domingo, 21 de abril de 2019

POEMAS SELETOS DE "INFINITO INSTANTE"


Por  JOSÉ  CIMINO



UTOPIA


Vejo o sonho da pátria livre
subindo as ladeiras empinadas
de Vila Rica.
Sombras se esquivam pelas esquinas
na penumbra da lua.
A antevisão de um país soberano e forte
crepita nas mentes visionárias.
No silêncio das quebradas coloniais
maquinações ecoam.

Liberdade
é a ilusão fortemente almejada.

Um dia sem sol,
não seria a lenta agonia da Terra?
Uma veia sem o ritmo do sangue batendo,
não seria o doloroso elanguescer da vida?
Um pássaro sem asas,
não seria a fatalidade de viver ao rés do chão?
Uma voz sufocada na garganta,
não seria a tortura da mudez imposta?

Assim é um povo enclausurado
no círculo de ferro da dominação.

Assim é um povo
de mãos e pés acorrentados,
de olhos voltados para o chão,
privado das linhas
que lhe definem o contorno de uma pátria.
Os dias e as horas de Vila Rica
arrastam os sonhos
que bordaram nossa História
com as cores do Ouro Preto.

Nas noites silenciosas,
segredos serpeiam pelos meandros da urbe
e os cofres os escondem a sete chaves.

As inconfidências circulam
nos labirintos da trama.

Ó sonhos de Minas,
irrompendo na aurora do Brasil-nação.

Altiva pomba da liberdade,
não saias ao claro,
que a cartucheira te aguarda
com certeiro tiro.

Um sopro rubro de traição
arrancou a pomba de seu ninho.
E abatida foi
muito antes do voo chegar ao zênite.

Emudeceram-se as vozes.
Os algozes ceifaram cabeças.

O pranto desceu dos olhos de Minas,
e até hoje suas gotas regam
as lavouras dos ideais libertários.
Teus ideais, ó Alferes,
são glória nativa destas montanhas.
Para ti,
os que florescemos neste alvorecer de milênio,
já somos o remoto futuro.
Mas a utopia de sermos o pombo livre
lá de longe ainda nos acena.

Tempos passados,
ainda vivos,
as verdades inconfidentes
nos ouvidos transeuntes
sussurram.
A História olha pelas janelas
e os lampiões dependurados
guardam na memória
os murmúrios das falas escondidas.


LIBERDADE 


Serás, tu, liberdade, uma luz etérea
perdida no imenso espaço
que minha vista não alcança?

Serás, porventura, a esfinge da felicidade
olhando impassível a humanidade
a caminhar no deserto do mundo?

Ou serás apenas a lâmpada do sonho,
que cada um trazemos às mãos,
mas que nenhum Aladim consegue acordar?

Percebo, agora, que essa luz está em mim
e que o sonho sou eu próprio,
mas quando eu acender essa chama
e quando despertar esse sonho de sua letargia,
a esfinge vai se levantar
e o deserto florir.


PÁTRIA MINHA 


Pátria minha
do ouro branco,
do ouro preto
e do ouro da cor do meu ideal.

Pátria minha
do pau-brasil,
do café,
da cana-de-açúcar,
do coco-da-bahia,
do cacau e do milho,
do arroz e do feijão.

Pátria minha,
do minério,
do diamante,
das esmeraldas
e de mil e uma pedras preciosas,
lapidadas em sonhos.

Pátria minha,
das vastas florestas,
dos vultosos rios,
serras e vales
e de terras que Ceres abençoou.

Se tão rica és,
ó Pátria minha,
por que nem de ouro
nem de prata são teus dias?
Por que tuas auroras amortalhadas?
Por que teus montes pelados
gemem no assobio dos ventos?
Por que deixam rasgar-te o ventre
e a serpente dos comboios
a riqueza do teu povo
para outras plagas levar?

Por que a corrente da usura
os teus pés ata
e põe freio à tua caminhada?
Pátria minha,
desperta,
pois teu presente é o agora
das gerações que vivem
sob o sol do novo tempo.
Mas, se nele tropeças,
o desejo de ver-te grande e soberana
o vento do tempo
para cada vez mais longe o arrasta
e quimera vira.


DESCONCERTO 


Roda gigante de minério-economês
sufoca a raiz dos ideais. Sobre a lousa
dos patriotas pousam coroas de cravos
e a Nação ostenta um rosto frio e pálido.

O horizonte é fechado e obtuso.
Um vento corrosivo talha a verde planta.
O ímpeto alado de ousadas aves
maça na fonte os anseios do homem ético.

O povo é tesouro soterrado. Dores
impostas do alto descem e os que beijam
o Pendão de outras terras suas entranhas
alienam na arena do festim global.

No campo e na cidade, donos do poder
costuram a política de linhas tortas.
Baixa sobre a Pátria a sombra do desânimo,
que imêmore vive à margem da sua história.


TIA INÊS


1940...
Uma voz antiga
fala macio e terno
no tosco casebre.

Vem da selva da liberdade degolada
da terra de Santa Cruz,
de Senhores rangendo dentes,
de chicotes oblíquos,
de vendaval varrendo o amor negro.

Ó Inês,
flor escura em dia claro
no jardim da minha infância,
que de ternura teu avantajado corpo inspira!
As dores lembradas do tronco
não te acendem o ódio,
que teu espírito já habita a esfera do divino.

1940...
O corpanzil de Inês
chega ao 105º degrau
de seu tempo na Terra.

Olhos grandes
de reluzentes jabuticabas,
vivos, quase hipnotizantes,
vogam no rosto redondo.

Um nariz achatado
de fartas narículas,
sobre os grossos lábios.

Dois cachos de uvas pretas
os seios pendem.

Os ombros oscilam
no andar lento
e pelo chão os chinelos chiam.

O tempo parou
na memória de Inês
que em ordem a corrente dos fatos
com perfeição desfaz.

Crianças felizes de nada fazer
íamos a sua casa ouvir histórias.

O vermelho da lamparina
doura os toscos móveis.
A chama bruxuleia.
Elfos fantasmagóricos,
em ritmo lúgubre,
dançam na parede ao fundo.

Concentrada como estátua,
Inês as formas do outro século
para nós desenha.

Oh! Deixem que Inês passe:
ela conhece os segredos
do fubá de fazer cubo.

Deixem que Inês passe:
é ela que torra o café.

Deixem que Inês passe:
ela soca o arroz no pilão.

Deixem que Inês passe:
ela engoma a roupa alva.

Deixem que Inês passe:
É artista do tear.

Deixem que Inês passe:
ela faz o melado
e o arroz doce com folhas de laranjeira,
adoçado com rapadura.

Numa noite quieta,
Inês morreu.
A vida a trouxe,
a vida a levou.
De relíquia, restaram as lembranças.
Marcas suaves
do raiar do dia da existência.


Nota: Inês, que viveu em Desterro do Melo e que as crianças da época tratavam por Tia Inês, foi uma ex-escrava. Todos a veneravam como relíquia viva de tempos longínquos.


O TEMPO


Onde está o tempo?
Na gota d'água
que vai no caudal do rio
ou na vegetação da margem
que assiste ao rio passar?
Onde o tempo?
Nas cãs que prateiam a cabeça do ancião
ou no sorriso esperançoso da criança?
Onde o tempo?
Perdido na ciranda dos astros
ou guardado na pequenez do átomo?
Onde o tempo?
Na translação
ou na rotação da terra?
Onde o tempo?
Na flor que fenece?
Na nuvem que se esvai?
No cometa que passa?
Na estrela cadente?
Na chama que se apaga?
Na vida que morre?

Mas tempo em marcha lenta ou célere,
tempos nublados ou ensolarados,
tempos tristes ou alegres,
tempos inúteis ou fecundos,
são criações do espírito,
se grande ou pequeno.

Tempo,
viagem de só ir,
saudade.
Tempo: saudade?
Saudade não é verbo
mas se conjuga no imperfeito:
era, amava, sorria.

O pretérito perfeito
tombou definitivamente morto.

O imperfeito é presença-ausência dos fatos
póstumos.
Espinho que ferroa a alma,
passado meio vida e meio morte,
o inquietante tormento.
A chama de Cronos
as lembranças suscita,
atrizes redivivas
de drama imaginário,
de repente soerguidas do Hades.
Incansavelmente
vou subindo e descendo a montanha,
a carregar o fardo da vida,
olhando o que me espera
e revivendo o que já não é.
Seria também o meu destino
a condição de Sísifo?

O olhar retrospectivo
faz renascer a dor e a alegria.

Entretanto, nenhuma será como fora,
nem tal qual eu sentira.

A memória é uma peregrina viageira
na direção do nada,
porque o que se vive
ou se viveu
passa
e passando,
finda.
São vozes,
rostos, sentimentos e lugares.
São obras, guerras,
construções e ruínas,
gente em frenético vaivém,
sons e ecos que se congelaram
em efêmeras páginas.

Inevitável medida do devir
pelo ser-tempo do homem,
só ele lhe rompe a planura,
pois do deserto
faz primaveras;
pássaro pairando no alto,
o longínquo descortina;
cavalga o dorso das ondas,
em suas mãos,
cinzas viram sementes,
ponteia a rotina de estrelas,
livre, singra pelo imenso éter.
Hércules pigmeu,
soergue para o alto
o peso que o arrasta para o chão.
Caminha no rumo por ele próprio eleito,
doridamente consciente do não-retorno.

Só ele é tempo.
Fora dele,
o que há
é um agora do ser fluindo
sempre para o novo.
Ou não seria
também ele,
um "instante"
passageiro do imenso comboio
da evolução do cosmos?


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 


CIMINO, José: INFINITO INSTANTE, Belo Horizonte: Edições AMEF, 2001, 158 p.

13 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Salomea Gandelman (professora universitária, autora do livro "36 Compositores Brasileiros-obras para piano (1950-1988)) disse...

Obrigada, boa Páscoa! Salomea

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador do TJMG, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

MUITO BOM!

Prof. Arnaldo de Souza Ribeiro disse...

Prezado Dr. Francisco,
Boa noite.
Parabéns e obrigado pela publicação.
Prof. Arnaldo de Souza Ribeiro
Presidente da Academia Itaunense de Letras - AILE

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Venho, através desta publicação no Blog de São João del-Rei, comemorar os 227 anos da morte na forca do Patrono Cívico da Nação Brasileira, com poemas alusivos ou referências implícitas àquela data (21 de abril de 1792) e ao herói Joaquim José da Silva Xavier, constantes do livro "INFINITO INSTANTE" (2001), da autoria do filósofo-poeta JOSÉ CIMINO, presidente da Academia da Mantiqueira de Estudos Filosóficos-AMEF, de Barbacena.

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

LuDias (proprietária do site VÍRUS DA ARTE & CIA, especializado em arte e cultura) disse...

Parabéns, Braga, pela publicação!

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Prezado Braga, obrigado pelo envio da matéria. Saudação também para a esposa. Fernando Teixeira

Unknown disse...

Francisco,
Parabéns pela postagem.
Um amigo dizia: "sem alegria não há salvação"
Sem alegria, sem arte, sem poesia...
Fátima Vasconcelos

Prof. Mário Celso Rios (presidente da Academia Barbacenense de Letras) disse...

Caro BRAGA e RUTE,
Um abraço especial de Páscoa!
Também nossos mais sinceros agradecimentos por estarem sempre a resgatar e valorizar a cultura brasileira e dessa vez isso ocorre ao promoverem e divulgarem a obra INFINITO INSTANTE de J. CIMINO, poeta e filósofo, e também muito ligado a SJDR, a MG, ao Brasil e ao que seja universal!
Parabéns !
Mário Celso Rios

Prof. José Maurício de Carvalho (professor titular aposentado da UFSJ e do Centro Universitário Presidente Tancredo Neves - UNIPTAN, membro do Instituto de Filosofia Brasileira, do Instituto de Filosofia Luso-brasileira com sede em Lisboa, da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos) disse...

Muito bem, abraços, Maurício

João Pinto de Oliveira (presidente do Sicoob Credivertentes, membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico e membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro confrade Prof. Braga

Muito grato pela remessa dos Poemas Seletos de "Infinito Instante". Fui
aluno de Pe. José Cimino, disciplina Metodologia Cientifica. Muito ligado ao teatro. Uma figura excepcional!

Abs.
João Pinto de Oliveira

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga.
Comoventes os poemas do professor Cimino, sem dúvida merecedor do destaque que lhe dá em sua página. A "Inconfidência", o "Desconcerto", a "Pátria Minha", a "Liberdade" e a "Utopia", assim como a própria "Tia Inês", dialogam com o eixo do "Tempo". Lê-se, por exemplo, que "o povo é tesouro soterrado" e "baixa sobre a Pátria a sombra do desânimo"; o autor parece ter vaticinado Brumadinho e o momento pelo qual passa o país, no qual a sua soberania parece claudicar.
Parabéns pelo destaque e muito agradecido.
Cupertino.

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Satisfeito em saber de Cimino/cidadão/poeta e conhecer alguns de seus poemas de rebuscada linguagem.