Este artigo foi originalmente publicado na COLETÂNEA 2017 da Academia de Letras de Brasília, da qual o autor foi também revisor e organizador.
Coletânea 2017 da Academia de Letras de Brasília |
A tragédia de que trato aqui e da qual escapei (confesso que independentemente de minha vontade ou de minha decisão pessoal), aconteceu meio século atrás, conforme vou contar, de modo bem pormenorizado.
Havia naquele tempo, em Roraima, onde então eu morava por força do meu trabalho, o padre Calleri, italiano de nascimento, com nome de batismo Giovani, aportuguesado para João – padre João Calleri, como era conhecido. Era ele membro do Instituto Missionários da Consolata e dirigia a Missão Catrimâni, dos índios ianomâmis.
Ele foi contatado, em 1967, e convidado, em 1968, pelo Chefe do 1º Distrito Rodoviário Federal, sediado em Manaus, unidade do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), com o aval do seu Diretor-Geral, do presidente da FUNAI e do Ministro do Interior, para tentar aproximação com os índios que viviam no trajeto por onde passaria um trecho da estrada BR-174 (Manaus-Boa Vista-fronteira da Venezuela), com o objetivo de transferi-los para outra área ou convencê-los de que a abertura da estrada não os prejudicaria.
Na realidade, eram aqueles índios os uaimiris-atroaris, considerados, naquela época, ferozes e intransigentes na defesa do seu território, e que, se dizia, não poupavam quem o invadisse.
O padre aceitou a incumbência e passou a preparar a sua expedição pacificadora, com urgência, uma vez que a frente de trabalho de desmatamento e terraplenagem da empresa contratada para a construção daquela estrada, no trecho Manaus-Caracaraí, já estava próxima do limite da área ocupada por aqueles índios e havia paralisado suas atividades.
Em fins de setembro de 1968, o padre Calleri esteve em minha residência, em Boa Vista, falou da expedição e me convidou para acompanhá-lo por trinta dias naquela missão, para fazer a cobertura fotográfica da viagem e dos primeiros contatos com os índios.
Aceitei o convite. Eu era aficionado da arte fotográfica, possuía excelente equipamento, que ainda tenho guardado (uma câmera Leica, com lente Zeiss, grande angular e teleobjetiva, e uma Nikormat FT, também com teleobjetiva, lentes para close-up e macrofotografia e diversos filtros). Ele sabia de minha paixão pela fotografia, e me conhecia bem, porque me havia encontrado na sede da Prelazia várias vezes e eu havia estado na sua missão do Catrimâni onde conseguira excelentes fotos dos índios ianomâmis.
Combinamos que eu levaria filmes para fotos em preto e branco, slides (diapositivos) e filmes coloridos – estes eram os que eu menos utilizava, porque não eram revelados em Boa Vista e nem em Manaus (embora houvesse em Boa Vista alguns fotógrafos com laboratório para revelação de filme preto e branco de terceiros, eu tinha meu próprio laboratório em minha casa; mas os slides eram enviados para Georgetown, na Guiana, e daí iam para Londres ou Nova Iorque – em duas ou três semanas recebia-os de volta, com revelação de excelente qualidade).
Viajei, no dia seguinte, a Manaus, para solicitar ao Inspetor da Alfândega, a quem era subordinado, conceder-me um período de férias, a partir de 15 de outubro, e aleguei, o que era verdade, jamais haver usufruído daquele direito estatutário.
O Inspetor era Milton Bittencourt Cantanhede, funcionário exemplar, competente, sério e honestíssimo, educado, já no topo da carreira, muito querido e respeitado tanto pelos funcionários como pela sociedade.
Perguntou-me ele o motivo de eu querer as férias assim tão de repente. Falei-lhe da expedição que se organizava. Ouviu-me, paciente e atenciosamente. E deu a decisão:
– Não posso dar-lhe férias agora. É um direito seu gozar férias, porém, nem as requeira, porque negarei. Não disponho de quem possa substituí-lo em Boa Vista, assim de imediato.
Tomei um susto e respondi-lhe:
– Pois, então, vou requerer meu direito junto ao Diretor-Geral, no Rio de Janeiro.
E ele, sem se alterar, falando baixo e mansinho, como sempre:
– O Diretor-Geral mandará, com certeza, ouvir-me no processo e informar-lhe-ei da real dificuldade de substituí-lo no período requerido.
Antes que eu protestasse, ele continuou:
– Dinoá, você já me falou, antes, que visita as tribos de Roraima e fotografa índios. Eu sou de Manaus, conheço a história do Amazonas e sei que os índios da região do rio Jauaperi e seus afluentes estão sempre em guerra com quem invade seu território e contra os brancos, até por vingança, por causa de antigas expedições punitivas organizadas por governos do Amazonas, desde quando era província e, depois, mesmo quando já Estado da Federação. Eles estão em um estágio diferente dos índios das missões de Roraima. Você não tem ideia de como eles são. E se lhe acontecer algum infortúnio na expedição, vou ter remorso por não lhe haver negado as férias.
Voltei para Boa Vista e comuniquei ao padre Calleri, com tristeza e até um pouco de revolta, não haver conseguido as férias.
Antes de o padre viajar para Manaus, a fim de iniciar sua aventura, despediu-se de mim e me deu um exemplar do projeto Pacificação Waimiris Atroaris, o qual guardo até hoje. No projeto, muito simples, estava prevista a expedição ser composta por doze pessoas, das quais nove eram homens, incluídos o próprio padre, e mais três mulheres.
Havia sido combinado concentrarem-se todos os membros da expedição no acampamento mantido pelo Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas (DER–AM), no rio Abonari, para onde alguns foram de avião ou de helicóptero, e, outros, por via fluvial, levando embarcações com equipamentos e utensílios, mantimentos para trinta dias pelo menos, e presentes para os índios. O acampamento do DER–AM distava um pouco mais de duzentos quilômetros de Manaus.
Daí, a partir do citado acampamento, no dia 22 de outubro, de manhã, a expedição iniciou sua viagem.
À tarde, foi alcançado o acampamento da construtora da estrada, de onde estavam sendo evacuados os trabalhadores, e, em seguida, a expedição chegou ao igarapé Santo Antônio do Abonari, onde acampou.
O grupo, previsto no projeto a ser composto por doze pessoas, contava com só dez (um homem – eu – e uma mulher deixaram de incorporar-se), e era integrado pelo padre Calleri e mais Aragão Rodrigues de Oliveira e sua mulher, Marina Pinto da Silva; Benigno Ribeiro Mendes (Piauí); Francisco Eduardo de Oliveira; João Geraldo de Oliveira (Cara de Onça); Manuel Mariano Ferreira; Manuel Nascimento Filho; Maria Mercedes Sales; e Álvaro Paulo da Silva, chamado Paulo Mineiro, cujo papel seria relevante para o êxito ou o fracasso da expedição, como se verá.
À noite, o padre Calleri expediu a primeira mensagem pelo rádio, e deu notícia do itinerário percorrido até o acampamento do igarapé Santo Antônio.
Em Boa Vista, íamos à sede da Prelazia, todas as noites, Júlio Augusto Magalhães Martins, eu e, às vezes, mais alguma outra pessoa, para, juntos com Dom Servílio Conti, Bispo Prelado, ouvir, pelo rádio, o padre Calleri – o rádio de que dispúnhamos tinha só áudio, não havia como falar com ele; só podíamos ouvi-lo e o fazíamos com especial atenção.
No dia seguinte, 23 de outubro, a expedição avançou até entrar onde começava o território dos índios, e, antes do meio-dia, acampou na margem direita do mesmo igarapé Santo Antônio.
Aí foi feito o acampamento-base, onde se descarregaram os mantimentos, utensílios e muitos presentes para os índios. Na outra margem havia várias ubás (canoas feitas de troncos de árvores), mais de dez, e, um pouco para dentro, uma maloca queimada. Foram dados tiros para o alto, com o fito de avisar aos índios a sua presença.
No outro dia cedo, o padre deixou cinco homens e uma mulher a cuidar daquele acampamento-base e prosseguiu por água, com os outros, na canoa com motor de popa, e levando o rádio. Paulo Mineiro aconselhara, e insistira, que o padre fosse por terra, seguindo a trilha que saía da maloca queimada. Mas o padre preferiu, prudentemente, ir por água, por ser “território neutro”.
Havia chovido muito, e o avanço foi difícil. Lembro-me que o padre disse, pelo rádio, não haver ainda visto índios, mas sentia o grupo ser observado por eles.
Pernoitaram num charco. Na manhã do outro dia, 25, o grupo prosseguiu a viagem e, no fim da tarde, avistou a primeira maloca habitada pelos índios que procuravam. O grupo acampou a cerca de um quilômetro da maloca, na margem oposta do igarapé.
No dia 26, de manhã, o acampamento foi mudado para a outra margem, mas bem em frente à maloca atroari.
Aproximaram-se os índios, arredios e desconfiados. Por gestos, padre Calleri demonstrou-lhes ser amigo. Eles ofereceram-lhe banana e beiju, mas não lhe permitiram entrar na maloca. Como haviam visto alguns presentes na canoa, os índios quiseram pegá-los. Calleri, porém, com jeito, convenceu-os a descarregar a canoa, o que fizeram, e prepararam um lugar ao lado da maloca para depositar os presentes.
Depois, os índios construíram uma boa e grande armação de palhoça para o grupo, um pouco distante da maloca. No meio da tarde ofereceram bebida – o padre calculou uns noventa índios ao redor do seu grupo. À tardinha foram distribuídos os presentes. O padre aproveitou aquele momento de euforia e conseguiu entrar na maloca. À noite, pelo rádio, narrou os acontecimentos daquele dia. Informou estar tudo bem, e que o tuxaua daquela maloca – Maroaga, era o seu nome para os brancos, e, soube-se depois, Sapata, para os índios – passara sua saliva nos lábios do padre, e molhara o dedo na saliva do padre e o levara aos próprios lábios, em sinal de amizade. E disse o padre, ainda, ter contado mais de cem redes na maloca.
Por quatro dias seguidos, não houve qualquer mensagem dele. Ficamos apreensivos. O que teria acontecido? Finalmente, o rádio voltou ao ar no dia 31 – houvera uma pane, Cara de Onça fizera o possível e o impossível até consertar o aparelho, mas a gasolina para o gerador chegara ao fim, e tiveram necessidade de buscá-la no acampamento do DER-AM.
Então ficamos sabendo que o padre deixara os outros três membros do grupo na palhoça perto da maloca e fora, com um grupo de índios, buscar o resto da bagagem e também os outros companheiros (entre estes, Paulo Mineiro) que haviam ficado no acampamento-base, distante quase quarenta quilômetros.
O padre informou ter feito duas viagens com os índios para buscar o que ficara naquele pouso anterior, e que, agora, todos os membros da expedição já estavam no acampamento da maloca atroari. Notamos ele estar demonstrando preocupação, ao dizer haver sabido que aqueles índios quando andavam pelo rio Uatumã e encontravam caçadores ou seringueiros tratavam-nos muito bem, recebiam presentes e, então, depois, matavam-nos. ¹
Disse, mais, que, naquele dia, talvez os índios achassem os membros do grupo serem seringueiros. E ressaltou, também, que os estava achando muito estranhos, porque ora faziam sinais de amizade, ora sinais de guerra, batendo nas próprias nádegas, alternados com sinais de amizade e novos sinais de guerra. Terminou dizendo que, de madrugada, havia abandonado a expedição o mais experiente dos mateiros. Não citou seu nome. Referia-se, porém, a Álvaro Paulo da Silva, Paulo Mineiro. Era 31 de outubro de 1968.
Foi esta a última transmissão do rádio da expedição Calleri.
Voltamos, Júlio Martins e eu, todas as noites seguintes à sede da Prelazia, na vã esperança de que só tivesse ocorrido uma nova pane no rádio, e que ele houvesse sido consertado durante o dia, como acontecera poucos dias antes.
No quarto ou quinto dia sem qualquer comunicação, Dom Servílio Conti viajou a Manaus, a fim de movimentar autoridades no sentido de conseguir localizar a expedição.
Havia em Manaus uma amiga do padre Calleri, freira da Congregação das Irmãs Missionárias Capuchinhas, de nome Hugolina Maria, que também acompanhava o trajeto da expedição e sempre estava em contato com o Serviço de Rádio do DER/AM, tanto para apanhar mensagens enviadas pelo padre como, também, para levar notícias a serem transmitidas a ele.
A freira começou, logo, a movimentar-se. Foi à Delegacia da FUNAI, onde lhe disseram que, possivelmente, o rádio estava novamente em pane; em outra visita disseram-lhe a expedição estar, talvez, voltando para Manaus.
O Chefe do 1º Distrito Rodoviário Federal, engenheiro Altamiro Veríssimo da Silveira, também estava muito preocupado e mandou um avião sobrevoar toda a área onde poderia estar a expedição. Contudo, o mau tempo, as nuvens baixas e a floresta fechada não deixaram nada ser visto. Em 15 de novembro, ele telegrafou ao Bispo Prelado de Roraima e, praticamente, informou dar a expedição como perdida.
Por meio de telefonemas a várias autoridades, conseguiu o engenheiro que fosse acionado o PARA-SAR, da Força Aérea, que iniciou sua participação no episódio a partir do dia 20, logo após uma de suas equipes chegar a Manaus.
* * *
Cinco dias antes, no dia 15, Paulo Mineiro descia o rio Uatumã, numa canoa, com dois caçadores, e foi ao encontro do barco Alfredinho, que havia levado carga da expedição Calleri até o acampamento-base e, agora, prestava serviço a dois geólogos do Departamento Nacional de Produção Mineral, os quais faziam pesquisas na área banhada por aquele rio.
Paulo Mineiro passou para o barco e os outros dois homens seguiram rio abaixo. Aos dois geólogos e ao barqueiro ele disse, mentirosamente, haver pedido desligamento da expedição, porque o padre tratava os índios muito mal e ele previra uma chacina; e que a canoa na qual viajava afundara, aqueles dois caçadores o haviam salvado e prontificaram-se a levá-lo ao Alfredinho. Ele ficou no barco até o dia 23 (novembro), quando os geólogos, terminada a pesquisa, levaram-no a Itacoatiara, na margem do rio Amazonas.
Ao chegar a essa cidade, Paulo Mineiro telefonou para a freira que mencionei acima, Irmã Hugolina, e perguntou-lhe, para surpresa dela, se a expedição já estava em Manaus.
No barco, ele havia contado ter abandonado a expedição com autorização do padre Calleri, com quem estava na maloca queimada no dia 31. Aí havia ficado, para descer o rio, mas de madrugada, resolveu ir à maloca de Maroaga para ver como estavam as coisas – ao chegar, logo viu dois cadáveres, e, por isto, escondeu-se, e, à noite, conseguiu fugir até o acampamento-base, onde deixara uma pequena canoa que ele mesmo fizera do tronco de uma seringueira.
Depois de muito remar, contava ele, sempre perseguido pelos índios, que o seguiam por terra, teve a má sorte de a canoa ter virado – então, passou a correr por terra, de dia, e escondia-se, quando possível, até ser encontrado pelos dois caçadores que o haviam levado para o Alfredinho. Ele dissera, ainda, aos deste barco, não saber se alguém mais havia escapado.
Depois, os dois caçadores que o haviam conduzido até o Alfredinho disseram já ter avistado Paulo Mineiro antes, a 9 de novembro, em uma canoa com um homem branco, a quem já haviam visto com mais outro homem, em uma barreira do rio – os dois, na ocasião, disseram-lhes ser fiscais de caça e pesca, e que tinham mais dois companheiros de trabalho que não estavam ali, naquele momento, porque se haviam embrenhado na floresta.
Pois bem, disseram os dois caçadores, depois, que quando Paulo Mineiro lhes pediu ajuda estava acompanhado do mesmo homem com quem eles o haviam visto no dia 9.
Aos membros do PARA-SAR, Paulo Mineiro disse os índios haverem atacado a expedição e ele não saber se alguém mais havia escapado, e que se demorara por dois dias no acampamento da construtora da estrada aguardando se alguém mais conseguira fugir dos índios. Mas, à sua mulher, diria haver voltado à maloca de Maroaga e que vira toda a expedição ter sido trucidada.
Ele foi, então, incorporado à equipe do PARA-SAR, como conhecedor que era da região e da maloca atroari.
A esta altura, já se havia constatado, por avião, terem os índios feito uma nova maloca ao lado da anterior.
A FUNAI mandou, então, para Manaus o seu talvez mais experiente indigenista, João Américo Peret. No dia 24, o tempo estava bom, e o PARA-SAR, com um helicóptero e um avião Catalina, foi à maloca atroari.
Lá, o helicóptero baixou, permaneceu com as hélices ligadas, cinco militares e Paulo Mineiro desceram. O Catalina, com Américo Peret a bordo, ficou fazendo círculos sobre a área, como apoio para o caso de alguma emergência.
A equipe de terra se demorou 45 minutos e, além de não ver índios, nada detectou, exceto “cantos de aves e barulho de animais na mata”, como teria constado do relatório da viagem, o que levou Américo Peret a deduzir aquele pessoal nada entender de índios e, menos ainda, de floresta, pois o barulho das hélices do helicóptero e o do catalina teriam afastado as aves e os animais, para longe. Os sons ouvidos por eles teriam sido produzidos pelos próprios índios, os quais se achavam escondidos e, possivelmente, muito próximos dos visitantes.
No dia 26, o tempo estava bom, novamente. Repetiu-se idêntica operação, sem qualquer outro resultado, além de os paraquedistas constatarem que, possivelmente, a expedição partira às pressas, pois havia restos de comida estragada, faltavam o rádio e muitos utensílios na sua palhoça.
O tempo só permitiu nova operação quatro dias depois – a 30 de novembro. Desta vez, Américo Peret integrou a equipe do helicóptero, para descer ao chão.
Em terra, resolveu-se fazer uma varredura, homens ao lado uns dos outros, desde as malocas (a antiga e a nova) até o rio. Mas Américo Peret foi sozinho, por uma trilha a que os outros não deram atenção, por ser antiga. Logo, experiente como era, notou ele haver pequenos ramos de mato quebrados, e ao continuar, viu que as plantinhas do meio da trilha estavam amassadas, como se algo houvesse sido arrastado por cima delas. E sentiu mau cheiro.
Andou mais quarenta metros e encontrou um esqueleto com uma calcinha e um sutiã, o que indicava ser de mulher, cujos ossos e costelas estavam totalmente soltos, os antebraços e as pernas amarrados com cipós; a cabeça, separada do resto do esqueleto, estava mais adiante – fora cortada por golpe de facão, e a parte superior do crânio não foi encontrada, muito possivelmente levada por algum animal, que, com urubus, haviam descarnado o cadáver.
Então, João Américo Peret gritou haver achado os restos mortais dos integrantes da expedição.
Alguns esqueletos estavam em terra, outros em poças de água, e mais outros dentro do rio, que havia subido por causa das últimas chuvas. Um esqueleto feminino mostrava que o corpo havia sido cortado em dois, desde as entrepernas até o ombro, e outro tinha as pernas quebradas.
Foram encontrados todos os nove esqueletos da expedição (lembro ao leitor que esta era composta por dez pessoas quando iniciou a viagem, mas Álvaro Paulo da Silva, Paulo Mineiro, havia deixado o grupo). Todos tinham braços e pernas amarrados por cipós.
De oito pessoas, as têmporas tinham sido cortadas a facão; entretanto, a fronte do padre Calleri, identificado por duas coroas dentárias que ele tinha, estava quebrada e não cortada.
Os ossos, levados em caixões para serem velados na catedral de Manaus, foram sepultados nessa cidade, exceto os do padre Calleri, transferidos para Boa Vista, onde a população, muito comovida e pesarosa, inclusive este autor, esteve presente a seu enterramento, em 4 de dezembro de 1968, numa quarta-feira.
Na segunda-feira seguinte, 9 de dezembro, viajei a Manaus, para agradecer, comovido, ao Inspetor da Alfândega, Dr. Milton Bittencourt Cantanhede, por não me haver concedido as férias que lhe pedira.
Sem alterar a voz baixa e mansa, ele só me disse:
– Agradeça a Deus, Dinoá, porque eu só fiz o que tinha de fazer.
E mudou de assunto.
* * *
Mas a história continua. Por falta de verbas, ou por outros motivos, a construção da estrada BR-174 ficou paralisada, e só foi recomeçada anos depois.
No fim de 1974, a FUNAI abriu um novo posto de atração para os uaimiris-atroaris, o Abonari II, e entregou-o aos cuidados do seu funcionário Gilberto Pinto Figueiredo Costa, considerado indigenista experiente, que em junho de 1968 (antes do início da viagem da expedição Calleri), havia feito contato com Maroaga, principal chefe dos uaimiris-atroaris – foi um relatório dele que registrou no trajeto da futura BR-174 haver só índios desse povo, o que foi entendido como facilitador para o possível entendimento entre índios e brancos, relativamente à estrada.
Em 22 de dezembro de 1974, Maroaga e alguns índios chegaram muito cedo ao posto de atração, para invadi-lo. No posto, havia mais outros seis funcionários da FUNAI, cinco dos quais índios aculturados. Gilberto Pinto, como ele era conhecido, abriu a porta para acalmar os índios e recebeu duas flechadas, uma no fígado, a outra, no coração. Todos os cinco índios aculturados também foram trucidados. Só um, não índio, não foi morto, porque fugira um pouco antes numa canoa, rio abaixo.
O leitor adivinha quem escapou? Álvaro Paulo da Silva, o Paulo Mineiro.
Pois bem. Depois, descobriu-se que Paulo Mineiro trabalhava para uma equipe de americanos que, clandestinamente, pesquisava e explorava alguns minérios na área dos uaimiris-atroaris.
* * *
Trinta anos depois da morte do padre João Calleri e dos seus companheiros, o padre Silvano Sabatini, que fora presidente da Comissão Pro-Índio da Prelazia de Roraima e o principal incentivador para aquele padre assumir a empreitada, publicou o livro Massacre, no qual transcreve entrevistas por ele feitas com alguns daqueles índios que haviam participado do macabro evento ou o haviam testemunhado.
Em resumo, assim se deram os fatos: sempre que Paulo Mineiro, ainda no acampamento-base, contatava índios, como, por exemplo, quando foram com o padre buscar os presentes, dizia-lhes ser necessário matar o padre e seus companheiros, por serem eles muito maus.
Na madrugada do dia 31 de outubro de 1968, quando ele fingiu abandonar a expedição, na realidade escondeu-se nas proximidades da maloca uaimiri-atroari, e tentou convencer Maroaga e outros guerreiros a liquidarem a expedição naquele mesmo dia – por isto os índios faziam sinal de guerra, mas não estavam convictos quanto à conveniência da matança e, por isto, faziam, também, sinais de amizade, alternadamente.
Muito cedo, ao primeiro clarão do amanhecer do dia seguinte, 10 de novembro, todos dormiam; Paulo Mineiro, com mais quatro comparsas não índios, vestidos com roupas camufladas e que estavam escondidos nas imediações e não haviam aparecido antes, chamou os índios e lhes disse que era hora de exterminar a expedição ou ele e seus amigos os matariam.
Padre Calleri também dormia e um dos homens brancos atirou na barriga dele, mas ele era forte, levantou-se, e Paulo Mineiro mandou que lhe atirassem flechas – o padre recebeu duas flechadas e caiu debruçado sobre sua rede.
Seus companheiros foram atacados com flechas pelos índios e com facões pelos cinco homens. Os que caíam flechados tinham a cabeça partida a golpe de facão. Um membro da expedição atirou com um revólver, atingiu a mão do índio que depois se chamou Tomás – este desmaiou, e quando tornou a si, todos da comitiva já estavam mortos, contou ele ao padre Silvano Sabatini.
Paulo Mineiro mandou um dos seus comparsas cortar em dois, com facão, o corpo de Maria Mercedes Sales, da vagina até o ombro. Torpe e cruel vingança por ela não lhe haver concedido favores sexuais.
Em seguida, ele determinou aos índios levarem os corpos para o mato, mas eles se recusaram a fazê-lo, por temor de que os espíritos dos mortos viessem trazer-lhes mal.
Então, um dos homens brancos cortou cipós, amarrou as pernas e os braços de cada um dos cadáveres e orientou os índios a que os arrastassem ou os carregassem suspensos pelos cipós em uma vara, e nada lhes poderia acontecer, uma vez que não tocariam nos cadáveres. E assim se procedeu.
Os índios levaram os mortos para o mato, perto do rio, por uma picada que quase não utilizavam. Por fim, Paulo Mineiro deu a entender aos índios que se contassem aquilo a alguém ele viria com mais amigos e os mataria também.
A cena do assassinato fora tão brutal, que um índio dos mais velhos e que havia participado do morticínio falou ao padre Silvano Sabatini – e um índio jovem traduziu a conversa – que alguns índios chegaram mesmo a combinar dar cabo de Paulo Mineiro e seus companheiros, ali mesmo, mas tiveram medo de os cinco reagirem com armas de fogo e matarem muitos deles.
No mesmo dia, os índios começaram a fazer uma nova maloca, próxima da outra, uma vez que padre Calleri havia entrado naquela em que eles moravam “e o espírito dele poderia vir, só por vingança, fazer mal a seus filhos e a suas mulheres”!
* * *
Alguns anos antes do encontro do padre Silvano Sabatini com os uaimiris-atroaris, Paulo Mineiro foi posto na prisão, em Manaus, em 1981, não sei por qual motivo, e ali se desentendeu com outros presos, que o mataram.
O autor entre os ianomâmis |
I. NOTA EXPLICATIVA
9 comentários:
Prezad@,
Tenho o prazer de anunciar a ilustre colaboração de TARCÍZIO DINOÁ MEDEIROS para o Blog de São João del-Rei. O autor já é bastante conhecido nas áreas de administração tributária, genealogia, história e linguística, logo dispensa apresentação.
Ele se apresenta com um artigo intitulado "TRAGÉDIA NA FLORESTA AMAZÔNICA", em que teve participação indireta, por razão que ele próprio explicará.
O tema do artigo é emergente e atual, já que vai tratar dos ianomâmis, nas condições em que se encontravam no segundo meado da década de 60 do século passado.
Esperamos estar contribuindo para uma melhor compreensão dos costumes, modo de viver, crenças e saberes deste povo tão distante de nós, mas não do autor que viveu junto dele, tendo capturado flagrantes da vida real desses indígenas nas mais diferentes situações, objeto de seu outro livro ÍNDIOS: REGISTROS FOTOGRÁFICOS, em 2ª edição.
TEXTO
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/02/tragedia-na-floresta-amazonica.html 👈
BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/02/colaborador-tarcizio-dinoa-medeiros.htm 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Muito bom.
A tragédia se expande pelo Brasil...
Olá, Francisco e Rute! Todo cuidado a serviço do bem do povo sofrido dos Ianomâmis é pouco! Saiba o nosso país acordar, antes que seja tarde demais!! Paz e Bem!! f. Joel.
Prezado Braga,
fiquei emocionado ao ver e ler minha matéria publicada por você.
Estou enviando o seu blog a meus parentes e amigos - é lógico, todos eles conhecem o assunto mas ficarão orgulhosos de sua publicação.
Deus o abençoe.
Tarcízio
Obrigado, Francisco. Que relato impressionante!
A história dos índios nas Américas e no Brasil precisa ser compĺetamente recontada. Muitos interesses a falsificaram completamente....
Chegada dos habitantes nas Américas: As pesquisas de Dr. Lund com sua "Luzia" mosta que os gês ou tapuias chegaram há 40 mil anos e são de origem asiática, da Polinésia. Observando os pássaros migratórios, sabiam que além do horizonte haveria terras. Pressionados pela demografia entravam em barcos rumo ao "horizonte" colocando certas duplas de animais domésticos considerados "tabu" não poderiam ser comidos durante a viagem para iniciar novos rebanhos no destino (ver similaridade com a "arca de Noé", em que Noé tinha um casal de "cada animal existente no mundo")
Um segundo grupó (Tupis... Guaranis) de feiçṍes bem asiáticas chegou há 12 mil anos, pelo estreito de Bhering durante alguma mini-glaciação.
Mas um Mapa correto dos EUA mostra que de Quebec ao Mississipi, era tudo Francês, antes da "Venda da Louisiânia". O Quebecois (morei quatro anos lá) tem maior bronca da França do que da Inglaterra, a quem pertencem no Inpério Britânico, pois a França os "vendeu".
Outro ponto importante é que o Império Russo não tinha somente o Alaska mas veio até a California.
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A história de que poucos espanhóis, uns cento e poucos, derrotaram o império Inca, é falsificação. Pizarro se casara com uma princesa indígena de uma tribo rival dos Incas. Quando foi ameaçado de morte ela enviou emissários à sua mãe que enviou um exército para apoiá-la. Pesquisas recentes no lugar onde batalharam mostram milhares de esqueletos de índios e índias (iam nas batalhas para levar mantimentos e flechas para os guerreiros) onde os Incas foram derrotados.
A Expedição Ra, de Thor, mostra que od Egípicos tiveram contato com os impérios Inca e Maia....
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Os índios viviam nus e dormiam em uma unica "oca". O que acha que aoontecia? Óbvio que aos treze anos a menina engravidava... não havia 'monogamismo" e nem "família monogâmica". A criança não era considerada de um "casal" mas da tribo. Assim que desmamava deixava de ser "obrigação da mãe" e era "de toda a tribo". Não havia a noção de um pai e uma mãe... o sexo era livre com todos em qualquer lugar ou hora...
Ainda hoje, as meninas descendentes de índios em Manaus e Belém tem um comportamento 'meio que tribal"... fazem sexo com qualquer um em qualquer hora... pouca importância a "casamento", casal.
Nas ruas de BH estão os nomes de tribos... caetés, tupis, tupinambś, guaicurus...
Onde estão os "cemitérios coletivos" de "milhões de [indios mortos"? Em lugar nenhum! Tais tribos desapareceram por "culturicídio"... as índias se tornando "esposas ou amantes" de brancos adotaram a cultura portuguesa. Andando pelas nossas cidades vemos "autênticas índias" do ponto de vista biológico andando por aí...
Caro professor Braga
Documento simplesmente estarrecedor ! Uma realidade profundamente revoltante, vergonhosa!
Hoje, os criminosos até se apresentam, arrogantemente; são grandes empresários nacionais corrompidos, autoridades que prevaricam e agem com dolo de lesa-prátria e lesa-humanidade, mais uma legião de párias, deserdados do desenvolvimento social ou, antes, resultantes do nosso atávico "subdesenvolvimento".
Grato pela publicação.
Cupertino
Acabamos de receber... essa resposta é, por enquanto, para dizer muito obrigado. Forte abraço poético de Geraldo Reis e do blog O ser sensível.
Sou neta do Milton Bittencourt Cantanhede.
Obrigada por citá-lo de forma carinhosa, porém verdadeira.
Não há quem tenha conhecido meu avô e se refira a ele com outros adjetivos que não sejam os senhor citou.
Muito obrigada.
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