quinta-feira, 20 de junho de 2024

EDGAR FERREIRA: ”Quero que fiquem curiosos com este mundo da Orquestra Gulbenkian”


Por RUI PEDRO TENDINHA *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, entrevista publicada na edição de 19/06/2024, coluna CULTURA. ano 160º, nº 56.671, pp. 26-27
 
ENTREVISTA A primeira obra de Edgar Ferreira é uma viagem pelos 60 anos da Orquestra Gulbenkian. O realizador de Soma das Partes assume ter feito um filme em crescente temporal. Chega quinta-feira a 22 salas espalhadas pelo país.

Um cineasta à procura do milagre da música. Em Soma das Partes, Edgar Ferreira até tenta chegar perto do mistério que a música traz para a transcendência de um músico, seja maestro ou instrumentista. Depois da curta A Música é Bela, Os Aeroportos são Tristes, aventura-se numa longa, neste caso comissionada pela Fundação Gulbenkian para celebrar os 60 anos da Orquestra Gulbenkian. Para o ano conta ter pronta outra longa-metragem documental também em registo hagiográfico: celebra-se igualmente os 60 anos do Coro Gulbenkian.
 
 
Olha-se para o seu percurso e fica-se com a ideia de que é um cineasta aberto para a música. Será uma vocação? 
Essa ligação não é propositada nem vontade minha. Tem a ver com um percurso que se colocou à minha frente. Mas essa questão da música tem sido um processo de aprendizagem. Quando comecei a trabalhar com a Fundação Gulbenkian não conhecia muito de música clássica. Ao ver como todo o processo funciona, tenho recebido um conhecimento extra.
 
Mas assume que é um filme-encomenda. 
Sim, a Fundação decidiu que havia um marco histórico com as seis décadas da Orquestra Gulbenkian e estendeu-me a mim e à minha produtora, a Galope, este convite. 
 
E na sua cabeça como se poderiam comemorar estes 60 anos de existência da Orquestra? 
Quando me foi proposto havia logo aquela ideia: 60 anos, 60 minutos... O que se queria era incluir o máximo de perspetivas possíveis sobre aquilo que é a definição de uma orquestra. Dos músicos, maestros, espectadores, passando por coordenadores de orquestras, diretores do serviço de música a musicólogos. Desejava que houvesse a visão mais abrangente possível. Esta estrutura parecia fácil, mas havia uma história a ser contada com muitos momentos históricos relevantes – aí percebi que seria mais complexo condensá-los em períodos tão curtos. O tempo é um tema muito abrangente... e permite fazer várias declinações: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo da própria orquestra e o tempo da música que é tocada, música que subsiste no tempo. Falei com a argumentista, a Andrea Lupi, e percebemos que queríamos explorar todas essas variáveis. Tentámos abordar a questão do tempo com o maior detalhe possível. Curiosamente, na primeira versão do guião estávamos com 30 minutos que tinham de ser incluídos num segmento de 10... Cheguei a pensar que estávamos com um formato redutor que nos obrigaria a excluir muita coisa importante. 
 
Tiveram então de lutar para que tudo não ficasse demasiado abreviado? 
Quisemos então ter tempo para alguma profundidade, mas tivemos realmente que fazer esse exercício de reduzir ao essencial. Por exemplo, era importante explorar os Festivais de Música e aí decidimos incluí-los quando eles terminam, neste caso antes do começo da orquestra. Isso reforça a importância do peso da criação da orquestra. Depois desse exercício de condensação, ficámos surpreendidos com o ritmo que obtivemos. Fomos muito criteriosos e quisemos tirar a multiadjetivação. Ganhámos uma cadência. O filme ficou acelerado. 
 
Podemos falar em ritmo musical? 
Isso. A própria estrutura do documentário vem dessa relação com a música que tem um determinado tempo. Gostava que se sentissem os intervalos de tempo. Claro que não é novo um filme que é marcado pelo tempo, sobretudo quando nos dá a sensação de contagem decrescente. Só que nós apostámos antes numa contagem crescente, sempre a somar. Acabou por ser um exercício de adição. Ainda me interroguei se o espectador não ficaria a contar o tempo, coisa que nunca é positiva, mas penso que não, aqui não acontece isso: há sempre a vontade de querer saber o que se passa nos 10 anos a seguir. 
 
O que queria que as pessoas tirassem deste Soma das Partes
Falando como observador, este filme é a minha retribuição à generosidade de um músico quando dá um concerto. Gostava que as pessoas ficassem com interesse em conhecer esta realidade. Se pensarmos que a música não existe, não tem corpo e só pode ser vivida no momento em que é tocada, ou seja, algo tão frágil, este filme faz a questão paradoxal de como é que ainda persiste ao fim deste tempo todo. E eu acho que é precisamente por não ter corpo que mais facilmente se torna intemporal, ao contrário da pintura, que, por ter um corpo físico, acaba por ficar associada a uma época. 
 
Já no filme de Marco Martins sobre o Ballet Gulbenkian, Um Corpo que Dança, salta à vista essa ideia de fascínio que Gulbenkian cria em torno da música e da arte. É como se fosse um segredo... 
Isso é verdade, mas não sei o segredo. Tem a ver com uma obsessão pela excelência, algo com o qual me identifico com os músicos, esse trabalho constante até à perfeição... Ainda que não seja possível alcançar a perfeição, há sempre esse caminho. E isso está na génese de apoio à criação artística da própria Fundação Calouste Gulbenkian. 
 
Nota-se nos músicos e em todos os entrevistados uma paixão enorme a falar deste tema. Acredito que não deva ter sido difícil sacar essas emoções de paixão. Foi fácil mesmo! É muito natural para eles, sobretudo porque amam o que fazem. Mas neste caso há uma outra questão: o trabalho coletivo, sentirem-se uma peça de algo maior. 
 
Podemos falar da experiência humana que é estar a captar tanto talento extraordinário? Neste filme são entrevistados nomes como Maria João Pires, Lorenzo Viotti, Lawrence Foster e tantas outras sumidades da música clássica. 
É incrível! Mas fiquei sobretudo surpreendido pela simplicidade destas pessoas. É fascinante encontrar uma das maiores pianistas do mundo, como a Maria João Pires, a ter aquela simplicidade... E o que diz acaba por ter camadas. Somos levados a pensar em muito mais quando a ouvimos a dizer que o respeito pela partitura é um exercício que nos convida para a descoberta.

 
Sentiu uma grande diferença na alma de um instrumentista e de um maestro? 
Passa muito no documentário essa questão das diversas funções, que é fascinante. Mas a orquestra é um instrumento do maestro. 
 
Torna-se determinante o conceito de colocar os entrevistados no palco do Grande Auditório Gulbenkian. É como que uma declaração de os colocar no centro de tudo... 
Pois, mas não tornou logisticamente as coisas fáceis. Com a agenda do maestro Lorenzo Viotti estava muito difícil essa gravação, acabou por ser num sábado de manhã, entre concertos, e obrigou a uma grande logística. Conciliar as agendas dos entrevistados com a do Auditório foi complicado e eu não poderia fazer nenhuma entrevista noutro sítio diferente – derrotava todo o propósito de eles estarem no local a que se referem e a convocar memórias. Quero que Soma das Partes seja acessível também às pessoas que não conhecem esta orquestra, quero que fiquem curiosas com este mundo e que no final queiram saber mais sobre música clássica. Desde que estreámos no Festival Caminhos do Cinema Português, de Coimbra, que tenho tido o feedback que este filme deixa as pessoas ligadas. 
 
Em que fase está o filme sobre o Coro Gulbenkian? 
Espero estrear nos cinemas para o ano, mas serão filmes diferentes. Nunca quero fazer igual. Esse será a visão do coro sobre tudo o que está à sua volta. Serão objetos muito diferentes. 
 
* Jornalista de cinema de diversas publicações portuguesas; colabora ainda para o Telecine, canal de cinema brasileiro.
 
 
SOMA DAS PARTES, para redescobrirmos a música

Por JOÃO LOPES *

DOCUMENTÁRIO Com contenção e rigor, Soma das Partes segue um dispositivo tradicional para nos relatar 60 anos da Orquestra Gulbenkian. O filme de Edgar Ferreira ajuda-nos a redescobrir a música como um fascinante universo de trabalho.

A certa altura, no documentário Soma das Partes, de Edgar Ferreira, Maria João Pires fala da relação dos músicos com a partitura que estudam e vão interpretar: “Através da partitura, do respeito pela partitura, temos o suficiente para fazermos um trabalho de descoberta.” Eis uma condensação exemplar de um labor que vai determinar e, de alguma maneira, envolver a nossa escuta. Soma das Partes consegue a proeza, tão simples quanto essencial, de nos fazer sentir a pluralidade de vivências e experiências que determina a vida de uma orquestra. 
 
O dispositivo é tradicional – o que, entenda-se, decorre de um propósito de informação e didatismo cuja eficácia não está em causa. Trata-se de condensar 60 anos de história da Orquestra Gulbenkian através de uma coleção de testemunhos e materiais de arquivo que conduzem o espectador da época do respetivo nascimento, sublinhando o papel determinante de Madalena de Azeredo Perdigão, até à atualidade, com Hannu Lintu como maestro titular. 
 
Dos intérpretes aos maestros, viajamos através de um tecido de memórias tratado por uma montagem realmente esclarecedora. E se é verdade que, em particular, as palavras concisas de Rui Vieira Nery ajudam a definir a estrutura da narrativa, não é menos verdade que a diversidade das vozes registadas (cito, por exemplo, Lorenzo Viotti, que em 2018, aos 28 anos, assumiu o cargo de maestro titular) surge de modo fluente e positivo, evitando o tempero “televisivo”, também ele tradicional, da futilidade ou da caricatura. Há outra maneira de dizer isto: Soma das Partes, não deixando de ser uma antologia de factos e protagonistas, existe sobretudo como retrato de um complexo e diversificado processo de trabalho. E não é todos os dias que encontramos a música tratada não como uma coleção de “curiosidades” mais ou menos superficiais, antes observada como um universo de trabalho – nessa medida, relançando a palavra de Maria João Pires, de descoberta. Tudo isto, convém acrescentar, sem deixar que a narrativa seja contaminada por qualquer facilidade “simbólica” ou moralista, recusando recordar o pré e o pós-25 de Abril como dois países sem nada em comum. 
 
Saúde-se, enfim, o facto de um filme como Soma das Partes, apesar das especificidades do seu tema, surgir através de uma distribuição relativamente alargada em salas de todo o país (da responsabilidade da empresa The Stone and the Plot). Mais do que nunca, é também imperioso não desistir de diversificar os “conteúdos” do mercado das salas, na certeza de que não se renovam públicos (o plural é essencial) sem algum sentido de risco – um risco comercial que é sempre um risco cultural.
 
* João Lopes é crítico de cinema desde 1973, trabalhou para várias publicações. Escreve atualmente para o DIÁRIO DE NOTÍCIAS.

3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de transcrever, com a devida vênia do jornal português DIÁRIO DE NOTÍCIAS, uma entrevista com o realizador de um documentário chamado SOMA DAS PARTES (que estreia nas salas de cinema no próximo dia 20 de junho) e, além disso, uma apreciação do documentário feita por um crítico de cinema português.
O documentário SOMA DAS PARTES trata da história de uma orquestra que contribuiu de forma determinante para o enriquecimento do panorama musical português: ORQUESTRA GULBENKIAN, que neste ano completa seu 60º aniversário.
O documentário percorre os 60 anos de vida da Orquestra Gulbenkian. Com recurso a imagens de arquivo inéditas e através do olhar de músicos, maestros e solistas, conta a história da criação de uma pequena orquestra de câmara que, em 60 anos, ascendeu a orquestra sinfônica internacional, gravando mais de 70 álbuns e atuando ao lado dos maiores nomes da música clássica internacional, alterando determinantemente o panorama musical em Portugal.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/06/edgar-ferreira-quero-que-fiquem.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Sua publicação faz justiça a uma das edificantes realizações da prestigiosa Fundação C. Gulbekian.
Saudações,
Cupertino

Fernando de Oliveira Teixeira (poeta e professor universitário, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Agradeço o envio. Grande abraço