Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição de 25/03/2024, p. 29, da coluna Obituário: Péter Eötvös (1944-2024), compositor, maestro e intérprete foi um dos grandes da Europa musical das últimas décadas.
Péter Eötvös regendo - Crédito: https://van-magazin.de/mag/peter-eoetvoes/ |
Na língua húngara, o nome Eötvös evoca a profissão de ourives: o que trabalha os metais preciosos e os torna peças de arte. Péter Eötvös, que morreu ontem, aos 80 anos, foi, à sua maneira, um joalheiro da arte musical, partindo do som, cuidadosamente depurado, e dando vida a extraordinárias peças de música, como compositor e intérprete.
Nascido na Transilvânia em plena Segunda Guerra Mundial, em Janeiro de 1944, o início da sua vida será marcado pela devastação, numa Europa em escombros. Fugindo ao flagelo da Frente Leste, a família irá rumar a Dresden, sem imaginar que a sua chegada iria coincidir com os bombardeamentos dos Aliados que se traduzirão em mortes incontáveis, e dos quais a criança de berço escapou como por milagre numa cave incógnita.
Crescerá numa Hungria capturada pelo regime soviético onde, segundo o seu próprio testemunho, professores e alunos se atinham a um veemente silêncio nas obrigatórias aulas de língua russa, como forma de resistência e protesto. Ainda em criança estudará na Academia de Música de Budapeste por indicação de Zoltan Kodály, derradeiro expoente da grande modernidade que, com Bartók, transformara a tradição húngara e criara uma escola estética internacionalmente reconhecida.
Concluídos os estudos em Composição, irá procurar um novo curso que lhe permita adiar o serviço militar obrigatório. Por mero pragmatismo envereda pela Direcção de Orquestra, sem imaginar que essa dupla formação viria a talhar de forma decisiva a sua personalidade musical, conferindo-lhe um perfil raro e de excelência que o imporia como uma das grandes figuras da Europa musical das últimas décadas.
Autorizado a prosseguir os seus estudos na Europa Ocidental, Eötvös escolherá Colónia, epicentro de uma vanguarda musical liderada por Bernd Alois Zimmermann e Karlheinz Stockhausen. Aluno do primeiro na Musikhochschule, rapidamente entrará no círculo do segundo, integrando como pianista o Grupo Stockhausen, com o qual virá a partir para o Japão, participando em centenas de concertos com as obras do mestre na Exposição Universal de Osaka.
A carreira como maestro ganha um fortíssimo impulso quando substitui Michael Gielen na direcção de Hymnen mit Orchester, de Stockhausen, em Paris, em 1977 — um momento histórico na sequência do qual Pierre Boulez viria a convidá-lo a dirigir o concerto inaugural do IRCAM, frente ao Ensemble Intercontemporain, de que se tornará depois director musical.
O resgate da ópera
Após anos em que se viu submerso pela actividade de intérprete, recentrou-se como compositor em torno da ópera
Submerso pela actividade de intérprete, a sua obra como compositor revelar-se-á numa fase tardia, em meados da década de 1990, com a composição da ópera Três Irmãs, a partir de Tchékhov. Se a sua adolescência e juventude, em Budapeste, tinham sido marcadas pela colaboração com o teatro e o cinema, para os quais escreveu abundante música, não é surpreendente que o recentrar da sua vida na composição, já depois dos 50 anos de idade, tenha passado por um reencontro entre teatro e música.
As primeiras visitas de Eötvös a Portugal remontam aos anos em que serviu como director musical do Ensemble Intercontemporain. Já no século XXI, dirigirá a London Sinfonietta na Temporada Gulbenkian, em Fevereiro de 2006, interpretando obras suas e de compositores por si propostos (entre as quais a minha Paraphrase, que tinha dirigido em estreia dias antes, em Londres). Dirigiria ainda a Orquestra Gulbenkian em dois inolvidáveis concertos com a sua música (zeroPoints e Jet Stream) e o magnífico poema sinfónico Die Seejungfrau, de Alexander von Zemlinski.
Em 2010 regressará a Lisboa para uma rara produção de Momente, que considerava a obra-prima de Stockhausen, com o Coro Gulbenkian. Nos anos seguintes iria desenvolver uma forte relação com a Casa da Música, iniciada em Novembro de 2014, com a estreia portuguesa da sua obra Atlantis. Acolhendo-o como artista residente, a instituição será co-comanditária de três das suas obras — Da capo, Secret Kiss e o recente Concerto para Harpa, estreado em Paris em Janeiro.
Foi ainda Artista Associado da Orquestra Metropolitana de Lisboa na Temporada 2020/21. Agendada anos antes, uma parte da programação foi comprometida pela pandemia de covid-19. Salvou-se, entre outros, o concerto com o seu Dialog mit Mozart, apresentado no Centro Cultural de Belém, lado a lado com a Quarta Sinfonia de Gustav Mahler.
Na noite de sábado, dirigi em Budapeste a estreia húngara do seu Concerto para Saxofone e Orquestra, Focus, página brilhante, jazzística, sedutora, que evoca memórias antigas de Paul Desmond e Gerry Mulligan, entre outros. “Desde a infância sempre me senti muito próximo do saxofone, porque soa como se fosse eu próprio a cantar”, escreveu.
Deixámos tudo em palco, como sói dizer-se — a orquestra, a solista, Erzsébet Seleljo, e eu próprio —, num misto de completo envolvimento, de emoção e daquele puro prazer musical que Péter tão bem cultivava na sua escrita e nas suas interpretações. Assim que terminou o concerto dei-lhe conta do enorme sucesso da sua obra, aplaudida em apoteose.
Quis o destino que fosse o seu derradeiro aplauso público em vida. Tinha prometido visitá-lo na tarde de ontem. Horas antes de ir ao seu encontro, fui surpreendido pela notícia devastadora da sua partida. Repousa em paz, querido Péter.
* Compositor português nascido em Lisboa em 1972, é um dos mais activos e promissores compositores portugueses da nova geração.
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