terça-feira, 10 de outubro de 2023

DESCOMPASSO


Por HILMA RANAURO *
 

 
Me querem mãe 
e me querem fêmea, 
me querem líder 
e me fazem submissa, 
me fazem omissa 
e me cobram participação, 
me impedem de ir 
e me cobram a busca, 
me prendem nas prendas do lar 
e me cobram conscientização, 
me tolhem os movimentos 
e me querem ágil, 
me castram os desejos 
e me querem em cio, 
me inibem o canto 
e me querem música, 
me apertam o cinto 
e me cobram liberalidade. 
 
Me impõem modelos 
gestos 
atitudes 
e comportamentos.
 
E me querem única.
 
Me castram 
podam 
falam 
e decidem por mim. 
 
E me querem plena...
 
* Escritora com vários livros publicados, poeta, cronista, ensaísta e jornalista, membro da ABRAFIL-Academia Brasileira de Filologia, biógrafa do filólogo Sílvio Elia.
 
Da esq. p/ dir.: Ricardo Cavaliere, Evanildo Bechara e Hilma Ranauro na ABRAFIL

 
II. Análise literária do poema por Francisco José dos Santos Braga 
 
 
No ano passado, Hilma Ranauro fez interessante estudo, onde propôs as bases para uma poiésis como reduto de contestação em que a forma empregada pelo escritor deve possibilitar que o leitor perceba, aprecie e julgue o universo criado e reaja diante dele. Ao escritor cabe fazer a análise e síntese da realidade psicossocial. Se a escrita for uma forma de resistência à opressão, o escritor precisa desenhar o cenário em que a opressão toma corpo, ou seja, precisa igualmente compreender os mecanismos de poder que produzem essa força violenta e desumanizadora, contra a qual o eu poético deve se opor, superar-se, (re)existir. A resistência pode perfeitamente dar-se num espaço temporal em que as contradições do mundo sejam vistas pelo eu poético através de uma perspectiva sócio-histórica e que suscitem, na forma empregada, o jogo de paradoxos, a riqueza metafórica e a interpelação simbólica. Até aqui, temos tratado da forma de expressão do poema. 
 
Quanto ao conteúdo, há duas interpretações possíveis diante da forma empregada. Embora no contexto do poema em primeira pessoa, numa ótica de gênero, seja possível generalizar, atribuindo-lhe o sentido de que "as mulheres carregam nos ombros o peso do mundo", cabe também outra interpretação: a de que, dada a indeterminação do sujeito, como é o caso, o sujeito indeterminado empregado reiteradamente ao longo do poema não deve ser visto de uma perspectiva unicamente feminista, subentendendo-se  que seja "o mundo", metaforicamente considerado como "o sistema", algo maior, apenas sentido e impossível de ser claramente verbalizado. Neste caso, "o mundo", dentro do poema, é simbolizado pelo coletivo, jamais enunciado explicitamente: é o sistema que impõe, constringe e obriga o eu poético a ser de uma maneira não desejada, embora não consiga extirpar-lhe inteiramente a utopia que está presente/subjacente em cada dístico do poema. Ainda que os dois últimos (dísticos) aparentemente se distingam dos anteriores na apresentação, ambos continuam a ter a mesma coesão interna e conotação, ou seja: (Me impõem modelos, gestos, atitudes e comportamentos/ E me querem única e Me castram, podam, falam e decidem por mim/ E me querem plena...) 
 
Neste sentido, a revolta do eu poético é contra o mundo: é irrelevante se chamam a artista de poeta ou poetisa; o importante para ela é "poetizar o mundo".
 

III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 
 
RANAURO, Hilma: DESCOMPASSO, Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro,  1ª ed., 1985; Ed. Tagore, 2ª ed., 1989.

__________: A arte literária como reduto de contestação ou confirmação do poder, revista Confluência. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, nº 63, p. 128-137, jul./dez. 2022.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O poema intitulado Descompasso, para o qual fiz sucinta análise literária, dá título ao livro de HILMA RANAURO. Além de Descompasso, escreveu outros livros, tais como Um Murro no Espelho Baço e O Falar do Rio de Janeiro. Teve, ao lado da atividade de escritora, intensa atividade docente nas áreas de filologia e linguística na UFF-Universidade Federal Fluminense, ao mesmo tempo que obtinha os títulos de Mestre em Letras pela PUC-RJ e Doutora em Letras Vernáculas pela UFRJ.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/10/
descompasso.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Poetisando disse...

O poema mostra a contradição que nos é imposta por sermos mulheres. Sequer nos é dado o direito da escolha, apenas o ônus da consequência.

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Muito obrigado, mestre! Iremos à lição.
Forte abraço poético.

Hilma Pereira Ranauro (escritora, filóloga, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro") disse...

Que dizer, amigo?!
Sim, amigo. Como não?
Sua leitura do dito por trás do não dito... subjacente a ele...
Que dizer???

Que Deus o abençoe.

P.S. E PARABÉNS PELO SEU TEXTO.
Hilma

Hilma Pereira Ranauro (escritora, filóloga, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro") disse...

Usando a expressão do crítico literário Ricardo V. L., de que lhe falei, digo-lhe:
você tem uma boa “pegada crítica”. Enviei seu texto para ele.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Uma aula de análise literária sobre o poema da escritora!
Muitíssimo grato.
Cupertino

Elizabeth dos Santos Braga disse...

Acho difícil ou mesmo impossível não interpretar o poema "Descompasso", de Hilma Ranauro, numa ótica de gênero. Os substantivos e adjetivos no feminino (mãe, fêmea, submissa, omissa...), assim como outros sentidos (prendas do lar, movimentos tolhidos...), nos levam a pensar na condição feminina.
Pode ser, Franz, que o poema o tenha levado a pensar no ser humano genérico (acho possível, afinal, todos somos tolhidos e temos modelos impostos), mas penso que para as mulheres as vivências trazidas nos versos são muito mais pesadas.
Beijos,
Petete

Sônia Haddad disse...

Gostei do poema, Elizabeth: forte, como você diz, e sua singularidade evidencia os grilhões da Mulher contemporânea.
O texto que traz o comentário do Francisciquinho nos soa como que escrito a bico de pena, cuidadoso está em sua formal análise literária.
Que o domingo tenha luz e cor.
Saudades, amiga.
Sônia

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Gostei especialmente do texto que me enviou.