Por Anderson Braga Horta
Gerson Valle é escritor de muitas facetas, cuja carreira literária começou pela poesia, com a edição, em 1982, de Confetes de Muitos Carnavais. Mas não se resume à ficção e à poesia a sua obra, ensaísta de mérito que é, com uma diversidade de trabalhos esparsos em periódicos, à espera do livro Dentro da Mata Densa.
Sobre esse poliédrico trabalho têm-se manifestado elogiosamente escritores como Camilo Mota, Enéas Athanázio, Fernando Py, Joanyr de Oliveira, João Carlos Taveira, Luís Augusto Cassas, Olga Savary, Reynaldo Valinho Alvarez.
Reúno aqui esses dados, que se oferecem mais completos e pormenorizados na bibliografia do autor, para dar ideia do espírito humanístico de Gerson Valle, de seu ecumenismo, que a poesia deste livro canaliza em renovados moldes.
Explico-me, para não dar azo a mal-entendidos. Dentro da Mata Densa, quinta realização do poeta, não rompe com os anteriores; pelo contrário, harmoniza-se com eles, em termos de arte poemática, de filosofia e de estética. E os coroa e suplanta, cúmulo que é, pelo menos por ora, de uma escalada poética em que o humano – que não exclui um olhar, talvez místico, para o preter-humano – dá o tom e sustenta a nota.
Em breve comentário que esbocei para uma projetada reunião dos quatro primeiros livros de poemas, assinalo alguns procedimentos formais, como a construção musicalíssima do hendecassílabo, a convivência de setissílabos, octossílabos, decassílabos, dodecassílabos com o verso livre e com o poema em prosa, as combinações versiprosísticas, o uso do recurso palavra-puxa-palavra, a prática do soneto, a presença da quadrinha, do metapoema, da alusão literária, etc. Assinalo também algumas mudanças de modo, como a intromissão, sempre bem resolvida, da pena do pensador e da voz do narrador.
Uma característica da apresentação de todos os cinco livros aponta para aquela direção, por mim há pouco insinuada, de um caminhar para o preter-humano: eles se compõem invariavelmente de sete partes, cada qual – com uma ou duas variações, talvez – integrada por sete poemas. Sete: número de ressonâncias bíblicas, número apocalíptico, número cabalístico – o número da perfeição!
Tematicamente, seus poemas vão da evocação da natureza, com os elementos e os elementais – e a manifestação de uma acentuada consciência ecológica, de uma integração com a natureza, de comunhão com o universo –, para o clima lírico-amoroso, o erotismo, os problemas urbanos, a crise planetária. A propósito, particularmente, de encantamento ante as belezas naturais e de preocupação com a degradação ambiental, recolho confissão exarada em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Poesia – Casa de Raul de Leoni, de Petrópolis, em setembro de 2007:
“O primeiro poema de que me lembro, que me marcou e que li para algumas pessoas, chamava-se ‘Crepúsculo no Arpoador’. Eu devia ter uns doze ou treze anos, e a natureza estava presente com a sensação com que ela me agitava interiormente, desde o título. .... Confesso que tenho medo de lá retornar, e encontrar tudo sujo, abandonado, como tudo parece estar-se deteriorando em meu amado Rio de Janeiro.”
Não se trata, entretanto, de uma poesia ingênua, e sim, conforme disse e repito, de uma poesia de pensamento (mas de um pensar que incorpora o sentir), sempre e sempre interessada nos problemas do homem, suas misérias, suas lutas, seu destino cósmico, no anseio de paz que palpita no coração dos humildes. Retomo a palavra do poeta, no referido discurso:
“O sentimento poético esboçado por escrito em forma intuitiva levou-me à curiosidade pela Poesia nos livros, sobretudo dos modernistas, que me encantaram. (...) E não era só a obra integral de García Lorca que eu comprara e sempre relia. Integrais também eram as edições das obras de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, Mário de Andrade, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Guillaume Appolinaire, Luís de Camões, T. S. Eliot, etc. Na época ainda eram importantes os suplementos literários dos periódicos. E, a par dos poetas do passado e mestres das últimas gerações, eu acompanhava o que se fazia de vanguarda.”
Tudo isso marcado, continuava, como continuo a dizer, pela onipresença da música, já nos ritmos, já nos temas, ora na forma de citações musicais, ora na de poemas postos em pauta por compositores notáveis, presença essa que envolve numa aura superior as suas permanentes intenções humanísticas. Neste passo, valho-me novamente do depoimento de nosso aedo, num trecho elucidativo de alguns aspectos de seu processo de criação:
“Confesso que a minha primeira paixão artística foi a música. A ideia de poesia estava em mim, em meu namoro com a natureza e tudo que me cerca, como já observei. Mas, ao pensar primeiro nesta relação poética com o mundo através de uma forma, foi a música que primeiro me apareceu. E quando decidi não mais estudar música, após os primeiros passos dados na adolescência, e voltar minha emoção artística para a poesia, esta me saía como se fosse composta de sons melódicos e rítmicos. Até hoje, confesso, muitas vezes acordo com versos e mais versos me atormentando, onde o ritmo e a melodia das palavras parecem-me mais importantes que seus significados. Às vezes eu tenho de me concentrar e organizar um significado para aproveitar o som das palavras...”
Palavras que devem ser temperadas com outras do próprio Gerson, ao salientar como, no amadurecimento de sua arte,
“as questões ambientais se tornam mais agressivas e a reflexão sobre o mundo de hoje aparece de maneira a procurar dar um pouco mais de sentido à Poesia, que nos tempos atuais, nos excessos das metáforas e influências surrealistas, afastaram tanto o público de seu convívio, apresentando-se como uma alienação completa, algo que perdeu todo elemento concreto de ligação com a realidade”.
“a Poesia se faz abertamente inútil neste mundo, abrindo margem a ser esquecida”,
“Eu integro o grupo de autores que ainda considera o lirismo como um significado imanente do ser humano, e, assim, de fundamental importância para o equilíbrio de nossa integridade passada tanto no plano do cotidiano como da transcendência (...) o poeta não veste sapatos trocados como um idiota, nem se dirige assobiando para um precipício.”
Apresentadas as considerações do poeta sobre o próprio fazer, gostaria de convocar agora as de um de seus ilustres críticos, o também poeta e tradutor Fernando Py, a respeito de sua poesia anterior, no discurso com que o recebe na Casa de Raul de Leoni. Comentando os dois primeiros volumes de poesia de Gerson Valle, Confetes de Muitos Carnavais e Passagem dos Anos, diz o autor de Antiuniverso que eles “mostram um poeta de muita sensibilidade”, capaz de “captar os ‘estados de alma’ em ocasiões próprias”, mas pondera que o “maior domínio da expressão e da técnica do verso” viria com o terceiro livro, Aparições, de 2001. Sobre esse e o seguinte, diz mais:
“Aí, sim, temos um poeta amadurecido, já senhor da técnica e do seu instrumental expressivo, pois os dezesseis anos que passou sem publicar lhe valeram como um período de formação definitiva, importante para a sua poesia daí para a frente. Em Aparições, Gerson Valle se faz notável pela capacidade de extrair poesia de toda e qualquer circunstância. A isto soma-se o seu grande sentido rítmico e melódico do verso – já visível nos livros anteriores, mas sem a mesma força poética –, o senso perfeito de valorização da palavra, com boa adequação e combinação de prosa e verso.
É curioso assinalar que todos os seus volumes de poesia estruturam-se em sete partes de sete poemas cada. No quarto livro, Vozes trazidas pelos ventos (2005), tal estrutura é mais ostensiva e as partes são denominadas “Livros”, referindo-se cada qual a um tema. Assim, os sete poemas de cada parte possuem coesão maior, visto estarem referidos ao tema que rege cada parte do volume. Contudo, a sétima parte, “Do livro das lendas”, abrange apenas um texto, um dos melhores do livro, o belo poema em prosa “Árvores geminadas”, que recria com desenvoltura e filosofia uma lenda indígena. Note-se que vários poemas seus já foram traduzidos para o francês, o alemão (na Áustria) e o italiano.”
Permita-se-me alguma variação em torno do que tenho exposto. Um dos traços que desejo apontar na poesia de Valle é a sua genuinidade. Ele não pretende criar nenhum movimento literário, não se arvora em fundador de nenhuma corrente, não faz preceder seus poemas de eruditas e especiosas artes-poéticas – não é a isso que me refiro; quero dizer que, sob sua aparência de simplicidade – dessa bandeiriana simplicidade que oculta um vasto conhecimento dos meandros de sua arte –, se pode perceber nessa poesia uma face peculiar, uma dicção sui generis, um conjunto de qualidades (talvez não facilmente discrimináveis) que a tornam distinta e fazem o poeta, lida uma recolta, de pronto reconhecível nas subsequentes. É esse um traço comum a toda a sua obra poemática, de modo que, do primeiro ao presente volume, e apesar da visível depuração e ascensão qualitativa, se consegue estremar uma identidade. Em suma, é poesia que tem uma cara e um caráter.
E estamos no degrau sétimo, “Ciclo de Minhas Aparições”. “O Segredo de Zeus” e “Dentro da Mata Densa” me parecem os seus poemas-chave. Aquele diz da necessidade do obscuro, do mistério... a necessidade de imaginar, de descobrir, de criar:
Se algum dia abrir-se a caixa
e dela pular a magia
– nossos mistérios não resolvidos –
meus passos passarão
para o expurgo dos exílios.
Lá estava minha canção preparada
a não ser senão a esquecida.
Sua aparição me confunde,
me deixa sem mim.
Necessidade – interpreto – de não saber o todo, isto é, de não o iluminarmos com o claro sol de nossa ciência, todavia enganoso, e assim nos furtarmos à sedução do que não logramos ver. O outro, “Dentro da Mata Densa”: o todo no íntimo, a percepção do cosmo na densa mata do mistério humano – que é, afinal, o objeto desta grande construção poética. Pelo menos assim o quero ver, lembrando que o poema dá o título ao livro. Autopsicanálise e metapoética. E cosmogonia – o poeta como inventor de um universo. Ou de universos.
Com os distinguir, a esses dois poemas, não excluo os demais. “Dúvidas da vida”, por exemplo, é aturada meditação sobre o ser e o fazer poético: “o conhecimento do poeta / não nos traz a luta interna / de todas as palavras recusadas”.
Do mesmo modo “Luz Exponencial do Firmamento”: “Não são teus os segredos de Zeus, / poeta caminhante pelo caos de teu cosmo inventado.” / .... “Minha sombra também dança comigo.” // .... “a sua [do poeta] maestria / faz de tudo poesia”. Entre os mistérios de que se cogita, eleva-se o mistério da poesia, do poeta capaz de “encontrar o firmamento / na abertura de sua alma plena” e que “inteiro se integra / na luz exponencial do firmamento”.
Em “A Despedida”, finalmente, o desconhecido, a morte, a renovação dos ciclos.
E voltamos ao início – “A Escalada”. Sumariemo-la poema por poema (com a ótica de uma interpretação pessoal, que não se pretende definitiva).
Abre-a esplendidamente “Coro Grego” – a partida para o Desconhecido, combatendo amarras e conformismo.
“A Caminhada” – outro relevante poema, figura a marcha do andarilho sob o comando “das vísceras”.
“Ao Lado das Iaras e Sacis” – os refrigérios da Natureza, amenizando os rigores da marcha. “O verde alegra o espírito das matas”.
“Momentos do Medo” – a dúvida: vale a pena a busca, a caminhada?
“A Estrada” – soneto dialético: recuar para fortalecer-se, parar para tomar fôlego; depois, já sem temor, “ver a estrada e partir”.
“Trágico Triunfo de Sixtus Beckmesser” – ainda o andarilho, agora artista, poeta, mas sempre o homem, contra “o trágico triunfo dos modismos destrutivos”.
Enfim, o “Velho Alpinista”, no topo da escalada – a conquista de si mesmo.
Com este livro, Gerson Valle – o poeta e o homem – prossegue a própria ascensão, transcendendo os passos anteriores, atingindo um novo patamar, – que, por sua vez, será superado – símbolo da eterna busca do ser, no encalço de sua meta luminosa e obscura. A escalada: poética, humana e pessoal.
Sendo este o seu quinto volume de versos, é de esperar venha por aí mais poesia, até pelo menos o livro sétimo, coerentemente com a heptatomia dos até agora publicados. Mas esperamos que o poeta rompa então essa coerência e ultrapasse, para gáudio de seus leitores, a magia do número sete.
5 comentários:
Tenho o prazer de apresentar-lhe um brilhante estudo da autoria do poeta ANDERSON BRAGA HORTA sobre a escalada de outro colega, GERSON PEREIRA VALLE, que no último mês lançou sua obra mais recente: ANTOLOGIA POÉTICA.
No final da referida antologia, Gerson incluiu o famoso estudo onde Anderson comenta sobre os livros do colega até então publicados, assim como analisou uma série (intitulada A Escalada) de 7 poemas que abre o livro de Gerson intitulado "Dentro da Mata Densa".
O estudo realizado por Anderson dá ao leitor uma visão de conjunto da obra poética de Gerson, cuja caminhada poética iniciada em 1982 atinge sua plena maturidade neste ano de 2021. Gerson é membro titular da Academia Brasileira de Poesia – Casa Raul de Leoni e da Academia Petropolitana de Letras.
Gerson também se destacou no campo musical, sendo autor do livro "Jorge Antunes: uma trajetória de arte e política" (Sistrum, 2003) e autor do libreto da ópera "Olga", do compositor Jorge Antunes, em três atos, estreada no Teatro Municipal de São Paulo em 14/10/2006, além de libretista da ópera "A Noite de Iemanjá" de Odemar Brígido e de parceria com o saudoso Ernani Aguiar em alguns de seus ciclos de canções.
Em 2018, recebeu o notório reconhecimento do Prêmio Maestro Guerra Peixe de Cultura, do Instituto de Turismo e Cultura da Prefeitura Municipal de Petrópolis.
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/03/a-escalada-do-poeta-gerson-valle.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Obrigado pelo que me toca, Francisco. Gerson, decerto, há de ficar encantado com sua prestigiosa transcrição.
Abraço forte,
Anderson
Caro professor Braga;
Um poeta na análise e apresentação de um outro ! Importante registro !
Grato,
Cupertino
Caro amigo Braga
Lemos com interesse o estudo do poeta Anderson Braga Horta sobre o Poeta Gerson Pereira Valle.
Agradecemos pela gentileza do envio.
Abraços, de Mario e Beth.
Olá, Rute e Francisco!
Viva a poesia e viva a importante missão dos poetas!!!
Espero que vocês estejam gozando uma boa saúde, num mundo, sofrendo numa pandemia terrível como está acontecendo!
Aqui estamos caminhando e continuo recebendo incumbências da CNBB, para uma nova edição do primeiro volume do Hinário Litúrgico.
Desejo-lhes uma abençoada Semana Santa, terminando numa feliz Páscoa! Grande abraço do irmão f. Joel.
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