quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

QUE REINE A PAZ PARA TODO O SEMPRE


Por Amaro Luiz Alves


Morei em Belo Horizonte de 1968 a 1973, transferido do Rio de Janeiro para compor a equipe de partida e inauguração da Refinaria Gabriel Passos, em Betim, Minas Gerais, a primeira unidade da Petrobrás fora da faixa atlântica brasileira. Nesse período, dedicava minhas folgas de trabalho para conhecer o interior do estado e dar vazão ao meu encantamento com a sua gente, a sua cultura, os seus sotaques, a sua culinária, a sua religiosidade e a sua Natureza.

No verão de 1969, aceitei convite para passar um fim de semana na fazenda de amigos, em Brumadinho, município próximo à capital mineira. A propriedade era muito bem cuidada e funcionava como instrumento de geração de renda da família, tendo a pecuária e a lavoura de milho como as principais atividades. Apesar da pequena distância da capital do estado, a região era bem modesta, com poucas estradas asfaltadas, tímida infraestrutura social e raros serviços governamentais, onde predominavam casas sem luz elétrica, água encanada ou rede de esgoto. Mesmo assim, as comunidades levavam vida saudável e alegre, com atividade recreativa intensa, por meio de festas comunitárias, banhos de rio, pescarias e jogos de futebol. 

Na noite de sexta-feira, um fazendeiro da vizinhança foi tomar café com quitandas na casa de nossos amigos e a prosa ficou entre pescarias e futebol. Foi então que fiquei sabendo que o fazendeiro Zé Niquim tinha a idade do século, pois nascera em 1900, e desde os 10 anos pescava no rio Paraopeba. Ele falou, com entusiasmo, das épicas lutas com surubins imensos, arrancados das locas pela força de músculos e poderosos cordonês com anzóis de aço. Também relatou sua experiência como fundador, atleta, técnico e presidente do time de futebol do povoado de Areias, o mais próximo da fazenda de meus amigos. No momento, com 69 anos, Zé Niquim se dedicava às funções de presidente de honra do Areias Futebol Clube e sua principal atividade era arregimentar jogadores para o seu time. Por indiscreta revelação dos meus anfitriões, Chico Niquim ficou sabendo que eu jogava futebol no time da Petrobrás.

Na manhã seguinte, Zé Niquim voltou à fazenda para me mostrar os cordonês que usava nas pescarias de surubim, bem antes do surgimento da linha de nylon no Brasil. Mais adiante, percebi que o objetivo da visita era convidar-me para jogar pelo seu time no dia seguinte, pois, no seu imaginário, ser atleta da Petrobrás deveria ser privilégio de grandes jogadores. Ele explicou que procurava reforços, pois seu time havia perdido as últimas quatro partidas contra o seu antigo rival, o Cavalão Futebol Clube, sediado no povoado de Cavalão, a algumas léguas do Areias. A princípio, não me soou bem o nome do time adversário, pois Cavalão deveria ser um time que distribuía coices e patadas, recursos incompatíveis com a boa prática futebolística.

O jogo seria no domingo de manhã e a fazenda oferecia encantos que não seriam usufruídos caso eu aceitasse o convite para defender as cores do Areias Futebol Clube. Havia represa com traíras e carás, pomar de laranjas e tangerinas maduras, córrego límpido para banhos e deliciosas quitandas mineiras sobre o fogão a lenha que nunca se apagava. Todavia, a minha experiência com os eventos brejeiros, como festas populares, pescarias e jogos de futebol de várzea, exigia que fossem feitas as indagações de praxe.

Chamei Zé Niquim para uma conversa no canto da horta e perguntei se o campo do Cavalão ficava longe; se podia ir de carro até o campo; se o time adversário era bom; se ele tinha chuteiras para me emprestar; se costumava haver briga durante os jogos. Ele me disse que eram 9 km de estrada esburacada até a ponte velha; que a ponte estava fechada para trânsito de veículos; que eram mais 3 km depois da ponte, a serem percorridos com os cavalos levados pelo time de Areias; que haveria um cavalo para meu deslocamento da ponte até o campo de futebol, na ida e na volta; que ele tinha chuteiras para me emprestar; que o time do Cavalão era melhor que o do Areias; que haveria briga, como sempre houve nas partidas anteriores, e que os jogadores do Areias fugiriam a galope, desviando-se das pedradas e estilingadas arremessadas pelos jogadores e moradores do Cavalão. 

Comparando as benesses que eu perderia se passasse a manhã de domingo longe da fazenda com os riscos advindos da partida de futebol, achei melhor comunicar ao Zé Niquim que eu não aceitaria seu honroso convite. Expliquei que o principal motivo da minha recusa era a briga certa que teríamos que enfrentar. Em segundo lugar, minha experiência com cavalos se resumia à marcha lenta dos pangarés de hotéis-fazenda e jamais galopara em fogosos corcéis em fuga de combate. Zé Niquim ficou visivelmente abalado com a minha desistência. Pensativo e sério, ele sentou-se no banquinho perto do canteiro de couves por uns minutos.
“Se eu garantir que não vai haver briga, você vai?”, gritou Zé Niquim lá do fundo da horta.
“Claro que vou”, respondi sem pestanejar. 
“Não quero perder a oportunidade de contar com um grande jogador vestindo a camisa do Areias. Vou fazer de tudo para acabar com essa briga”, completou o fazendeiro.
“Não espere de mim o jogo de um profissional, Zé Niquim. Vai com calma nesse seu entusiasmo”, retruquei em defesa própria.

Parece que Zé Niquim nem ouviu minha réplica, tamanha era sua alegria com o imaginário reforço. O fazendeiro esportista correu para casa, selou seu melhor cavalo e dirigiu-se ao povoado de Cavalão, acompanhado de seu genro Geraldinho, goleiro e capitão do time de Areias. Foram horas de conversas, cafés, quitandas, cachacinhas e licores com lideranças e atletas de Cavalão.

Já era tarde da noite de sábado quando a dupla de diplomatas areienses chegou à fazenda de meus amigos com a notícia de que a paz estava selada, pelo menos, para a partida do dia seguinte. 

O domingo amanheceu radiante, ensolarado e frio, tal como acontecia nos veranicos dos grotões da Mantiqueira. Depois do farto café da manhã da fazenda, segui com meu carro para a ponte do rio Paraopeba e passei pelo time do Areias que cavalgava a passo de marcha, levando o cavalo extra que eu usaria após a ponte. A minha montaria seria o baio Gavião, o melhor animal do plantel da fazenda de Zé Niquim. Curiosamente, todos já estavam uniformizados e levavam as chuteiras amarradas pelos cadarços, penduradas nas selas. Fiquei imaginando que o time do Areias já estava acostumado a dispensar volumes e pesos supérfluos para o caso de fuga apressada, abusando dos galopes que eu tanto temia.

Enquanto estacionava meu carro numa sombra, o grupo chegou e desceu à praia do rio para dar água aos cavalos. Em poucos minutos nosso grupo de 12 cavaleiros atravessou a velha ponte e venceu a meia légua que restava até o Cavalão. O campo de futebol ficava no outro extremo do povoado, o que permitiu que a comitiva do Areias desfilasse garbosamente diante dos moradores do pequeno aglomerado de casas, enquanto eu ia me acostumando a dar comandos ao resfolegante e teimoso Gavião.

Observando à minha volta, percebi que algo de incomum acontecia, por dois motivos: os moradores do Cavalão olhavam insistentemente para mim e externavam semblantes bastante amigáveis, deixando-me apreensivo, mas também curioso com o que Zé Niquim teria falado a meu respeito durante a sua visita diplomática da tarde anterior. Chegando ao campo encontramos o time local já uniformizado e batendo bola. O vestiário dos visitantes era improvisado numa moita de bambu às margens de um riacho de águas frias e transparentes. Após a preleção, Zé Niquim, agora incorporado à função de técnico de futebol, me deu a camisa 10, honraria destinada aos melhores jogadores dos times, em clara referência à camisa usada por Pelé, campeão mundial de 1958 e 1962. Expliquei a Zé Niquim que eu era especialista na lateral direita, geralmente usando a camisa 2, mas ele não me liberou da camisa 10.
“Vê se faz uns golzinhos” insistiu Zé Niquim.

O campo do Cavalão era bem “careca”, como dizíamos na gíria do futebol. Tinha um terço de sua superfície coberta de grama, principalmente nas áreas dos gols e nas laterais. O resto era de pura areia com cascalho, transformando qualquer queda em grave esfolamento de pernas e braços. Apenas um juiz cuidava de “distribuir justiça”, sem bandeirinhas para auxiliá-lo. Alguns termos usados dentro de campo eram bem diferentes daqueles de nossas “peladas” no Rio de Janeiro. Uma goleada era uma “balaiada”. Fazer um gol era “furar um gol”. O drible em se passar a bola sobre a cabeça do adversário era "lençol" no Rio e ali era “chapéu”.

O jogo transcorreu normalmente, sem violência ou deslealdade, mas bastante viril. Prestigiando a minha posição de centroavante, todos do Areias lançavam bolas para mim, o que me permitiu fazer dois gols. Com essa vantagem, no início do segundo tempo, Chico Niquim mandou o time recuar e então eu pude retornar à lateral direita, a minha posição predileta.  Procurei o ponta-esquerda para manter minha marcação sobre ele e descobri que ele nunca corria perto da lateral do campo, “embolando” com o meia-esquerda e prejudicando o entrosamento do seu time. Num lançamento vindo do campo adversário, a bola caiu no lado direito da nossa defesa. Corri para alcançá-la e percebi que o ponta-esquerda estava retardando a passada com a clara intenção de permitir-me chegar antes dele. Desconfiado da “gentileza”, eu consegui ver em tempo hábil uma enorme casa de marimbondos rente ao solo, numa touceira de vassourinhas. Com todo cuidado, contornei o ”perigo” e chutei a bola na direção de um de nossos atacantes. Minutos depois, o Cavalão fez um gol e não passou disso.
   
O jogo terminou com a vitória do Areias, depois de muitos anos de derrotas e brigas no campo do Cavalão. Eu ainda esperei algum “troca-tapas”, mas só vi cumprimentos cordiais entre vencidos e vencedores. O retorno à fazenda dos meus amigos foi tranquilo e relaxante, em clima de vitória, superada a ansiedade causada pelas incertezas da partida de futebol. À frente da comitiva do Areias, ia Zé Niquim,  com a incumbência de segurar o ímpeto dos apressados que ameaçavam “abrir galope”, pois sabia que o baio Gavião acompanharia a tropa e me jogaria ao solo na primeira arrancada. Estava bem claro que o vitorioso presidente do Areias não queria voltar ao  povoado carregando o visitante ferido. Chegando, aliviado, à ponte do rio Paraopeba, despedi-me do inquieto Gavião, embarquei no meu carro e segui para a fazenda de meus amigos, no galope motorizado possível diante de tantos buracos e valetas.
    
Zé Niquim pensou assim: “Meu atleta ilustre está seguro no carro, vencemos o jogo e ninguém do Cavalão nos persegue atirando pedras. Por que não liberar o galope?”  

E foi assim que o Gavião, livre do meu peso, passou pelo meu fusquinha em desabalada e alegre correria, no meio da comitiva do Areias, enquanto que eu seguia desviando dos obstáculos da estrada.                                                                                                                                                                      
O almoço de domingo na fazenda de meus amigos foi um banquete tipicamente mineiro. Lembro do tutu, do lombo de porco assado na banha, da couve fininha refogada no alho e do ovo caipira de gema quase vermelha. Pouco depois eu agradecia a hospitalidade de meus anfitriões e tomava a estrada de volta a Belo Horizonte, na expectativa de uma nova semana de trabalho na Refinaria Gabriel Passos.
    
Depois dessa partida, os jogos não terminaram mais em brigas. Os dois times perceberam a vantagem do clima cordial e, com o fim dos conflitos, começaram a aparecer os vendedores de sucos, doces e salgados. As partidas de futebol transformaram-se em eventos alegres e festivos, com a presença de toda a comunidade, bem diferentes daquelas anteriores ao jogo de que participou o “grande craque da Petrobrás”.
      
No fim dos anos setenta, encontrei com Zé Niquim, por acaso, no Mercado Central de Belo Horizonte. Depois de umas cachacinhas com costelinha de porco, ele me revelou que o maior encrenqueiro do time do Areias, no passado, havia sido ele mesmo, o próprio Zé Niquim. Confessou que adorava puxar brigas e fugir, com o seu time, aos galopes pela ponte do rio Paraopeba. Ele confiava muito no grandalhão Geraldinho, seu genro e fiel guarda-costas, durante as “batalhas campais”. Depois que parou de jogar futebol, ele assumiu a presidência do time, mas continuava interessado numa boa briga. 

Tentei rememorar a célebre visita diplomática ao Cavalão naquela tarde de sábado, mas ele se recusou a revelar o conteúdo das conversas. Disse que gostou muito da fase pacífica inaugurada naquele jogo de 1969 e que, desde então, passou a fugir de brigas e galopes, dedicando-se ao seu propósito de viver todo o século e chegar aos 100 anos de idade.

E foi assim que a paz reinou para todo o sempre entre os povoados de Areias e Cavalão. A única armadilha que ainda existe no campo do Cavalão é a casa de marimbondos reservada para os incautos laterais direitos. Se ainda viver, meu amigo Zé Niquim está com 117 anos, lembrando das brigas com o Cavalão.

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
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Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Li o "causo" sobre a disputa entre AreiasXCavalão, da autoria de Amaro Luiz Alves, meu ex-colega de Senado e novo colaborador do Blog de São João del-Rei. Logo de início me interessei pelo "causo", porque ele abriu o conto com a REGAP, em Betim, refinaria que é um dos orgulhos dos mineiros e principalmente, do saudoso mineiro de Itapecerica, GABRIEL PASSOS, que só viu o início das obras, pois morreu em 1962, tendo a refinaria sido inaugurada apenas em 30/03/1968.
O interesse do leitor é mantido de forma crescente por qualquer bom autor de contos. Não seria diferente com o contista em questão, que deixou para o final o remate conclusivo.
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Alan Elias da Silva (ex-comandante do 38º BPM de São João del-Rei) disse...

Muito bom.

Boa noite.

Alan.

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Francisco,bom dia. Adorei o texto do Amaro Luiz e contribuições como esta enriquecem o já rico blog sob sua administração. Me lembrou das peripécias futibolísticas da juventude no Prado mineiro, uma tradição que de fato quase sempre terminava em refregas entre os mais ousados mas que eram compensadas por uma boa cervejada.
Parabéns pela divulgação.

Unknown disse...

Amaro Luiz Alves (autor da crônica)
Agradeço ao amigo Braga a oportunidade de compartilhar as minhas vivências nas Minas Gerais, a minha "segunda Pátria".