a não ser o erudito. Basta, porém, abrirmos o poema em qualquer canto e ler uma estrofe. Sente-se logo um sopro de vida. Embutido na massa de conhecimentos da época, como síntese do Renascimento e de toda a ciência de então, bafeja-nos conjuntamente o hálito da realidade palpitante, aquele sentimento que não deixa envelhecer as coisas e mantém aceso o interesse da vida. 
Foi longa a preparação de Os Lusíadas na alma de Camões, tão longa quanto é preciso para a obra-prima brotar do gênio. Os ensaios da lírica e da épica, no todo de sua produção literária, com mestre Sá de Miranda como resumo, prenunciavam o aparecimento de Os Lusíadas. Como seria o poema? Conjecturemos, à maneira de Renouvier na sua Ucronia. Poderia ter saído uma cataplasma informe, contando, também, pachorrentamente a história pátria, as conquistas e até a descoberta do Brasil, pois essa façanha já havia acontecido e continuava maravilhando os espíritos da Europa. No entanto, Camões só escreveu sobre o que conhecia. Por que preferiu colocar o tema da epopeia na viagem de Vasco da Gama à Índia? Porque à Índia ele foi. A quinta estrofe do Canto Primeiro, quando o poeta pede às Tágides: “Dai-me uma fúria grande e sonora, / E não de agreste avena ou fruta ruda, / Mas de tuba canora e belicosa, / Que o peito acende e a cor ao gesto muda”, deixa, mais uma vez, clara a sua intenção. A agreste avena ou a fruta ruda eram para a lírica, já longamente exposta na “Verdadeira enciclopédia do amor”, no elegante dizer de Fidelino de Figueiredo. Agora, seu gênio pedia outros instrumentos, a tuba canora e belicosa em que ele iria expressar o momento existencial da pátria. 
O dotto e buon Luigi, como lhe chamou Torquato Tasso, ainda usando a tuba sonora, não desprezou a agreste avena, homem de múltiplos instrumentos que sempre fora. E daí a variedade, não direi bem, mas a originalidade de Os Lusíadas: o épico e o lírico se interpenetrando, para oferecer o poema sui generis, na sua prosopopeia, que os eruditos estrangeiros como Wilhelm Storck, Aubrey Bell e outros nem chegam a fazer paralelos com a Gerusalemme Liberata, do Tasso, ou Orlando Furioso, de Ariosto, seus contemporâneos. Ele não só pensou em verso, como asseverou Aubrey Bell, mas produziu reflexões que assustam até hoje pela atualidade do conteúdo: 
“Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça 
Desta vaidade a quem chamamos fama! 
Ó fraudulento gosto que se atiça 
C' uma aura popular que honra se chama! 
Que castigo tamanho e que justiça 
Fazes no peito vão que muito te ama! 
Que mortes, que perigos, que tormentas, 
Que crueldades neles experimentas!” 
(Canto IV, 95) 
 
Não nos deteremos, também na qualidade vocabular, que se louva em Camões, o conhecimento filológico e as estranhezas, como o emprego da palavra nequícia, no Canto VIII, estrofe 65, para então, versado, como se verifica, da simples leitura do poema, em todos os grandes pensadores e escritores da antiguidade e do seu tempo. Só os gafentos procuram os senões e os cochilos como aquele da estrofe 18 do Canto VI  “Mas porém de pequenos animais”, as duas adversativas de uma só vez. Isto talvez fosse um modismo da época, mantido até hoje na linguagem popular. E tudo foi absorvido na mocidade para, depois, brotar longe da pátria, afastado do convívio dos livros. É evidente que Camões compôs seu poema num ambiente hostil à cultura intelectual, sem os recursos das bibliotecas, valendo-se unicamente da memória. 
Humboldt, espírito dos mais bem dotados, objetivo na sua observação de cientista, não escondeu a fascinação que lhe causaram Os Lusíadas em face de sua experiência de viajante. Convém que o próprio Humboldt nos fale, retirando-se das páginas de seu Cosmos as palavras entusiasmadas: “Este caráter de verdade, que nasce da observação imediata e pessoal, brilha no mais alto grau na epopeia nacional dos portugueses. Sente-se flutuar o perfume das flores da Índia através desse poema escrito sob o céu dos trópicos, na gruta de Macau e nas Ilhas Moluscas. Sem me demorar a discutir uma opinião arrojada de Frederico Schlegel, segundo a qual Os Lusíadas de Camões excedem em muito o poema de Ariosto pelo brilho e riqueza de imaginação, eu posso afirmar pelo menos como observador da natureza que, nas partes descritivas de Os Lusíadas, nunca o entusiasmo do poeta, o encanto de seus versos e os doces acentos de sua melancolia alteraram um ponto a verdade dos fenômenos. A arte, tornando as impressões mais vivas, deu realce à grandeza e à fidelidade das imagens, como acontece todas as vezes que ela se inspira de uma fonte pura. Camões é inimitável quando pinta a relação perpétua que se opera entre a atmosfera e o mar, as harmonias que reinam e entre a forma das nuvens, suas transformações sucessivas, e os diversos estados pelos quais passa a superfície do oceano. Camões é, no sentido próprio da palavra, um grande pintor marítimo.”
Não era meu propósito entrar na explanação erudita. Diante, porém, de testemunhos tão eloquentes da qualidade realista e vivencial da poesia camoniana, característica básica, a meu ver, citar Humboldt para me ajudar, não é atochar o texto de inutilidades. Camões é o mais alto exemplo do escritor que só escreve daquilo que viveu, sabia ou viu. 
Na época de seu poema, o Brasil já é assunto superlativo do Reino de Portugal e preocupação primeira do rei. Em 1572, já estava aqui o 3º Governador Geral, o grande capitão Mem de Sá, enérgico, criterioso e justiceiro, flor da fidalguia portuguesa. São Paulo já estava fundado com o nome de Piratininga, e o Padre Anchieta já ilustrava essas plagas. A Bahia já era Bahia desde Tomé de Souza, o primeiro Governador Geral. Enfim, o Brasil já não era coisa informe, era o Estado do Brasil, ao que se lê nos documentos coevos. Alma e corpo da grande nação já estavam de pé, para ser o que hoje estamos vendo. E nesse ano da morte de Mem de Sá, na Bahia, é que surge o livro de Os Lusíadas. Com tudo isso, com a preocupação infatigável de Dom João III, exemplar monarca, que soube fazer do absolutismo instrumento do bem-estar e prosperidade dos súditos, altivo no trato com as potências de então, Santa Sé, França, Espanha e Inglaterra. Mecenas da cultura e protetor das artes, propulsor da riqueza das colônias até sua morte em 1557  o Brasil era e continuou sendo a menina dos olhos da administração portuguesa. No entanto, por que Camões só uma vez alude ao Brasil, assim mesmo de raspão, como referência, no Canto X, na estrofe 63? A razão nós já a sabemos. Ele nunca veio ao Brasil. E fez a viagem da Índia, viveu a Índia, e daí Vasco da Gama e sua gente tomarem conta do poema. 
Como peça existencial que creio ser, como existencial é sua lírica. Os Lusíadas são uma crônica da atualidade, da vida circundante à época de sua elaboração. Visualiza o espaço de dezoito meses, que dura a viagem do Gama à Índia, de março de 1498 a setembro de 1499, espelhando quatrocentos anos da história portuguesa. Ora, o tempo sempre foi uma categoria infalível, obstinada e intransferível nas epopeias. Uma das epopeias de nosso tempo é o Ulisses, de James Joyce, e conta a história de um homem vulgar no espaço de um dia. A condensação genial de Joyce, precipitando os acontecimentos e as trivialidades, aquilo que consideramos efemérides e o existir comum, ou corriqueiro, no espaço de vinte e quatro horas, é estimado como um dos feitos mais célebres da literatura em nosso século. Ao lado dele, há a saga mundana de profundo sentido existencial também, que é o romance de Proust. A façanha de James Joyce e de Marcel Proust, como epopeia dos tempos novos ou de nosso tempo, pode ser comparada à aventura camoniana de reduzir quatro séculos de história portuguesa, revividos no espaço de ano e meio, misturada a muitas outras informações. Tanto nos modernos como em Camões, o passado está presente para alimentar os feitos gloriosos ou a simples atuação dos personagens de Joyce e Proust. A aventura que preenche o tempo e ocupa o espaço camoniano corresponde, hoje, à proeza de Guimarães Rosa, a braços com Diadorim e Riobaldo, elaborando uma atmosfera, uma cosmologia, uma gnosiologia particular ao nosso tempo, estatuindo novos critérios condicionantes de nosso conhecimento da realidade. A criação quando é parturejada pelo gênio, pois todos eles se tocam pelo cume, quer se trate de Camões, Proust, Joyce ou Guimarães Rosa, estrelas genéricas, isto é, astros centrais de sistemas planetários, capazes de irradiar luz e vida aos planetas que giram em torno deles. Os Lusíadas são a crônica da atualidade no século XVI. Assim como o homem de Dublin estava vivendo um dia do ano de 1900 e o nosso Guimarães Rosa fixando para os séculos a vida transracional, o comportamento superfreudiano dos habitantes do sertão que desaparece por força da técnica: do telefone, do rádio, do automóvel, do avião, da penicilina e das sulfas. De forma idêntica devemos encarar Os Lusíadas
Estamos caminhando, agora, para a epopeia da uniformização. Superados Carlyle, que valorizava os heróis, e Nietzsche, o super-homem, penetramos no reino do homem comum. Camões, lá nos confins do Renascimento, já via, pelo telescópio do gênio, o povo como personagem. Só nos resta imaginar como será proclamada, para as centúrias vindouras, a viagem do homem à Lua. Na época das comunicações, quando um acontecimento é presente, concomitantemente, em todo o globo terrestre e já o ultrapassa até para atingir os planetas, a epopeia acha-se escrita nos televisores e nas páginas dos jornais. Não seria mais o caso de invocar-se, como fez Camões, na estrofe Primeira do Canto III: “Agora, tu Calíope, me ensina / O que contou ao rei o ilustre Gama”, se um bardo destes nossos dias pretendesse contar a façanha dos primeiros astronautas ao pisar a lua. Não. Um semiletrado repórter, assentado em sua mesa, no tumulto da redação, redige uma espécie de relatório, uma notícia, sem nenhum fulgor, relatando o fato, e está gravado para a posteridade o epílogo de um dos mais extraordinários acontecimentos da espécie humana, auxiliado pelo trabalho anteriormente executado pelas objetivas fotográficas e as câmeras de televisão, que projetam as imagens em nossa própria casa. 
Retornemos, uma vez ainda, ao vitalismo insculpido no poema, ao caso pessoal de seu lirismo, inserido nas estrofes que são a descrição do ser e do tempo simultaneamente. Camões entregava sua mensagem, procedia à declaração do homem português do Renascimento, levado pelo poder do gênio, informado pela cultura humanística como já o disse Frey Bertholameu Ferreira no parecer de censor:  “... Que o Autor mostra nele (no poema) muito engenho e muita erudição nas ciências humanas". 
Quem compulsar o poema com vontade de ler nas entrelinhas, percebe que Camões deseja advertir os compatriotas de que não estão ainda à altura dos tempos, que sua conduta não corresponde à magnitude da tarefa e que à ação desferida devia corresponder uma consciência nítida do momento histórico. É seu poder crítico que opera ao mostrar as coordenadas espirituais a serem tomadas em consonância ao arrojo da ação. Afigura-se-nos que Camões apresentou o modelo ideal, o alvo generoso, o metro a ser preenchido pela atuação de seus dirigentes e seguidos pela nação como um todo. Camões descortinou, genialmente como sempre, aos contemporâneos os horizontes da Idade Moderna. Por isso entristece-nos que não tenha conhecido Copérnico. Ou não o tenha podido usar em sua temática, talvez por cautela, com os olhos no Tribunal da Santa Inquisição. O sistema ptolomaico, viabilizado na descrição, entra em conflito com outras observações científicas que enxameiam a contextura do poema. O cuidado em não magoar, para não ser punido, as potestades de então não chegam a atingir a integridade realística e macular a ordem experimentalista implantada já no método científico e que, por certo, era também o camoniano. A verdade, todavia, é que seu alvo foi alcançado: consciencializar os compatriotas, dar-lhes o sentido de nacionalidade, ou revitalizar esse sentimento, de modo que Os Lusíadas foram um estímulo aos portugueses, os quais viram a pátria sucumbir com a morte do Cardeal Dom Henrique, e prepararam-na, nas sombras do underground, para ressurgir na revolta articulada por João Pinto Ribeiro, cultor de Camões, ledor e comentador do poema, restabelecendo no reino de Portugal a Casa de Bragança, ramo bastardo da Casa de Avis. Não contivesse o poema os ingredientes para essa motivação, por certo não teria germinado como semente que mantém vida latente, guardada em celeiro seguro para o plantio no tempo próprio. 
Os juízos expendidos acerca da política europeia do momento, nas estrofes 1 a 14 do Canto VII, são uma lição chamada realpolitik, que os alemães ensinaram na era bismarquiana: sobretudo não sair do espírito da pátria, de suas raízes profundas, daquilo que o povo adotou como postulados indesejáveis. 
Enfim, tudo em Os Lusíadas nos fala da realidade do mundo, tratada embora em dois planos, com o recurso à mitologia, talvez para melhor exprimir sua invectiva ou pregar sua doutrina, como fazem os doutos e precavidos. A descrição da Índia Cisgangética, no Canto VII, das estrofes 17 a 25:  “Além do Indo jaz e aquém do Gange / Um terreno mui grande e assaz famoso” é modelo do objetivismo geográfico de Camões, pois ele pintou um grande painel, autêntico mural físico e espiritual de sua época, paradigma para todos os tempos. 
Enfim, se fôssemos pelo caminho das amenidades camonianas, que ocorrem repetidamente com as sugestões da leitura, em muitas noites iguais a esta, teríamos de nos encontrar para as ouvirdes. 
Confio, porém, em que, muitos de vós, que, porventura, ainda mantendes atitude igual à com que enfrentei Camões, por alguns anos aparelheis o espírito para receberdes a hóstia consagrada da poesia. Usou genialmente o épico incomparável todos os recursos artísticos para debuxar esse grandioso mural, pensando em oferecer à Pátria, à “ditosa pátria minha amada”, o instrumento de sua sobrevivência, sobrevivendo, ele próprio, o Poeta, nas estrofes da maravilhosa sinfonia. 
Quero citar meu saudoso mestre Afrânio Peixoto, que muitas vezes me falou apaixonadamente de Camões, antes de minha iniciação, antes de eu ser tocado pela graça de sua poesia, antes de haver penetrado a teogonia camoniana:  “Vimo-lo, divino, sobre uma obra enciclopédica que é Natureza e Arte, Espaço e Tempo, História e Filosofia, Fé e Patriotismo, Aspiração e Esperança... Vemos que não bastamos, e não podemos bem ver, porque a nossa vista é curta, e muito, muitíssimo há que ver e admirar.” (Afrânio Peixoto, Ensaios Camonianos, pág. 54, ed. 1932). 
Finalizo com Aubrey Bell ² “Na sua graça e melancolia, no seu amor da natureza, na apaixonada devoção, na persistência e resistência, na independência e orgulhosa sensibilidade, no seu dom lírico e poder de expressão, na sua coragem e ardente patriotismo, Camões é a personificação e o modelo ideal da Nação Portuguesa.” [A Literatura Portuguesa (História e Crítica), pág. 241]. Finalizo dizendo que o Brasil espera um Camões. 
 
* Jornalista, advogado, escritor e homem público de Minas Gerais. Foi eleito em 1959 para a Academia Mineira de Letras; tornou-se em 1988 seu presidente-perpétuo por eleição unânime de seus membros. Publicou 23 livros de ensaios.
 
Fonte: Homenagem a Camões, Brasília: Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação da Diretoria Legislativa, 1973, pp. 89-106. Conferências promovidas pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados em 1972. Livro impresso pelo Centro Gráfico do Senado Federal em julho de 1973, 160 p. 
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo gerente do Blog


¹  Em 1972 foi comemorado o IV Centenário da 1ª edição especial de Os Lusíadas. O poema épico de Camões provavelmente tenha sido iniciado em 1556 e concluído em 1571. Este opus magnum foi publicado em Lisboa em 1572.
Em comemoração ao IV Centenário de Os Lusíadas no Brasil, foram proferidas conferências promovidas pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, e tiveram lugar no período de 18 a 23 de junho de 1972.

²  Tradução do inglês por Agostinho de Campos e J. G. de Barros e Cunha. Imprensa da Universidade. Coimbra. 1931. 507 p.


III. AGRADECIMENTO


À minha amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho.