Por Antônio Gaio Sobrinho
Este texto foi publicado originalmente no livro ET CAETERA, São João del-Rei: UFSJ, 2016, pp. 148-152.
I. A PARAGEM
Havia, em tempos idos,
em São João del-Rei, uma vargem denominada Quicumbi, situada na região onde
atualmente se encontram, na Avenida Leite de Castro, o supermercado Bahamas, o
quartel da polícia militar, o cemitério municipal, o posto Dom Bosco, a escola
estadual Garcia de Lima, a APAE e o campo do América. Uma das mais remotas
referências conhecidas daquela vargem se encontra numa ata da Câmara Municipal,
de 17 de julho de 1869, quando se resolveu fixar para lugar de despejos
públicos desta cidade toda a extensão do córrego que atravessa esta mesma
cidade, conhecido vulgarmente pelo nome de Praia, e as vargens do Quicumbi e do
Faria, como local de enterramento de animas mortos. Outra referência
importante consta de um estudo de Nelson de Senna, de 1924, onde se lê: Cacumby
– À margem da E. F. Oeste de Minas e no distrito da cidade de S. João del-Rei,
há um lugarejo assim denominado. Na vargem do Quicumbi, no século XIX,
havia um chácara pertencente ao major Joaquim de Castro e Souza, falecido em 5
de janeiro de 1888, que fora casado com Elmira Maximiana Batista, de conhecida
e ilustre família local.
II. O
TOPÔNIMO
A palavra Quicumbi, e
suas variantes populares Cacumbi, Cucumbi e Catumbi, por vezes escritas também
com ípsilon final, ainda gera, entre os entendidos, diferentes explicações
etimológicas. Assim, o acima citado Nelson de Senna, discorrendo, numa revista
do Arquivo Público Mineiro, sobre a Toponímia geográfica de origem
brasílico-indígena em Minas Gerais, esclarece, a respeito da palavra Cacumby: Enquanto
alguns autores sustentam a sua procedência africana, querem outros ver no termo
formação indígena. Caá c-umby, “o mato verde”, em tupi, ou alteração de
Caá-tumby, expressão que Teodoro Sampaio traduz por: “à beira mata” ou “no sopé
do monte”. Sentido que bem se adequa ao caso do nosso Quicumbi. Mas, o
folclorista são-joanense, Ulisses Passareli, se coloca entre os que defendem a
origem afra, alegando que, na língua quimbunda, “cumbi” significaria sol ou uma
dança folclórica utilizada pelos escravos em rituais de passagem ou de
funerais, lembrando ainda que uma tradição popular dá ao termo o significado de
barro mole.
III. O
HIGIENISMO
Com o advento da
República, cuidou o governo federal da implantação, em todo o país, de
cemitérios laicos ou seculares. Em A Pátria Mineira, órgão republicano
são-joanense, dirigido por Sebastião Sette, em 30 de janeiro de 1890, um autor
defendia: A higiene de hoje, como medidas que conduzem ao saneamento da
morte, procura proteger os vivos dos cadáveres humanos. Em nenhum lugar esta
medida é de maior proveito que em São João del-Rei, acabando-se assim com os
cemitérios dentro do recinto da cidade, situados todos no alto, à moda
japonesa. Em 11 de setembro do mesmo ano, o mesmo autor,
provavelmente o Dr. Afonso de Azevedo, oculto sob o pseudônimo Veritas,
insistia que a cidade dos mortos seja separada da dos vivos por uma fila de
árvores que impeçam aos ventos levar em suas correntes as emanações e os
micróbios que infeccionam o ar. Anuindo a essa onda sanitária higienista,
em março de 1897, uma comissão de médicos são-joanenses, constituída pelos
doutores, Cornélio Emílio das Neves Milward, José Teles de Morais Barbosa,
Juvenal das Neves e Galdino Emiliano das Neves Sobrinho, indicava a região da
vargem do Quicumbi como apropriada para a construção do cemitério público, por situar-se
no norte/nordeste da cidade, distante dois quilômetros, separada da povoação
por colinas e florestas que impedem o vento, e ser um terreno úmido e permeável
que facilita a decomposição cadavérica. Diante disso, e para isso, em
9 de fevereiro de 1898, uma lei municipal declara de utilidade pública a
Chácara do Quicumbi, do falecido Joaquim de Castro e Souza. E, em 30 de
novembro do mesmo ano, a Câmara a desapropria para nela estabelecer um lazareto
e o cemitério municipal que, no ano seguinte, já estava pronto, dividido em
quatro partes, reservando-se uma para os enterramentos de não católicos.
IV. O
CEMITÉRIO
Atualmente, a
denominação Quicumbi se restringe quase somente ao cemitério, que, até meados
do século passado, era bem menor, mais afastado da linha da rua, tendo, na área
anterior ao seu muro e belo portão, uma plantação de casuarinas que, batidas
dos ventos, produzia um lamento fúnebre, bem apropriado à circunstância e ao
local. Posteriormente, essa área frontal foi reduzida para a construção de uma
capela velório e novo espaço de sepultamentos. O mesmo foi, depois, realizado
na parte dos fundos, de modo que o cemitério duplicou de tamanho, com perda de
sua estética original. Como se tratasse de um cemitério secular, público, por
muito tempo permaneceu pouco desejado das melhores famílias
são-joanenses que, cristãs e tradicionalistas, sempre preferiam os tradicionais
cemitérios das irmandades religiosas, nunca demolidos do perímetro histórico da
cidade. Por isso que, no Quicumbi, inicialmente, quase todos os enterros se
faziam em simples covas ou tumbas, sem nenhuma construção que lembrasse os
belos jazigos e mausoléus dos antigos cemitérios. Também não restou ali nenhuma
sepultura com data anterior a 1950, de tal modo que o túmulo mais antigo ali
existente é um construído de alvenaria, em estado de ruínas, em cujo epitáfio
lê-se: Aqui dorme o sono eterno José Evangelista de Paiva. 19-1-1885 –
13-11-1950. De todas, porém, a sepultura mais bem conservada e visitada é a
da Jovem Desconhecida, recentemente reconstruída de mármore preto, por uma
devota que se viu dela curada de um câncer. Sobre a lápide marmórea esta
lacônica inscrição:
Cemitério do Quicumbi. Ao fundo, antes da capelinha, à esquerda, vêem-se duas pessoas visitando o túmulo da "Jovem Desconhecida". Crédito pela imagem: Rute Pardini |
Aqui jaz
A Jovem Desconhecida:
Um Anjo entre nós.
✞ 01-01-1970.
Inscrição na campa do túmulo da "Jovem Desconhecida". Crédito pela imagem: Rute Pardini. |
V. A JOVEM DESCONHECIDA
No dia 1º de janeiro de
1970, junto de uma caixa d’água, nos fundos da fábrica de tecidos Marlibrás,
então situada no espaço atualmente ocupado pelo supermercado Bahamas, na
Avenida Leite de Castro, foi encontrado, em lastimável estado de putrefação e
decomposição, o cadáver de uma jovem, aparentando ter entre 15 a 20 anos de
idade. Constataram-se indícios de sevícias e abusos sexuais, que a deixaram
covardemente machucada. Seus restos mortais, exalando o insuportável mau cheiro
da nossa miséria humana, foram removidos para a capela-velório do cemitério
municipal do Quicumbi. Como, depois de uma, por motivos óbvios, curta espera,
ninguém aparecesse que reclamasse os seus despojos, foi ela enterrada, como
indigente, logo depois da entrada do portão do cemitério, à esquerda de quem
entra. A notícia do infausto acontecimento logo correu pela cidade e redondezas
aonde chegavam as ondas da Rádio São João e a voz do vereador e jornalista
Rubens Resende, que fez sobre o caso ruidosos, porém inúteis, esforços para
desvendá-lo. Foi dele, a denominação de Jovem Desconhecida, pela qual a
infeliz vítima da maldade dos homens ficou, para sempre, referida. Nunca,
jamais, ninguém prestou qualquer informação que esclarecesse desta jovem, nada
quanto ao seu nome, naturalidade, procedência, filiação, condição social e
circunstâncias de seu assassinato. Nada, nada. Ainda hoje, transcorridos quase
meio século daquele dia primeiro de janeiro, nunca, ninguém, jamais, conseguiu desvendar
o seu mistério, fato que, certamente, contribuiu e contribui sempre para fazer
de seu túmulo um lugar de visitação e orações que lhe supliquem graças e
retribuam agradecimentos. E os milagres – por que não? – são constantemente
relatados, inclusive em bilhetes que são deixados sobre sua sepultura: curas de
doenças, libertação de vícios, solução de problemas, ajuda em dificuldades. As
perguntas sobre essa misteriosa jovem se sucedem, possíveis explicações são
aventadas, coisas são contadas, gerando elementos propícios para o surgimento
de lendas. Assim se diz que a história da Jovem Desconhecida tem relação com o
sumiço de uma moça em Luminárias; uns suspeitam de uma prostituta, dessas
infelizes que viajam, caroneiras, pelas estradas do país, pagando sua comida
com seus corpos maltratados; outros acrescentando que no local onde seu cadáver
foi encontrado existia um inferninho de suspeitos encontros e atos de
sexo.
VI. A LENDA
Contam que, numa noite
escura e chuvosa dos últimos dias de dezembro de 1969, uma mulher idosa que
residia nas proximidades da Marlibrás, do seu quarto de dormir, ouviu o roncar
de um carro, nas horas avançadas da madrugada. Querubina, que tal se chamava a
idosa senhora, levantou-se e abriu apenas uma gretinha da sua janela, por causa
do medo e da chuva. Mas, tanto que deu para visualizar um velho carro
preto que passava vagaroso, vindo do centro da cidade, de cujo interior partiam
gritos lamentosos e pedidos de socorro. Socorro! Socorro! Gritava uma voz
feminina. Mas quem a socorreria nas altas horas daquela noite escura, no
deserto de uma rua mal iluminada, batida pela chuva? Quem a ouvira na solidão
afastada daquele ermo de vidas? E dizem que, mais abaixo, o carro foi visto
virando numa esquina à esquerda, estacionando a poucos metros da Avenida. E
quem tal vislumbrou, garante, ainda hoje, ter visto quando duas figuras
encapuzadas desceram do carro arrastando um corpo, já então silencioso, porque,
com certeza, já agora morto. O macabro carregamento se afundou por debaixo de
uma cerca de arame farpado e, no silêncio da escuridão, se perdeu no meio do
mato. Na manhã seguinte, ninguém mais soube do carro preto, que nem sinal
deixou no local. Mas, debaixo da cerca, ficaram sinais de capim amaçado e sujo
de barro. E então, se pergunta: terá Querubina sonhado? E a outra testemunha
viu, de fato, ou apenas imaginou coisas? Perguntas, apenas perguntas. E foi
tudo, e nada mais, quanto daquela fatídica noite se fez notícia!
VII. NÊNIA
PARA UMA JOVEM MÁRTIR
Para quem não teve alegrias
na vida, eu ofereço o meu amor. Para quem, na morte, não teve quem lhe
apertasse a mão, eu lhe ofereço o meu abraço. Para quem não teve quem lhe
chorasse o último suspiro, eu lhe dou as minhas lágrimas. Para quem não teve
quem lhe cerrasse os olhos, eu lhe entrego as minhas mãos. Para quem foi comida
das varejeiras, eu lhe rendo meus beijos. Para quem não deixou saudades, eu lhe
ofereço o meu coração. Para quem se findou anônima, eu lhe ofereço o meu nome.
Para quem tanto sofreu da canalhice humana, eu lhe peço o meu perdão. Para quem
foi desumanizada, eu lhe componho a minha ladainha: Santa Jovem Desconhecida do
Quicumbi! Rogai por nós! Amém!
12 comentários:
Como gerente do Blog de São João del-Rei, tenho o prazer de acolher um novo texto de ANTÔNIO GAIO SOBRINHO, tratando de uma ocorrência funérea no réveillon de 1970 na cidade de São João del-Rei: a morte de uma "jovem desconhecida" em circunstâncias incertas, embora trágicas. Seu túmulo tornou-se, a partir de então, ponto de visitação no Cemitério Municipal, conhecido popularmente por QUICUMBI. Dizem que é o túmulo mais visitado em Finados na cidade. É venerada por muitos que a ela se socorrem nos momentos difíceis de suas vidas. A maioria concorda que a moradora do túmulo da jovem desconhecida é pródiga em graças e em atender seus pedidos.
Com seus dotes de historiador, o autor aborda o assunto com grande maestria, mesclando etimologia, história, urbanismo e folclore, finalizando com uma nênia para a "jovem desconhecida" que jaz no túmulo frio do Cemitério Municipal.
Cordial abraço.
Caro amigo fraterno Francisco José dos Santos Braga ,
É sempre com alegria que recebo vossas postagens , principalmente sobre nossa DEL REI - MG.
Conheço bem esta história da Jovem Desconhecida , um crime que a Policia Local nunca desvendou , triste né.
Já compartilhei como de praxe , grande abraço saudoso.
Ray Pinheiro.
Por favor, corrijam o pequeno erro: capim amaçado por capim amassado. Abs.
Bom dia, Francisco
Muito obrigado pela sua colaboração.
Bom fim de semana.
Abraço.
Agradecido pelo envio. Saudações ao amigo e esposa. Fernando Teixeira
Sou Sanjoanense, e moro em Cuiabá-MT
Achei muito completo, emocionante e curioso também o texto...Eu tinha 13 anos, e me lembro muito bem das repercussões que este triste acontecimento causou, na época .
Curioso e lamentável, é que já decorridos quase 50 anos desse acontecimento, o mistério continua sem solução...
Rezemos por ela...Um dia a verdade pode aparecer.
Abraços para todos.
Pedro.
Gaio Sobrinho, como sempre, brilhante no seu relato. Dangelo
Grato, professor!
De um caso tristíssimo retirado da nossa miséria pública, um texto simplesmente maravilhoso! Foi merecedor de seu registro.
Cumprimentos.
Um importante pedaço de SJDR que conta muitas histórias,como a da jovem desconhecida! Ainda,para alusão ao Quicumbi me contava meu finado cunhado Gil,que seu pai Américo guardava seus pertences de pesca no dito cemitério.Estranho,não?
Oi Francisco, muito interessante e bem macabro o texto! Gostei muito!
Obrigado Francisquinho. Muito bom o artigo e triste tbem pela jovem desconhecida. Não sabia desse fato. Abraços.
Parabéns ao autor pela excelência do conteúdo e ao amigo Braga pela postagem. Assunto muito útil e interessante.
Abç. Ulisses Passarelli
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