domingo, 24 de setembro de 2023

CORREIA DA SERRA, UM SÁBIO ENTRE OS SÁBIOS


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
Conviveu com os grandes cientistas da sua época e com intelectuais e políticos proeminentes das principais capitais da Europa e dos Estados Unidos. As comemorações do segundo centenário da morte desta personalidade do maior protagonismo permitem evocar a relação com açoreanos de prestígio local e outros de projeção nacional e internacional. (Texto originalmente publicado no Diário dos Açores, edição de 24 de Setembro de 2023, p. 6 da coluna OPINIÃO).
Quadro de Correia da Serra (pintado por Domenico Pellegrini) que pertence à Academia das Ciências de Lisboa / Crédito: Wikipedia

 
Um novo ciclo se iniciou em Portugal com a Revolução de 1820. Refletiu a corajosa determinação de substituir as conceções absolutistas, por estruturas políticas, sociais e culturais que fundamentaram um novo regime em que todos podem ouvir a sua voz, desde que se possam concretizar as liberdades, direitos e garantias constitucionais. Houve o contributo decisivo dos que permaneciam no exílio, submetidos às contingências do ostracismo e da solidão; e de outros, dentro de Portugal, que se empenharam na mesma luta, mas agindo com a reserva e a discrição impostas pelo sigilo. 
 
José Francisco Correia da Serra, cujo segundo centenário da morte agora se completou, tem, finalmente, comemorações nacionais em torno da sua vida agitada e da sua obra exemplar. Nasceu em Serpa, a 5 de junho de 1751 e faleceu nas Caldas da Rainha, a 11 de setembro de 1823, quando ali se recorria ao tratamento termal. Ali ficou sepultado, sem que lhe prestassem as devidas homenagens. 
 
Um dos seus biógrafos, Augusto da Silva Carvalho (1861-1957), catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, reconstituiu o percurso de Correia da Serra, nas Memórias da Academia das Ciências (1948), divulgando fatos e documentos que permitiram ampliar as investigações. É o caso de Michael Teague, em 1997, no texto de apresentação do catálogo dos manuscritos arquivados na Torre do Tombo, e que possibilitaram a retificação e o acréscimo de questões primordiais. O Prof Dr. José Luís Cardoso, presidente da Academia das Ciências. – que me alertou para esta circunstância – proferiu, no dia 15 de Setembro, no salão nobre da Academia das Ciências, uma comunicação sobre As origens do programa científico de Correia da Serra. Trata-se de mais um contributo fundamental de José Luís Cardoso que já se ocupara do livro do Richard Beale Davis que revelou a correspondência com Jefferson e outros protagonistas da vida americana. Este livro, com uma introdução de José Luís Cardoso, foi traduzido com o patrocínio da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e editado, em 2013, pela Imprensa de Ciências Sociais. 
 
A obra Cidadão do mundo: uma biografia científica do Abade Serra (Porto Editora, 2006) escrita por Ana Simões, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro abriu novas perspectivas de conhecimento e de análise crítica. Na reabertura do ano académico de 2023/2024, Maria Paula Diogo dissertou, na Academia das Ciências acerca da História, Botânica e Geologia na obra do Abade Correia da Serra. Recapitulou alguns aspetos já destacados numa obra que revisitou, exaustivamente: os biógrafos e biografias de Correia da Serra; a juventude em Itália; o regresso às origens; o refúgio em Londres; os amores em Paris; o período americano; e, por último, o reencontro com Portugal. 
 
É de mencionar Ilídio do Amaral, autor de Estudos preliminares de inéditos juvenis de José Correia da Serra. A propósito do Catalogue raisonné des voyageurs de ma bibliothèque (1769) (Edição Colibri, 2012), coloca-nos perante a evolução de um cientista internacional, como o atestam os depoimentos de vários sábios seus contemporâneos e as numerosas instituições científicas que o acolheram. Todavia, Ilídio do Amaral não deixou de lembrar que, após o triunfo da revolução liberal, retomou o lugar de Secretário da Academia, foi deputado às Cortes (1822-1823) e desempenhou altos cargos, na Maçonaria, no Grande Oriente Lusitano
 
Numa retrospectiva sumária podemos aludir que José Francisco Correia da Serra era filho de Luís Dias Correia, médico formado na Universidade de Coimbra, que se radicou em Itália, a fim de escapar às garras da Inquisição. José Francisco Correia da Serra tinha apenas 6 anos. Em Roma licenciou-se em direito canónico e optou pela vida religiosa. Ficou a ser amigo de D. João Carlos de Bragança, Duque de Lafões, que conhecera o pai, na altura em que ambos frequentaram a Universidade de Coimbra
 
Já com o título abade Correia da Serra, regressou a Portugal. Possuía o total apoio do Duque de Lafões. Um ano depois, juntamente com D. João Carlos de Bragança fundaram a Real Academia das Ciências de Lisboa. Sucederam-se as perseguições movidas pelo Intendente Pina Manique. Abandonou o país para se fixar, alguns anos depois de exercer o cargo de secretário geral da Academia das Ciências. Esteve ao corrente da concessão de bolsas de estudos na Europa para jovens membros da Academia, tais como os brasileiros Manuel Ferreira da Câmara e José Bonifácio de Andrada e Silva, que impulsionaram a independência do Brasil. 
 
Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa fundada em 24/12/1779.

 
Envolvido em novos problemas políticos, decidiu instalar-se no Reino Unido. Pelos seus altos méritos ingressou na Royal Society e na Sociedade Lineana de Londres. Operou-se, em 1801, uma mudança inesperada na política portuguesa: Rodrigo de Sousa Coutinho foi designado Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Correia da Serra passou a ser secretário da representação diplomática portuguesa em Londres. Enquanto esteve em Paris, colaborou com os enciclopedistas, nomeadamente, com Antoine Laurent de Jussieu, Alexander Von Humboldt e Georges Cuvier. 
 
Mas, por ocasião da terceira invasão francesa em Portugal, terá sido instigado a subscrever um documento para justificar a política napoleónica. Ao recusar, terminantemente, Correia da Serra, mais uma vez, viu-se obrigado a procurar o exílio político, no estado americano da Virgínia. Chegou, em 1812, a Washington, com cartas de recomendação, de individualidades francesas, com influência na política americana. Uma delas o Marquês de Lafayette. Filadélfia constituiu, porém, o seu espaço privilegiado. Foi logo admitido na American Philosophical Society. Verificou-se, de imediato, a amizade recíproca e a admiração mútua entre Correia da Serra e Thomas Jefferson. Em Monticello frequentou, com assiduidade, a residência palaciana da família Jefferson. 
 
Monticello, a morada de Thomas Jefferson na Virgínia-EUA.

 
 
Voltou a Portugal em 1820. Estava implantada a revolução liberal. Eleito deputado às Cortes participou na construção de um Portugal que apostava nos imperativos do presente e do futuro. Uma eleição que integrou açoreanos de várias ilhas: André da Ponte Quental, João Bento de Medeiros Mântua, Miguel João Borges de Medeiros Amorim e Manuel José de Arriaga Brun da Silveira, Manuel Inácio Martins Pamplona e Roberto de Mesquita Pimentel. Os historiadores Ernesto do Canto (1831-1900), Eugenio do Canto (1836-1915) e Teofilo Braga (1843-1924) não ignoram a dimensão do percurso de Correia da Serra. Nem os botânicos de expressão regional como Carlos Machado (1828-1901) e Bruno Tavares Carreiro (1857-1911). Nem muito menos botânicos célebres, nascidos nos Açores, como Rui Teles Palhinha (1871-1957), Matilde Bensaude (1890-1969) e Aurelio Quintanilha (1892-1987), qualquer deles com obra científica de projeção nacional e internacional. 
 
Na sessão efetuada na Academia das Ciências, além das intervenções que anotamos, José Alberto Silva e Fernando Figueiredo, apresentarama comunicação a propósito dos Ensaios para a História da Academia das Ciências. As finalidades estatutárias definidas por Correia da Serra ficaram, logo no principio, sintetizadas na legenda: Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria. Ou seja, na tradução portuguesa: Se não for útil o que fazemos, a glória é vã. Decorridos mais de dois séculos perdura o objetivo de Correia da Serra de unir o que está disperso, ao circunscrever a ciência e, de um modo geral, a cultura, ao serviço integral do aperfeiçoamento humano.
 
Legenda da Academia das Ciências de Lisboa

* Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio efetivo da Academia das Ciências.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Nascido em 1751, JOSÉ FRANCISCO CORREIA DA SERRA, tendo sido ordenado presbítero em 1775, foi um cientista, diplomata, filósofo, polímato, acadêmico e político português. Suas investigações nas áreas da botânica, zoologia, geologia e paleontologia lhe deram renome internacional, tendo ingressado na Royal Society em 1796 e na Sociedade Lineana de Londres, além de ter sido membro da Academia Real das Ciências da Suécia. Publicou seus valiosos trabalhos nas mais conceituadas revistas científicas. Segundo Beale Davis, Correia da Serra era considerado uma autoridade em solos, fósseis, ruínas arqueológicas e, principalmente, em questões de botânica, a sua disciplina preferida. Em 24/12/1779, Correia da Serra, junto com D. João Carlos de Bragança, 2º Duque de Lafões, foram fundadores da Academia das Ciências de Lisboa, efetivada com o aval de D. Maria I, onde exerceu o cargo de Secretário-geral. Em 1812, após uma estada de 11 anos em Paris, foi removido do posto parisiense e enviado para os Estados Unidos. Tendo ali chegado, anunciou a intenção de visitar Thomas Jefferson. A afinidade entre os dois manifestou-se logo na primeira visita do abade a Monticello. A Revolução Americana despertou-lhe a imaginação. Para ele, o modelo colocado em prática pelos "founding fathers" da nova nação não tinha qualquer paralelo com os regimes europeus e o abade teve o mérito de o dizer bem antes, numa instituição dedicada à ciência, logo em 1790. Manteve a sua admiração pela separação dos poderes, feita sob o sistema de freios e contrapesos, presente na Constituição dos Estados Unidos, até ao fim da sua vida.
Apreciemos o que o jornalista açoriano ANTÓNIO VALDEMAR tem a nos dizer sobre a figura admirável do abade Correia da Serra, neste bicentenário de sua morte (1823-2023).

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/09/correia-da-serra-um-sabio-entre-os.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

António Valdemar (jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-cadeira nº 3) disse...

Francisco

Muito obrigado pela divulgação.

O melhor abraço do Valdemar

Agostinho Carneiro (lexicógrafo que está trabalhando na feitura de um novo dicionário da língua portuguesa) disse...

Obrigado por mo ter apresentado!!! Abs.

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Prezado Francisco e Rute. Obrigado pelas suas informações sobre o cientista universalista José Francisco Correia da Serra!
Desejo-lhes um feliz e produtivo mês de Outubro !
Grande abraço do irmão frei Joel..

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Um iluminista português
Abs

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Prezado Francisco e Rute Paz e Bem!

Obrigado por suas informações sobre este cientista universalista.
Tenham um feliz e produtivo mês de Outubro!! Grande abraço! frei Joel

Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Bravo!

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

Como sempre, um assunto muito interessante. Sempre aprendendo.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Saudações pela publicação do memorial desse verdadeiro "iluminista" português. Pessoalmente ignorava sua existência.
Obrigado,
Cupertino