sábado, 7 de outubro de 2023

NATÁLIA, ENTRE DOIS EXTREMOS


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
A criação literária de Natália Correia possui duas componentes fundamentais: o pendor lírico, ao aprofundar os sentimentos mais íntimos, e a sátira escaldante e corrosiva para ajuste de contas com poetas, escritores, artistas, políticos e outras pessoas que detestava. (Texto publicado originalmente na revista TEMPO LIVRE edição de 4 de Outubro, 2023, Lisboa.)
Natália Correia numa interpretação de Álvaro Carrilho

 

 

NATÁLIA CORREIA pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer um nome para as identificar na amplitude da sua criação literária e artística e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Vieira (da Silva), Agustina, Amália. Nasceu nos Açores na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo, uma freguesia do interior, próximo de Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil. 

A mãe de Natália, a professora primária Maria José Oliveira formara-se no ideário cívico e cultural da I República, adotando princípios laicos e tendências libertárias, o que era raro na época e, ainda, muito mais raro nos Açores. Além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas. Mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas, incutindo-lhes os valores da democracia e a aproximação com a modernidade. Radicou-se, em 1934, definitivamente, em Lisboa. Quis dar às filhas – para triunfarem na vida – as oportunidades que não existiam nos Açores. 

Natália ganhou notoriedade nos anos 40. Conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Aderiu à oposição democrática; teve programas no Rádio Clube Português, escreveu em jornais e revistas. Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos jovens intelectuais e políticos da sua geração – caso Mário Soares, Salgado Zenha – não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista. 

Os primórdios literários de Natália Correia refletem aspetos genéricos do neorrealismo. O romance Anoiteceu no Bairro e o livro de versos Rio de Nuvens são dois exemplos. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, nos anos 50. Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes óbvias. Passou a ficar próxima do surrealismo. 

Manteve relações pessoais e literárias com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill, Manuel de Lima e Mário Henrique Leiria. Acrescente-se Luís Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de poesia de Natália, desta segunda fase: Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958) e Comunicação (1959). É um documento humano repleto de inquietações e de perplexidades. Já o Canto do País Emerso (1961) constitui a transição para o combate político. 

Publicou, com êxito, muitos outros livros de poesia, de ficção, de teatro, de ensaio e de crónicas ocasionais. Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, o vínculo com os Açores foi igualmente profundo. Não Percas a Rosa, um dos seus livros mais famosos, regista as reminiscências visuais, auditivas e gustativas que remontavam à infância e ao começo da adolescência, na ilha de São Miguel. 

Na linhagem das Cantigas de Escárnio e Maldizer, concebeu as Cantigas de Risadilha. Para enfrentar todos os poderes e todos os convencionalismos. Ficaram célebres os versos para arrasar o deputado do CDS, João Morgado quando se pronunciou, na Assembleia da República, acerca da legislação sobre o aborto. Morgado disse categoricamente: «o ato sexual é para fazer filhos». Natália, deputada do PSD, não se conteve e fez, de um jato, um poema que saiu na íntegra no dia seguinte, no Diário de Lisboa

Natália declamou com a maior ênfase: «Já que o coito – diz Morgado –/ tem como fim cristalino,/ preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca,/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca./ Sendo pai só de um rebento, / lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/só usou–parca ração!–/uma vez. E se a função/ faz o órgão – diz o ditado –/ consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!» 

Lisboa era a sua cidade adotiva. Juntamente com o marido Alfredo Machado e com a escultora Isabel Meyrelles criou, em 1971, uma sociedade para instalar um bar, restaurante/café-concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro. Ficou a chamar-se o Botequim. Evocava a tradição literária, política e boémia, que remontava aos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage e aos antecedentes da revolução liberal e da independência do Brasil. 

Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o País. Desencadeara no consulado de Salazar e na «primavera marcelista» duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo motivado pela introdução e coordenação da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965). O segundo processo devido à responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas (1972) da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros foram objeto do alarme da Censura e da imediata apreensão da PIDE. Foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final. 

Em torno de Natália, o Botequim concentrou todas as noites, poetas, escritores e artistas das mais variadas tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros (alguns futuros presidentes da República). Diplomatas portugueses e estrangeiros. Espiões nacionais e internacionais para se inteirarem dos bastidores do processo revolucionário e contrarrevolucionário. Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores. 

Durante mais de 20 anos a irradiação magnética de Natália proporcionou essa atmosfera irrepetível que Fernando Dacosta recriou no seu livro O Botequim da Liberdade (2013). Outra obra de referência obrigatória é a Fotobiografia de Natália (2006) da autoria de Ana Paula Costa. Recentemente, surgiu a biografia romanceada por Filipa Martins e com o título expressivo O Dever de Deslumbrar

Trinta anos depois da morte e ao comemorar-se a 13 de setembro o centenário do nascimento, o legado cultural de Natália Correia perdura. Celebrou a vida como expressão de euforia, de afirmação de coragem pessoal e cívica, de rebeldia aparatosa, de inconformismo colérico. A sua poesia é sempre dominada por dois extremos: a confidência lírica e o sarcasmo feroz: a riqueza metafórica, o jogo dos paradoxos, o luxo ornamental, a exuberância do barroco e a interpelação simbólica. Uma Natália ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha contínua do profano com o sagrado. 

* Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio efetivo da Academia das Ciências. 

 

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto utilizada neste ensaio.
 
 
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 
 
VALDEMAR, António: CEM ANOS DE NATÁLIA CORREIA: a criação literária e a intervenção política de uma mulher única 

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Por ocasião da comemoração do centenário de Natália Correia (1923-2023), nascida aos 13 de setembro de 1923, na ilha de São Miguel dos Açores, na freguesia de Fajã de Baixo, o jornalista ANTÓNIO VALDEMAR destacou sua vida pontuada pela multiplicidade cultural como poetisa (como gostava de ser chamada, dado o seu sonho de "feminizar o mundo"), dramaturga, romancista, ensaísta, tradutora, jornalista, roteirista e editora. No presente artigo, complementa a sua brilhante análise sobre a poetisa, constatando a dicotomia presente em sua criação literária dividida entre "o pendor lírico, de um lado, e a sátira escaldante e corrosiva de outro, para ajuste de contas com poetas, escritores, artistas, políticos e outras pessoas pelas quais nutria aversão".

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/10/natalia-entre-dois-extremos.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

António Valdemar (jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-cadeira nº 3) disse...

Caro Francisco

Muito obrigado pela trnscrição do meu artigo sobre a vida e obra de Natália Correia, publicado na revista do semanário Expresso a 8 de Setembro. Vou ser um dos oradores da sessão consagrada a Natália Correia a efetuar no proximo dia 26 de Outubro proximo, no salão nobre da Academia das Ciências

Posso dizer–lhe que estou agora a rever e acrescentar o texto para editar um opúsculo mais completo. Logo que esteja concluído mandarei ao Francisco.

O melhor abraço do Valdemar.

PS se houver reação à leitura, agradeço-lhe o favor de me comunicar.

Outra vez muito grato e com outro abraço

Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...

Fecunda existência, a de Natália... Obrigado por me apresentar a essa admirável criatura.

Paulo Milagre (escritor e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Obrigado Francisco.
Tenham um domingo abençoado.
Fraterno abraço.
Paulo Milagre.

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "O Falar do Rio de Janeiro") disse...

Obrigada pela informação sobre NATÁLIA. Pertence às pessoas que marcam indeléveis sobre a sua vida. Imortais.

Hilma

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Gostei de conhecer vida e obra da poetisa açoriana, Natália Correia, caro Francisco Braga.
Sempre acompanhando.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira