Por J.C.O.S.
I. INTRODUÇÃO por Francisco José dos Santos Braga
A crônica “Impressões Religiosas” sobre a celebração da Semana Santa de 1860 chegou-me às mãos por especial colaboração do pesquisador e historiador Francisco de Oliveira, de Barbacena, que a localizou em arquivos públicos que frequenta. Sabedor do meu interesse em garimpar raridades históricas, presenteou-me com seu achado. A seguinte mensagem acompanhou o arquivo com a crônica: "Achei esta crônica num exemplar do jornal A ACTUALIDADE, de 1860, que era editado no Rio de Janeiro. Um dos redatores, Lafayette Rodrigues Pereira, tinha uma fazenda, que ainda existe, às margens da BR-040, próxima à cidade de Lafaiete. O nome da antiga Queluz foi mudado para homenageá-lo, o que provocou cisão na cidade e durou muitos anos. O artigo é um exemplo do estilo gongórico, mas as mensagens são atuais. O articulista colocou somente as iniciais: quem sabe é um conterrâneo?"
Parece que, ao dizer que a crônica comporta "mensagens atuais", meu amigo está a referir-se sobretudo ao último parágrafo, que denuncia inúmeras mazelas sociais até hoje presentes na sociedade brasileira.
Igualmente, na página 1 da histórica edição de A ACTUALIDADE (cuja imagem está reproduzida no final da crônica), vemos uma matéria intitulada “A camara dos patacões”, já antevendo o que vai no seu interior:
Parece que, ao dizer que a crônica comporta "mensagens atuais", meu amigo está a referir-se sobretudo ao último parágrafo, que denuncia inúmeras mazelas sociais até hoje presentes na sociedade brasileira.
Igualmente, na página 1 da histórica edição de A ACTUALIDADE (cuja imagem está reproduzida no final da crônica), vemos uma matéria intitulada “A camara dos patacões”, já antevendo o que vai no seu interior:
"A actual camara dos deputados quando se trata de negocios que dizem respeito aos interesses pecuniarios de seus membros, tem procedido de um modo digno de elogio.
Agora mesmo, segundo nos informam, a mesa acaba de tomar uma resolução, que faz muita honra ao seu desinteresse. Decidiu que o deputado que só comparece à sessão no ultimo dia do mez, tem direito ao subsidio do mez inteiro! Assim, um deputado que comparecer à sessão no ultimo dia do mez de maio pela primeira vez, tem direito a receber o mesmo subsidio que aquelle que frequentou a camara desde o principio do mez. (...)"
Certamente que J.C.O.S. são as iniciais de alguém que era um correspondente do jornal em S. João del-Rei. Espero ainda descobrir de quem se trata.
Na época em questão os redatores do jornal são Fábio Farnese (da Paixão Junior), Lafayette Rodrigues Pereira e Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, este último autor do romance "Maurício ou os paulistas em São João del-Rei" (1877), cuja sequência é considerado "O Bandido do Rio das Mortes" (1904), nos quais se manifesta seu pendor para a narrativa histórica ao visitar a história de Minas Gerais sob a forma de ficção, ambos ressaltando aspectos ligados a São João del-Rei e envolvendo personagens da história de Minas Gerais. O jornal A ACTUALIDADE, órgão do Partido Liberal, foi fundado pelos três em 10/05/1858 no Rio de Janeiro (corte do Império) e durou até 28/04/1864. Mais tarde, contou com a colaboração de Antônio Barbosa da Silva e Souza, Luiz Barbosa da Silva, Limpo de Abreu, Pedro Luiz Pereira de Sousa, Salvador de Mendonça, Teófilo Otoni, entre outros. Considera-se que A ACTUALIDADE foi o primeiro jornal a ser vendido avulso.
"O impresso semanal se apresentava como de oposição e discutia política, decisões do Império, literatura e legislação. Além de veicular notícias da Corte, publicava também informações de outras províncias, notadamente, da de Minas Gerais. 'A Actualidade' marcou época no jornalismo brasileiro. Segundo Coelho Neto, é daí por diante que a "feição do jornal foi perdendo a austeridade ferrenha, modelando-se pelos principais órgãos franceses, já na parte de informações, já nas seções doutrinárias e de literatura."
Fonte da citação: http://academiaserranadeletras.com.br/images/Perfil_Patronos/Fl%C3%A1vio_Farnese_da_Paix%C3%A3o_Junior.pdf
Lamento que o autor da crônica "Impressões Religiosas" não tenha feito uma descrição de como se desenrolava a solenidade litúrgica da Semana Santa em 1860, antes, portanto, de o Padre José Maria Xavier (1819-1887) ter composto sua obra musical sacra para a dita Semana Santa. Sabe-se que o compositor sacro são-joanense, pertencente ao barroco mineiro tardio e cuja música, ainda hoje, cobre praticamente toda a solenidade da Semana Santa de São João del-Rei, teria composto a parte final das Laudes (Antífona do dia, Cântico de Zacarias e Antífona Solene do dia) em 1860; a música do Tractos, Missa e Vésperas de Sábado Santo em 1869; a música dos Responsórios dos Ofícios de Trevas para as Matinas de Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado Santos em 1871; a música para o Ofício do Domingo de Ramos e Tractos e Bradados de Sexta-feira Santa em 1872. Ou seja, a música de Pe. José Maria Xavier não poderia ter sido executada durante a Semana Santa de 1860 da forma como atualmente se faz. A curiosidade continua: Como era a antiga Semana Santa na então Matriz de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei?
II. TEXTO DA CRÔNICA "IMPRESSÕES RELIGIOSAS"
Que mais poderoso e energico incentivo haverá que a musica religiosa para arrebatar às alturas incommensuraveis do infinito uma alma terna e sensivel, e que desde a infancia aspirou o sentimento do bello nas sublimes harmonias d'esses canticos plangentes e repassados de melancolia, que as auras do templo elevam ao throno do Altissimo, na ultima das semanas da penitencia?! Eu desejaria paramentar a minha palavra com as alvissimas vestes de poesia com que em minha imaginação traja-se o sentimento religioso, que n'esses luctuosos dias da igreja levanta-se de meu coração, como um éco profundo d'essas melodiosas e tristes lamentações, em que o propheta Jeremias chora as ermas praças de Sião, os seus sacerdotes gemendo, as suas virgens suspirando, envoltas na amargura; em que elle deplora todo esse sombrio e negro painel de dissolução, que desenrolou-se sobre a ingrata Jerusalem, para extinguir a luz de suas lampadas e annuviar eternamente os seus dias! Eu desejaria ainda dar à simples narração de uma semana santa em S. João del-Rei a regularidade, a devoção e a grandeza religiosa com que n'esta cidade celebram-se os mistérios da Paixão, e então eu offereceria ao leitor uma bella pagina, em que, como eu, elle tambem sentiria derramar-se nos seios de sua alma a torrente de emoções, que ressumbra da lithurgia santa dos Levitas, e que parece dar à fé do christão essa robustez secular dos cedros do Líbano! Eu faria brotar de seus olhos uma lagrima, como a que por mais de uma vez deslisou-se por minhas faces, no meio d'essas harmonias celestes, d'essas notas sentidas e profundas com que a musica, associada à religião, nos arrebata ao infinito, às immensidades, onde em maravilhas estupendas, expande-se toda a magestade do bello por excellencia - de Deus!...
E quem ouvirá os lentos e melancolicos accordes do grande psalmo do rei penitente, que n'esta semana parecem ainda desprender-se de sua harpa envolta em pesado crepe, sem transportar aos pés da eterna misericordia a sua alma sentida e tremula sobre as asas do arrependimento, da esperança e do amor?! Quem, humilhado e contricto, não conhecerá as suas iniquidades, e não pedirá ao Deus de David que as destrua, para se purificar com o asperges do seu santo hysope, e exceder a mesma candidez da neve?
Quem, ao ouvir na grande sexta feira esse sublime cantico do - Ecce lignum crucis - não experimentará em seu interior toda a força e a realidade d'esse solemne - sursum corda - que entoa o sacerdote no meio das nuvens de incenso, que passeiam vagarosas pelas abobadas do sanctuario, depois de haverem osculado a tela das aras, onde se consumma o incruento sacrificio:!
Quem, ao descobrir-se esse precioso instrumento embebido no sangue da victima immaculada, que expirou sobre o Golgotha, não sentirá brotar de seu coração uma prece abrasada e vehemente como uma lagrima de Magdalena, bella e perfumada como a bonina desabrochada ao sereno alvorecer do dia?! Que de transportes, que de emoções, quando a cada uma das tres vezes em que se canta a duo, esse hymno de adoração no meio d'um profundo silencio, o côro responde com vozes abafadas, e nas mais ternas modulações a letra - venite adoremus - para seguir-se a magestosa ceremonia da adoração da cruz, em que os sacerdotes descalços prosternam-se, roçando a fronte pelo pavimento sagrado, até chegarem aos pés d'esse lenho, onde se passara uma morte, para d'ahi resurgir à vida!...
N'essa edificante e augusta hora, que ainda ha tres dias decorreu absorvida por um tão sublime ministerio, a unção celestial, que se entornava em minha alma, parecia despertar em meu coração sinceras aspirações a uma vida mais calma e mais afastada desse violento turbilhão de iniquidades, em que arrojou-me o sopro impetuoso das paixões, desde que no seu frenetico e furioso ardor ellas devoraram a meiga flor de minha innocencia! Oh! que saudades tive eu d'ella n'esses momentos! quanto não me sorria ella na infancia! quanto não me approximava ella do Christo n'esses dias em que ainda orvalhada pelas fontes do baptismo, ella tinha a candura do lyrio e a timidez da violeta!
Quando a esposa de Jezus Christo chora e lamenta a maior das catastrophes que ha visto o mundo, suas palavras e seus canticos parecem exceder a vehemencia da mais profunda magoa. Haverá nos tesouros de uma imaginação poetica, ou nos gemidos de um coração depurado no crisol do mais intimo padecer, um pensamento ou um ai mais repassado de poesia, de dor, e de angustias, do que essa luctuosa elegia que o propheta, atravez das espessas trevas do futuro, ouviu cahir da boca da desolada filha de Jerusalem, em uma torrente de lagrimas e de soluços, que se perdiam nas ruínas de sua cidade aniquilada pelos tributos e pelas profanações de suas virgens?!
Que filho da terra jámais chorou a queda de sua pátria com dor mais acerba e pungente, que Jeremias em suas lamentações? Ainda ha dias esses suspiros da afflicta Sião, modulados pela voz pura e virginal d'uma donzella, vinham, em flexiveis e extensas melodias, offerecer-me uma lagrima diluida no calice de suas amarguras!
O vos omnes qui transitis per viam, attendite, et videte si est dolor sicut dolor meus, - assim dizia esse canto de afflicção e soledade, que os ecossistemas da cidade santa repetiram lá no meio de suas agonias! Ao pranto do captiveiro unia-se o da orphandade e da viuvez, quando ainda vem a letra - Pupilli facti sumus absque patre, matres nostrae quasi viduae, etc, cuja musica sentimental empresta-lhe mais vehemencia.
Quanto é grande e sublime, como a religião que elle representa, este culto catholico, que falla ao coração do homem por imagens e emoções tão vivas! Sim, tudo nelle brilha e commove por um poder sobrenatural, por essa união divina, que offusca e aniquilla nos seus sanctuarios os ouropeis dessa pompa ridicula, e frivola, que nos espectaculos profanos só traduz a vaidade insensata dos grandes da terra! Quanto não eleva-se ainda mais a magestade de seus symbolos evangelicos nessa tocante e pathetica scena, em que se representa aquelle perante quem tremem as potestades e as virtudes dos céos, prostrado e abatido por um excesso de amor, para lavar os pés do homem!
Que immensa lição de humildade para o estupido orgulho desses grandes vermes, que esquecem-se do seu nada para se erguerem, com seus ridiculos brazões, acima dos seus semelhantes!
Que exemplo de meiga benificencia! não essa benificencia acompanhada dos desdens e das insolencias com que a piedade hypocrita dos felizes da terra costuma esmagar o pudor dos miseraveis a quem ella atira as migalhas dos seus banquetes; mas sim a benificencia do justo, a benificencia que não degrada e avilta, e que só procura nas inspirações de uma moral pura e elevada, nos sentimentos de benevolencia e docilidade, o aperfeiçoamento e a exaltação da especie humana, que nunca se emancipará fóra desse espirito de fraternidade, que pregou o legislador divino, e que a soberba dos potentados repele como um pesadelo, ou um fantasma que lhes póde tomar severas contas das violencias, e do sangue derramado de seus irmãos.
Se essa sublime doutrina, que a poeira de dezenove seculos não poude ainda apagar das paginas evangelicas, fosse a bussola que o legislador e o estadista sempre escolhessem para mais os esclarecer nos rumos do grande oceano social, nella teriam elles muitas vezes encontrado a chave para a solução dos muitos problemas que importam a felicidade e o aperfeiçoamento dos povos; porque essa mesma doutrina consagra as mais bellas maximas sociaes; porque foi nos seus braços que o berço das sociedades modernas poude escapar, e salvar-se dos medonhos vulcões da barbaria.
Se o espirito de nossas leis fosse sempre depurado pela essencia desse codigo santo, a corrupção e a fraude não se converteriam em politica; as violencias e a oppressão em systhema de governo; a justiça não seria uma irrisão, ou antes uma cruel ironia em que o premio da virtude é quasi sempre a proscripção e o olvido, ao passo que a punição do crime é tantas vezes uma graça do poder, que vai polluir-se e marear-se nos vapores da orgia e da infamia; uma graça em que lá se vê essa cruz que tanto se exaltou sobre o Calvario, que ergue-se acima da fronte dos reis, pendendo de peitos cujo merito é o de muitas vezes encerrar uma conciencia vendida, ou esconder um punhal de assassino!
S. João de El-Rei, 10 de abril de 1860.
9 comentários:
Tive o prazer de receber do pesquisador e historiador barbacenense, Francisco de Oliveira, a edição de maio de 05/05/1860 do jornal A ACTUALIDADE, acompanhada de observação sutil que terminou com uma indagação provocativa a respeito de uma crônica assinada por algum correspondente em São João del-Rei com as iniciais J.C.O.S.
Impressionou-o o fato de a peça literária ter sido escrita com um estilo gongórico, embora suas mensagens sejam bem atuais.
Página tão rara merece ser compartilhada com o leitor do Blog de São João del-Rei.
O periódico, como se sabe, era órgão do Partido Liberal, portanto fazia oposição ao Imperador Dom Pedro II e a seus apaniguados.
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/12/impressoes-religiosas-por-occasiao-da.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
MUITO BACANA, ESPECIALMENTE A PARTE FINAL, DEVIDAMENTE GRIFADA.
ABS. FELIZ NATAL, JUNTO A TODOS OS FAMILIARES.
ROGÉRIO
Boa Tarde
Prezado amigo.
Muito obrigado.
Feliz e Santo Natal.
Abraço.
DIAMANTINO
É pena que o autor nem se preocupou em dizer os autores das músicas, das quais trnscreve algumas frases em latim. O autor parece mais preocupado em descrever a atmosfera do evento religioso, a religiosidade da semana e da sociedade, embalada pela música sacra. Mas qual música? De quem? E o que acontecia na igreja? Havia descendimento? Adoração da Cruz? O Lava-pés era encenado em 1860? Perdemos a chance de saber. E quem será o autor, tão farto em adjetivos? Dangelo
Legal. Tenham uma ótima tarde.
Segunda os estudos de Aloísio Viegas, a paróquia do Pilar só assumu a celebração da Semana Santa na década de 1940.Neste sentido, o relato deve se referir a celebração que se fazia a cargo da Ordem do Carmo.Uma pesquisa nas Atas e nos Estatutos desse sodalício, deve ajudar trazer luz a várias considerações do artigo.Pelo que da a entender, as tradicionais Leituras já existiam, assim como os nota dos da profissão do Enterro, obras de Manoel Dias de Oliveira, compositor tiradentino do século XVIII.
Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza do envio desta importante peça literária, eivada de poesia e melodia frasal. Muito interessante.
Abraços, de Mario e Beth.
Caro professor Braga.
Parabéns pela publicação dessa jóia de peça literária, tão cara ao povo são joanense, sobretudo daqueles com sentimentos apegados à mística de sua História e Cultura.
Somente espero que consiga desvendar-lhe a autoria e trazer à luz o que se apresentava nas cerimônias da Semana Santa naquele tempo. Em relação às músicas e cânticos, por exemplo, imagino que deveriam ser de um nível tal que exigiu do padre Xavier uma continuação à altura. Talvez o seu leitor André Guilherme tenha também pensado algumas pistas.
Nesse aspecto, a peça não é descritiva, infelizmente. Por outro lado, não deixa de ser interessante a crítica social e política trazida no final, a despeito da natureza daquela publicação, opositora. O autor parece considerar a dissonância entre os venerandos valores da alma cristã e as práticas espúrias naquilo que na vida social há de mais sagrado: a civilidade e a política. Nossas elites, ou as responsáveis pela condução política dos destinos do país, continuam sendo motivo de amarga vergonha e, talvez por estarem vivamente pressionadas, parecem ainda mais doentias, sinistras e hipócritas do que jamais foram.
Aproveito para lhe desejar e a toda sua família um Santo Natal e um Ano Novo com muitas bençãos, saúde e boa sorte.
Agradecido,
Cupertino
Acompanho a sua preciosa animação cultural. Parabéns pela sua atividade, que é muito essencial. Um grande abraço,
Francisco.
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