Por Raquel Naveira
Mariana (1745) foi a primeira vila de Minas Gerais, a Cidade Primaz, um marco histórico nesses campos de ouro e minérios, de picos altos, fria e úmida, no meio da Mata Atlântica. Conserva a arquitetura barroca colonial, em igrejas encantadoras com altares de madeira torneada, lustres de cristal e notas musicais vindas de um antigo órgão alemão.
Foi para Minas Gerais que a caravana modernista, organizada pelo escritor e folclorista Mário de Andrade (1893-1945), se dirigiu em 1924. Integravam a caravana Oswald de Andrade, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta de origem suíça em visita ao Brasil, Blaise Cendrars. Encontraram no século XVIII mineiro, na área das artes visuais, o “lastro cultural de uma identidade nacional”. Mário havia publicado um longo ensaio no Jornal do Brasil sobre a arte religiosa em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João del-Rei. Escreveu também sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e suas magníficas esculturas. A partir daí, propõe a proteção do patrimônio cultural brasileiro, através do serviço histórico e artístico nacional, que se tornou realidade no dia 30 de novembro de 1937, em ato do presidente Getúlio Vargas. Mário via nas cidades mineiras uma “sociedade de pensamento que fala em independência e república”, já com a participação de mulatos e artesãos.
Mário anteriormente fora para Mariana, com o intuito de visitar o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraes, conhecido como “o solitário de Mariana”. Alphonsus nascera em Ouro Preto, foi apaixonado por sua prima Constança, desde muito cedo escrevendo versos para ela. Constança morreu prematuramente de tuberculose e essa tragédia pessoal, amor e morte, está presente em toda a sua obra poética. Quem não se lembra de “Ismália”?
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Alphonsus formou-se em Direito em 1895. Já juiz e casado com Zenaide, mudou-se para Mariana vivendo em isolamento completo, morrendo nessa cidade em 1921, com cinquenta anos. Compunha loucamente poemas de forte misticismo, numa atmosfera branca de sonhos e melancolia.
Mário de Andrade, jovem de vinte e seis anos, dedicado à promoção cultural nacional, pesquisador incansável de ritmos novos para a poesia, bem como de uma linguagem genuinamente brasileira, no léxico e na sintaxe, sentia-se impactado pelos poemas que atravessaram cachoeiras e vales até o Rio de Janeiro e São Paulo.
Como teria sido essa visita? Esse inusitado encontro entre Mário de Andrade e Alphonsus de Guimaraens? O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) imaginou esse encontro e registrou-o num magnífico poema narrativo, um denso diálogo entre duas gerações de poesia, onde o poeta modernista reverencia o simbolista. Uma soberba homenagem à herança deixada pelos simbolistas. O poema “A visita” de Drummond começa assim:
“1919. 10 de julho.
Palmas. A porta aberta não responde.
Ô de casa! Mais palmas. A menina
Manda entrar. O corredor abre à esquerda,
Na tristeza de cinza do escritório baixo.
Dentro, o homenzinho,
50 anos por fazer, mas feitos secamente
No rosto grave: — O senhor deseja?
— Vim conhecer o Príncipe, vim saudar o Príncipe
Dos Poetas das Alterosas Montanhas.”
E aí tem início a respeitosa conversa, pois é bom conversar com aquele que contempla o deserto das cidades mortas. Dois obcecados pela vertigem do poema no cristal da linguagem. Mário veio de longe, de baldeados trens de ferro, da chuvosa São Paulo, para conhecer o estranho poeta encravado naquelas paragens sonolentas. Mário confessa que toca piano, que a música é uma forma de poesia, pede que Alphonsus lhe mostre alguns poemas guardados. Mário começa a ler em voz alta: “Tens um lis de ternura, que desliza à flor da pele em mágoa suavizante...” Mário delira diante do poeta que diz o indizível. Interpreta versos em francês, sua segunda língua. Tudo se transfigura em redor e dentro desses poetas gigantes, entre as montanhas de Minas. Tudo se dissolve e a luz os traspassa. Despedem-se. É dolorida a despedida, mas a visita foi completa. Alphonsus agradece, Mário retruca, pois é ele quem se rende e se alegra. Desaparece pela rua vazia, como uma ave desconjuntada e grande. A memória nunca se diluirá, embora não fique na folhinha de Mariana. Dois anos depois, a alma de Alphonsus de Guimaraens será uma cruz enterrada no céu.
Essas belezas todas estão no livro A Visita, uma edição particular, homenagem a Carlos Drummond de Andrade. Foram apenas 125 exemplares numerados e recebi esse presente valioso das mãos do bibliófilo José Mindlin (1914-2010), quando lhe fiz uma visita em São Paulo para conhecer sua famosa biblioteca.
Importante o que Dr. Mindlin me contou sobre o planejamento gráfico desse livro. Que chamou a fotógrafa Maureen Bisiliat (1931), inglesa naturalizada brasileira, que atuou na formação do acervo de arte popular da Fundação Memorial da América Latina, em São Paulo, para ilustrar o poema. Aí ela teve uma ideia: ilustrar com fotografias de pedras preciosas. As pedras das Minas Gerais: a opala da noite em estilhaços; o topázio cravado na terra; a ametista negra da solidão; as águas-marinhas, as turmalinas, blocos gelados de insuportável silêncio. Gemas coradas, diamantes, berilos azuis e amarelos. Ficou de uma lindeza pura e mineral.
Por que só hoje relembrei dessas visitas? De quando Mário de Andrade visitou Alphonsus Guimaraens, de quando Drummond visitou as antigas lembranças dos poetas, de quando eu visitei o Dr, Mindlin, um homem raro? Não sei o motivo, mas foram visitas perfeitas, dessas que não se repetem.
5 comentários:
Prezad@,
A crônica de RAQUEL NAVEIRA fala de duas visitas, dois encontros.
O primeiro encontro entre os poetas Mário de Andrade e Alphonsus de Guimarães aconteceu em 10 de julho de 1919, em Mariana, na casa onde o poeta mineiro residia, hoje transformada em Museu Casa de Alphonsus de Guimaraens, na Rua Direita, nº 35, inaugurado em 1987.
O segundo encontro se deu quando a autora fez uma visita ao bibliófilo José Mindlin (1914-2010) para conhecer a sua notória biblioteca em São Paulo.
Ambos os encontros tiveram o mesmo objetivo: construir pontes, formar laços de amizade, considerando a mesma paixão pela literatura.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/05/as-visitas.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Muito obrigada, caro Francisco Braga.
Uma honra.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Meu prezado amigo FJSBRAGA.
Gostei muito do seu trabalho sobre a crônica de Raquel Naveira sobre os memoráveis encontros, sendo o primeiro entre o Mário de Andrade e o Alphonsus Guimarães e o segundo ente o Sr. José Mindlin, quem conheci pessoalmente na FIESP, quando ele era o presidente da Metal Leve, e a Raquel Naveira. A biblioteca do José Mindlin, era impressionante, quer seja pela quantidade de exemplares quer seja por alguns exemplares inusitados e de grande relevância para as futuras gerações.
Meus parabéns!
Lucio Flávio
Caro amigo Francisco
Eu e Beth ficamos encantados com a crônica de Raquel Naveira, sobre o encontro de Mario de Andrade e Alphonsus de Guimarães, pelo que agradecemos a gentileza do envio.
Duas vezes, entre tantas que frequentamos Ouro Preto e Mariana, visitamos – em épocas diferentes – o Museu Casa de Alphonsus de Guimaraens, na Rua Direita, em Mariana, uma necessária lembrança em exaltação a esse notável Poeta.
A propósito, sua postagem fez lembrar a mim, Mario, o Poema “Ismalia” de Alphonsus de Guimarães, o primeiro que em minha infância, por volta dos 12 anos, consegui decorar até ao fim, e que causou um grande impacto em minha mente juvenil, pelo contraste entre a visão de céu e mar, vida e morte, especialmente em seu final. Só um pouco mais tarde, já adolescente, é que compreendi melhor sobre os tristes desvarios dos sonhos de Ismalia...
Aceite meus renovados agradecimentos e o abraço fraterno meu e de Beth.
Mario Cupello.
Caro professor Braga
"Mineiro,
de tão boa raça, de tão boa praça
que acolhe os visitantes numa tarde de domingo.
Mineiro,
dedos na terra; olhos na água.
Arrasta sotaque, mineiro,
e faz caseiro, o pão de queijo.
Mineiro,
de cobrir pelos eriçados alheios,
que se faziam congelados; fria é Minas.
Do feijão tropeiro, guarda metade para os forasteiros.
E ósculos de mineiro? É bom?
Mostra pra mim, mineiro."
Anônimo(a).
Saudações pela publicação da linda crônica.
Grato,
Cupertino
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