terça-feira, 7 de novembro de 2017

MINHA MÃE E SEU CÃO CHAMADO VELUDO


Por Francisco José dos Santos Braga


Minha saudosa mãe, Celina dos Santos Braga (⭐︎ 23/01/1928 ✞ 29/05/2014), costumava reunir a seu redor seus filhos quando pequenos para lhes ler determinada página imortal. A página tratava de um cão chamado "Veludo" e fazia parte de um dos tomos de O Tesouro da Juventude, cuja coleção invariavelmente usávamos em nossas pesquisas da escola.

Ela, de todos a mais sensitiva e impressionada com o discurso contido naquele poema em defesa dos animais, descobriu, naquele emaranhado de assuntos e temas complexos da coleção, a página de um dos tomos que retratava um amor verdadeiro: o de um cão chamado Veludo por seu dono. 

Nós, seus filhos, a escutávamos atentos, em silêncio, embora nos escapasse às vezes o sentido de alguma palavra ainda desconhecida.

Sempre que terminava a leitura daquela página imortal, nós a víamos com os olhos marejando lágrimas sentidas e a ouvíamos aos soluços, em silêncio, angustiada. 

Hoje, decorridos talvez sessenta anos, não me é difícil sonhar que a ouço ainda fazendo aquela leitura emocionada. Penso então: dificilmente encontrarão paralelo narrativo como este a fidelidade, a humildade e o perdão, virtudes tão lembradas pelos romancistas e decantadas pelos poetas, elas mesmas tão carentes nos homens enquanto bem presentes num animal.

Eis o que a comovia tanto:


HISTÓRIA DE UM CÃO ¹
Por Guimarães Júnior ²

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo,
Magro, asqueroso, revoltante, imundo;
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim, malgrado seu, o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava...
“Adeus” – me disse , e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verás  como o rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.”

Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A cauda – caminhava errante
À luz da lua – tristemente uivando.

Toussenel, Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa.
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio.
Era uma carta. Carta? Era um artigo

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata
Falava em rios e árvores gigantes.

Gabava o “steamer” que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas.
Contava-me também que a bordo havia
Toda sorte de risos e belezas.

Assombrara-se muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso duma passageira...
Mil cousas mais de que me não recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo,
Em nota bene do melhor cursivo,
Recomendava o pobre do Veludo,
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranqüilo e atento
Me contemplava e – creia que é verdade –
Vi, comovido, vi neste momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois, lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés, silencioso,
Movendo a cauda, – e adormeceu contente
Farto dum puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia.
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.

E respirei. “Graças a Deus! Já posso”
Dizia eu “viver neste bom mundo,
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo.”

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora,
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca, cismadora...

Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia.
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo!

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E – de cansado – foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto de meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável 
Suportar este hóspede importuno
Que me seguia como um miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo.
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguiu-me. Entanto,
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava forças o torpe pensamento:
Peguei num remo – e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso
Como um cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos  meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.

Voltei a terra, entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei – oh grande dor! – haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: eu tinha-o unido

Junto ao meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E fora o cão, fora esse cão imundo
A causa de meu mal! Ah! Se Veludo

Duas vidas tivera – duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri... abri ... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fora crível, oh Deus? – Ajoelhado
Junto ao cão – estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.



NOTAS  EXPLICATIVAS



¹   Durante as décadas de 30 a 50 do século passado, este poema encontrava-se no livro "Crestomatia", do gaúcho Radagásio Taborda, largamente adotado pelas escolas, especialmente no quinto ano primário, conhecido como curso de Admissão ao Ginásio. Era uma antologia de autores clássicos nacionais e portugueses, editada em Porto Alegre, certamente um dos livros didáticos utilizados por minha mãe quando escolar ou normalista. Esta obra era dividida em duas partes. Os textos da primeira parte destinavam-se aos seguintes temas: narrativas e lendas; dissertações, moral e religião; descrições; geografia, história e biografias; humorismo, fábulas e anedotas. Já os textos da segunda parte eram: apólogos, alegorias; sonetos, poesia lírica; descrições; odes, poesia épica; sátiras e epigramas. Através da "Crestomatia", o aluno tinha, assim, um panorama completo das diferentes formas de construir um texto.
Ou seja, "Crestomatia" ia além do poema "História de um Cão", de Luiz Guimarães; havia na referida antologia outros autores inesquecíveis, a saber: Olavo Bilac (Os Três Reis Magos e As Velhas Árvores), Vicente de Carvalho (Velho Tema), Dr. Antônio Araújo Gomes de Sá (Discurso Sem Verbo), Camões (Soneto Célebre, Sete Anos de Pastor e o Episódio de d. Inez de Castro), D. Pedro II (Grande Povo), Machado de Assis (Carolina), Jônatas Serrano (O Cemitério), Afonso Celso (Alegrias), Castro Alves (Duas Flores), Guerra Junqueiro (Regresso ao Lar), etc. Não se pode omitir a leitura das narrativas, especialmente as seguintes: Coelho Neto (O Tempo, A Flauta e o Sabiá), Medeiros e Albuquerque (O Filho do Inspetor), Rui Barbosa (Pátria), Joaquim Nabuco (Os Escravos), etc. Ali se podia ainda saborear a leitura de Minha Irmã Celina, Noemi, O Sineiro da Aldeia, Os Três Grãos de Milho, Corrida de Touros em Salvaterra, Ismália e, na parte final, belos sonetos. 

Imagens de 3 diferentes edições do livro didático "Crestomatia" in http://www.anosdourados.blog.br/2012/02/imagens-escola-livro-escolar.html

²  A Wikipédia traz as seguintes informações sobre esse autor: Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior (⭐︎ Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 1845 ✞ Lisboa, 20 de maio de 1898) foi um diplomata, poeta, contista, romancista e teatrólogo brasileiro.
Bacharelou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1869, na turma de Araripe Júnior. Sua obra evoluiu do Romantismo para o Parnasianismo. Na carreira diplomática, chegou a ministro plenipotenciário, tendo servido em Santiago do Chile, Roma e Lisboa. Já aposentado, ficou a morar nesta cidade, onde gozou da amizade de alguns dos principais intelectuais do período, como Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e Fialho de Almeida. 
Membro fundador da Academia Brasileira de Letras: foi um dos dez membros eleitos para completar o quadro de fundadores da ABL, onde criou a cadeira 31, que tem como patrono o poeta Pedro Luís Pereira de Sousa. Tendo ocupado essa cadeira no último ano de vida, após sua morte foi sucedido por João Ribeiro.
Conhece-se colaboração de sua autoria nas revistas Jornal do domingo: revista universal (1881-1888) e Ribaltas e gambiarras (1881).
Obras:
• Lírio branco, romance (1862);
• Uma cena contemporânea, teatro (1862);
• Corimbos, poesia (1866);
• A família agulha, romance (1870);
• Noturnos, poesia (1872);
Filigranas, ficção (1872);
Sonetos e rimas, poesia (1880);
As quedas fatais, teatro;
André Vidal, teatro;
As jóias indiscretas, teatro;
Um pequeno demônio, teatro;
O caminho mais curto, teatro;
Os amores que passam, teatro;
Valentina, teatro;
A alma do outro mundo, teatro (1913).

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_J%C3%BAnior

Concluo entendendo ser possível imaginar que o poema "História de um Cão" tenha sido inspirado na própria vida do poeta, nômade como acontece com todos os diplomatas, os quais deixam amiúde para trás lembranças, saudades e amores. O eu poético parece deixar envolver-se pela narrativa que espelha a solidão e a saudade, restando difícil afirmar se eram os sentimentos de alguém desterrado ou de seu cão.

18 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Uma determinada narrativa em forma de poema chamada "História d'um Cão", que faz parte do livro "Crestomatia" ou de um dos tomos de "O Tesouro da Juventude", me inspirou a relembrar um momento muito grato vivido por mim, em tenra infância, ao redor de minha mãe Celina dos Santos Braga (⭐︎ 23/01/1918 ✞ 29/05/2014), ocasião em que ela reunia seus filhos para a leitura de alguma página imortal. Decidi, portanto, redigir um texto relembrando aquela vivência. Confira!

Rafael Braga disse...

Simplesmente maravilhoso! É impossível não se emocionar com tão profundo poema! Que bom que você tenha presenciado e dado valor a um grande momento de sua infância! Que tal uma biografia da mamãe? Beijos e parabéns por tão bela publicação!

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

O poema fez parte da minha infância. Era um dos meus favoritos, assim como folhear o Tesouro da Juventude. Bom relembrar estas coisas.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Fantástico!
O poema nos toca profundamente e eu me sinto honrado em ter um amigo que não despreza o amor de um cão.
Essa juventude selvagem não conhece textos como esse e por isso não são tocados,engrandecendo o mundo.
É preciso resgatar poemas belos como esse e mostrá-los ao mundo.
Parabéns!
Obrigado!

Eduardo Oliveira (professor e coordenador de reuniões salesianas) disse...

ô rapaz, que legal.

Você me fez lembrar a mim mesmo lendo algo para os meus filhos, três: dois meninos e uma menina, quando também caminhavam pela tenra idade.
Imagino a cabecinha de vocês viajando na estória que D. Celina ajudava vocês a construírem.
Pena que hoje os pais e os livros foram substituídos pelos celulares.

Forte abraço

Com Dom Bosco sempre

Edu

Nilton Gomes Paz (ex-professor da FGV e atualmente proprietário da DEHONPLAST, uma firma de produtos plásticos em Tubarão-SC) disse...

Oi Francisco
Eu sempre tive como companheiro um Veludo.
Tive o Bolinha, a Nikita, a Tora, a Shely, o Birro, o Birro filho do
primeiro Birro, e, há nove anos, o Jacaré.
Todos com a mesma característica: meus companheiros inseparáveis.
Um grande abraço pra vocês
Atte.

Augusto Ambrósio Fidelis (escritor, cronista, chefe da Gerência do Cerimonial da Prefeitura Municipal de Divinópolis e Assessor Especial do Troféu Orfeu e Eventos da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caríssimo Braga,

Sua mãe estava coberta de razão. Confesso-lhe que também eu, ao terminar a leitura do poema "História d'um Cão", emocionei-me. Pobre Veludo!

Abraço

Carlos Fernando dos Santos Braga (administrador, funcionário da Casa da Moeda no Rio de Janeiro, cedido à UFSJ) disse...

Francisco,

Realmente um poema brilhante, você teve sempre um talento genuíno de garimpar jóias para ampliar nossa capacidade de reflexão. Lamento que minha memória não alcance tal lembrança de nossa saudosa Mãe, lendo este poema para nós.

Acompanhando seus passos, fiz uma pequena pesquisa sobre o Guimarães Júnior e encontrei essa singela poesia de sua autoria:

Visita à casa paterna

Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo:


Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma talvez do amor materno,
Tomou-me as mãos,- olhou-me, grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.


Era esta a sala…(oh! Se me lembro! E quanto!)
Em que da luz noturna à claridade,
Minhas irmãs e minha mãe…O pranto


Jorrou-me em ondas… Resistir quem há de ?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade.


Obrigado por nos trazer de volta tão preciosos e saudosos momentos. Seu irmão Fernando.

Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas (flautista, professora de música e regente) disse...

Triste mas muito lindo o poema. Muito bom também ouvir comentários sobre sua mãe, D.Celina, de saudosa memória.

Márcio Vicente da Silveira Santos (historiador, escritor e jornalista, sócio-fundador da Academia Sete-Lagoana de Letras, sócio efetivo da AMULMIG e sócio correspondente do IHG-DF desde 1995) disse...

Prezado amigo Prof. Braga,

Li seu artigo sobre o Veludo. Conhecia a história,

que estava em algum antigo livro da Escola Primária,

mas em prosa, um conto. Não sabia dessa versão (Ou seria o original?).

Li para minha neta, que tem um cachorrinho de

altíssima estimação. É claro que choramos!

Você resgatou um "pedaço do sentimento" que emoldurou

uma bela quadra de nossas vidas.

Grande abraço.

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Caro professor!
Tocante em todos os aspectos, o seu surpreendente relato e sua citação do tal poema! Associar uma emoção tão antiga ao sentimento da Arte é simplesmente fabuloso. Para além do amor aos animais, o poema me parece, no fundo, uma parábola sobre a maldade humana. Fico imaginando como o Brasil mudou em 60 anos. Certamente, há mães e pessoas que ainda têm a sensibilidade de ler histórias e poesias para as crianças, porém não dispondo de publicações do quilate do "Tesouro da Juventude".
Grato pela emoção.

Merania de Oliveira disse...

Dr. Francisco, o senhor sempre nos presenteia com belas perolas. Minha mãe também lia esta poesia para meus irmãos mais velhos. Eu era muito pequena, pouco entendia. Isto na fazenda Nossa Senhora da Conceição, em Coluna, divisa dos Vales Rio Doce e Jequitinhonha.
Vou tirar uma cópia para meus irmãos.
Obrigada pela postagem..
Obrigada pela postagem.

Prof. José Luiz Celeste (ex-professor da EAESP-FGV e tradutor) disse...

Prezado Maestro

Não li os versos até até o fim. Não li porque já tinha sido lido por minha mãe, e também nos debulhamos em lágrimas, eu e minha irmã, coisa que abomino. Já abominava naquela época, com 4 ou 5 anos.

Deixe-me contar alguns fatos tangentes à sua crônica. Também tínhamos o ”Tesouro da Juventude”. Essa coleção, recebemo-la de nosso avô materno e já tinha sido usada. Quando se casou, minha mãe trouxe-a consigo, sob protestos clamorosos de um de meus tios. Esse tio também abominava essas situações em que se fica compelido a chorar, geralmente provocadas por contos, romances, filmes. Consta que uma vez saiu intempestivamente de uma sessão de cinema, no meio de uma dessas cenas comoventes, em altos brados:

---Eu que não vou ficar aqui para ver essa porcaria!

O filme era "Sem Família". Vocês devem ter assistido, ou lido o livro. A parte mais comovente é quando o personagem central, um menino, dorme abraçado a um cão, no meio da neve, ou de uma nevasca e, por causa disso, não morre, mas o cão morre.

Agora, essa atitude de meu tio, embora grotesca, hoje em dia, eu endosso. A vida já é por demais aflitiva e angustiosa.

Mas, voltemos às leituras de minha mãe. Não sei se vc se deu conta, eu disse que eu e minha irmã chorávamos. Pois é. Por sua vez, minha mãe ria...

Minha mãe lia muito bem. Gostaria de ouvi-la de novo. Por todos esses anos, não encontrei ninguém que a superasse. Na época, década de 1940, não havia gravador, mas como eu gostaria de ouvir uma gravação dessas leituras, uma que fosse. Minha mãe lia com uma leve interpretação. Era como uma entonação das falas, longe de figurações exageradas. Era uma maneira toda dela, muito sutil, mas de tal forma envolvente, que eu ficava extasiado, suspenso, encantado. Era mais que um cinema. Quando chegaram os filmes daquelas histórias, como por exemplo, "O Saci", do livro de mesmo nome, fiquei decepcionado. A minha figuração, nascida da leitura de minha mãe, era muito melhor.

Parabéns pela idéia.

Luzia Rachel dos Santos Braga disse...

Querido Francisco, Com grande emoção li esta história: ela por si só já é carregada de emoção, e ainda mais tendo este histórico envolvendo Mamãe e vocês! Obrigada por nos presentear com recordações de nossa saudosa Mãe.

Espero que possamos ser presenteados por recordações como esta! Você, que tanto conviveu com nossos pais, e sabe discorrer tão bem, talvez possa escrever de vez em quando em seu blog recordações como essas - fatos interessantes, cenas, etc - vividas com Mamãe e/ou Papai. Será um deleite para todos nós. Obrigada.

José Ribas da Costa Filho (ex-funcionário da Aeronáutica e antiquário de Brasília) disse...

Obrigado amigo, lembro-me bem dessa história no Tesouro da Juventude, coleção que tenho até hoje.

Unknown disse...

Linda história. Meu pai nasceu em 1935, e nos anos 50/60 era da companhia de teatro de Barreto Júnior. Desde sua juventude declamava a história do cão Veludo. Hoje, estava lendo um conto de Lygia Fagundes Telles, "Gorro do pintor", e fiquei bem surpresa com a semelhança do enredo, me perguntando se a história original a teria inspirado também?

Anônimo disse...

Meu pai lia pra mim e eu chorava! Encontrei depois de anos novamente o poema e o leio para meu alunos, ainda me emociono!

Ernane Reis disse...

Meu caro Francisco.
Eu declamei, emocionado, você viu, o Veludo na nossa reunião de hoje na Academia Divinopolitana de Letras. Eu gosto de declamar, como Rolando Boldrin declamava. E o Veludo é fantástico. Que bom que minha declamação suscitou lembranças, suas e de muita gente. Abençoadas mães que leram para seus filhos.
A minha nunca me leu nada de que me lembre, mas incentivou-me a estudar, a crescer e me tornei o que sou hoje. Se não sou melhor, não foi por falta de incentivos e orações dela, mas por desídia minha. Eu amo declamar, decoro longos textos e uma vez cheguei a declamar o Navio Negreiro, na íntegra. Obrigado, caro confrade, por postar suas lembranças.