Por Lêdo Ivo
Encontraram-se na esquina bulhenta — e o céu de um azul lívido, entre as estruturas de vidro e concreto, era talvez a primeira antecipação do crepúsculo. Teseu do Carmo ia sozinho. Ia ou vinha, não sabia ao certo, pois tudo quanto o cercava (pessoas, coisas, rumores, as inumeráveis tintas do dia) se deixava palidamente revestir de um envoltório de indecisão. Assim se encontraram: na meia-luz universal. O outro segurava a mão de uma menina, e um pouco atrás estava a sua mulher. E foi precisamente ele que se aproximou de Teseu do Carmo e admitiu não estar sendo reconhecido. Não estava mesmo, mas a pausa desajeitada das contemplações mútuas durou um átimo, fagulhando no ar esbranquiçado da tarde madura. Ele disse que era: um amigo de infância, garantiu que há muitos anos vinha seguindo a carreira de seu antigo companheiro de grupo escolar. Teseu do Carmo! repetiu o nome. Findas a adolescência e as ilusões, sentara praça no Exército, era agora um sargento quarentão; e como o seu nome só circulava nos boletins militares, pensava que nome em jornal era sinônimo de glória. Teseu do Carmo! repetiu. E o nosso amigo sentiu que seu nome era como um besouro, e zoava na tarde amarela. Ia-se ver, não era ninguém...
O sinal abriu, mas nenhum dos dois atravessou a rua. O sargento à paisana falava de algumas coisas sumidas, como um sol: dona Ermelinda, a professora que ambos haviam amado, as tardes em que gazeteavam as aulas e iam tomar banho de mar, a morte de um colega de olhos verdes chamado Vilela. Lembrava-se de tudo, o amigo, sabia de tudo, não deixara a infância deteriorar-se. E Teseu do Carmo se recordava de muita coisa, mas esquecera exatamente a existência do colega agora encontrado, o qual se misturava, na escada de sua memória, a outras figuras imóveis nos degraus, a outros rostos, a outros nomes, a outros banhos de mar.
Teseu do Carmo perguntou pelo nome da menina, achou-o bonito, esqueceu-o logo. O sargento apresentou-lhe a mulher, que se mantinha silenciosa ao seu lado, e cujo ar abrigava algo de inconfundivelmente suburbano como um cheiro de jasmim. Outro sinal abriu. O amigo de infância pediu-lhe um livro seu, autografado. Teseu do Carmo prontificou-se a enviá-lo. De súbito, os seus dedos apertavam o cartão de visitas com o nome, o posto e o endereço do amigo. Para simplificar, garantiu-lhe que, logo no dia seguinte, deixaria o volume na caixa de uma livraria do centro da cidade.
Deixou o livro lá, com o nome do sargento bem visível no pacote. Os dias, as semanas, os meses se passaram, novas tardes amarelas reverberaram nos vidros dos arranha-céus, e o amigo de infância não apareceu para levar o volume.
E o pacote foi amarelecendo, como a infância, e terminou sumindo debaixo de outros embrulhos, cartas e encomendas. Às vezes, o livreiro advertia Teseu do Carmo: "Há um pacote seu aí embaixo. O homem não veio buscar".
E fez bem. Não se deve perturbar a infância.
Sim, na esquina rumorosa, Teseu do Carmo deveria ter dito não, tornando impossível o reconhecimento, repelindo as identificações fantasiosas. Pois a vida não é uma evolução, mas um buquê de metamorfoses. E o Teseu do Carmo repentinamente descoberto pelo sargento não correspondia à visão perdida, que o vento da antiga praia diluíra. Assim, tudo se resumiria a uma coincidência de nomes, espetacularmente facilitada se ele se chamasse, por exemplo, João da Silva. E à medida que os dias passavam, o seu pequeno drama de consciência se fechava em cicatriz. Pois o amigo sargento não viera buscar o livro, recusava distante o elo indesejável, decerto se desinteressara e se arrependera da súbita curiosidade explodida naquela esquina do sim que devera ter sido a esquina do não.
O amigo da infância, criatura falto de nome e de rosto, recusava, dos desdobrados longes de sua humildade, o Teseu do Carmo de agora, autor de obras, escrivão do nada. O seu amigo verdadeiro, o dos mergulhos vespertinos nas águas macias da meninice, não morava no espaço nem nessas desconfortáveis casas de papel talvez impropriamente chamadas de livros. Fôra uma figura do tempo. Fôra — e por que não dizê-lo, ante o céu ofuscante de qualquer tarde? — o próprio tempo, besouro sumido.
II. AGRADECIMENTO
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto do recorte utilizada neste artigo.
14 comentários:
Prezad@,
Nestas minhas férias natalinas de 2021, dirigi-me a um sebo paulistano com o sugestivo nome de Mania de Cultura e ali vasculhava um acervo de livros raros, quando me deparei com a crônica O BESOURO entre as páginas de determinado livro. Fora escrita por LÊDO IVO e, na condição de um simples recorte, publicada em jornal não identificado, em 9 de novembro de 1963.Fiquei imaginando a razão de ter topado com tal raridade. Seria coincidência ou destino que levou o recorte às minhas mãos, sem meu consentimento?
Como ainda não consegui atinar com a solução para este enigma, não pretendo incomodar o leitor com minhas indagações. Vai abaixo minha sugestão de leitura da referida crônica neste fim de ano recluso:
Minha breve análise da vida e obra de LÊDO IVO
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/12/colaborador-ledo-ivo.html
Crônica O BESOURO de Lêdo Ivo
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/12/colaborador-ledo-ivo.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Que maravilha recordar Lêdo Ivo, poeta caudaloso e forte, que eu muito admirava.
Tive a alegria de conhecê-lo pessoalmente, de estar com ele no Rio de Janeiro, na ABL e em andanças no bairro de Botafogo.
Os livros têm destinos misteriosos e nos chamam, nos procuram, notadamente em sebos com "mania de cultura"..
Aproveito a oportunidade para desejar-lhe um 2022 de esperanças renovadas, saúde e força para viver as felicidades reais e possíveis.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Grata !
Feliz 2022 !
Abraços,
Eudóxia.
Caro professor Braga
A crônica, o personagem, o livro deste e o seu achado se integraram agora numa outra, surpreendente, que, de algum modo, vai além dela própria !
Excelente publicação !
Grato.
Cupertino
Caro amigo FJSBRAGA:
Obrigado pelo envio da linda crônica de Lêdo Ivo: O Besouro.
Abraços e um feliz 2022 para o amigo e família. Augusto Barbosa Coura Neto.
Bom Dia, Rute e Francisco. Obrigado por seu e-mail interessante! Aproveito da oportunidade para desejar-lhes um Ano Novo abençoado, em que, com a colaboração de todos, será possível neutralizarmos o vÍrus Covid-19, a fim de podermos voltar a um ritmo normal da vida!!
Grande abraço do irmão,
f. Joel.
Bom dia, com efusiva alegria, nobres amigos Braga e Rute!!!
Gratidão por tudo que nos permitimos viver e conquistar neste ano que finda! Perdoe-me tudo que não pude ser e poderia ter sido de melhor! Impedido do abraço presencial, receba por aqui,em nome de todos os nossos, nossos desejos de que o novo ano seja abençoado, de plena saúde, paz, alegrias inspirado e de sucesso! Ahow! Anawê! Namastê! Salve! Shalom! Paz e luz!!! Fraterno abraço!
Att.,
(Paulo José - Pajo)
Prezado Primo.
Obrigado por tudo.
Apreciei todas as suas postagens desde antes da pandemia.
Que em 2022 você e a prima Rute recebam as bênçãos Divinas e tenham saúde, disposição e coragem para continuar este belo trabalho.
Feliz ano novo.
Abraços,
Roberto e Vânia.
Caro amigo Braga
Em relação a este caso, de um livro deixado como presente e não apanhado pelo seu destinatário, também aconteceu comigo ao encontrar-me com um colega de infância, Jorge, em um restaurante em Juiz de Fora, ora definitivamente fechado em 2020, como tantos outros estabelecimentos que não resistiram ao impacto financeiro devido à pandemia. Eu e Beth sempre o freqüentávamos quando íamos lá.
Diferentemente de Teseu do Carmo, eu o reconheci, embora escondido embaixo de um volumoso bigode e cabelos grisalhos, e falamos um pouco sobre nossas vidas e peripécias de infância em Valença RJ. Interessou-se ao saber que eu escrevera um livro sobre o mineiro Domingos Custódio Guimarães - o Visconde do Rio Preto, que ele já ouvira falar em Valença, quando era menino, e pediu-me que lhe presenteasse com um exemplar, que eu deveria deixar naquele mesmo restaurante.
Foi o que fiz, no dia seguinte, deixando um livro para ele em um envelope, com o proprietário do restaurante, um amigo nosso de longa data.
Sempre que voltávamos a Juiz de Fora, almoçávamos neste mesmo restaurante e a notícia era a de que o Jorge não fora apanhar o livro, não obstante já decorridos dois anos. Coincidentemente, quando lá estivemos, dias antes do fechamento definitivo daquele restaurante, o proprietário disse-me o seguinte; “olha, eu vou te devolver este livro, mas quero dizer que nesse tempo todo que o mantive aqui, comigo, sempre tive uma enorme curiosidade em saber sobre o seu conteúdo. Confesso que muitas vezes pensei em abrir o envelope para ver que livro era esse. Já que o seu amigo não procurou por ele, você se importaria em dá-lo de presente para mim?”
Claro que concordei e como não havia feito uma dedicatória para o Jorge, abri o envelope e o dediquei ao proprietário, meu amigo, na certeza de que estava dando aquele exemplar a quem realmente se interessava por ele, muito embora nem conhecesse o seu conteúdo. Jamais tive notícias do Jorge.
Colho esta oportunidade para além de agradecer-lhe pelo envio desta interessante crônica “O Besouro”, de Ledo Ivo, desejar-lhe junto a toda a sua Família um Ano Novo de 2022, repleto de Saúde, Paz e grandes realizações.
Abraços, de Mario e Beth.
Cony gostava de dizer "ledo e ivo" engano...
Abs
Grato pela crônica e pelo artigo sobre Ledo Ivo, Francisco.
A você e Rute, meu abraço de ano-novo e votos de um 2022 pleno de paz e novas realizações.
Anderson
Obrigado!
Não conhecia o escritor, mas achei fantástica sua história bem como sua trajetória. Parabéns por mais esta publicação.
Feliz ano novo pra você e Rute repleto de sucessos e realizações
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