Por LUÍS M. FARIA *
Transcrevemos com a devida vênia da Revista do EXPRESSO, artigo publicado na edição de 21/07/2024, pp. 32-37.
Os rolos carbonizados de Herculano, cidade que, tal como a vizinha Pompeia, ficou soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C., dão informações valiosas sobre a filosofia antiga. Mas só uma fração foi lida. Encontrar e decifrar muitos dos seus textos era uma tarefa quase impossível. Até agora. Novidades sobre a morte de Platão, 2300 anos depois.
Qualquer tentativa de desenrolar os papiros resultava numa considerável destruição dos mesmos, como aconteceu aos primeiros em que se tentou fazê-lo - Crédito: António Masiello/Getty Images |
Não será normal os media internacionais fazerem manchete com a notícia de que foi descoberto o lugar onde um determinado indivíduo foi enterrado há 23 séculos e meio. Exceto, claro, se se tratar de um ícone universal. Quando há semanas soubemos que um velho papiro nos tinha revelado o lugar onde Platão foi sepultado, mesmo pessoas que não leem uma linha do filósofo grego desde as aulas do Secundário, ficaram curiosas. É verdade que o nome de Platão subsiste na linguagem comum em forma de adjetivo para indicar uma relação sexualmente abstémia entre duas pessoas, ou nalguma das inumeráveis metáforas a que isso se presta. Mas o que tornava intrigante a história, além da distância no tempo, era a forma como a descoberta foi realizada: num velho papiro carbonizado cuja decifração se tornou possível graças à tecnologia de ponta, que chegou a envolver grandes aceleradores de partículas em diversos pontos da Europa.
Além de revelar, ou confirmar, que Platão foi enterrado junto a um santuário dedicado às musas nos jardins da sua escola, a Academia (outro legado linguístico dele que sobrevive), o papiro contava um episódio das horas finais do filósofo: para aliviar o seu sofrimento, alguém requereu os serviços de uma escrava da Trácia que tocava flauta. Mas Platão não apreciou a performance, criticando a artista por falta de ritmo. É o género de pormenor que parece dar credibilidade a uma narrativa, lembrando a um nível menos solene as palavras finais do mestre de Platão, Sócrates, descritas em “Fédon” pelo próprio Platão. Já quase totalmente paralisado com a cicuta que fora condenado a ingerir, Sócrates lembra a um dos seus discípulos presentes que devem um galo a Esculápio, o deus da medicina. Foi a sua derradeira lição, na hora de morte: cumpridor até ao fim.
No caso de Platão, esteticamente exigente até ao fim. Platão é um dos filósofos europeus mais importantes de sempre, talvez o mais importante. “Alguém disse que toda a história da filosofia ocidental se resume a notas de rodapé a Platão e Aristóteles”, lembra ao Expresso o diretor de filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, António Pedro de Mesquita. Com a descoberta agora anunciada, Platão torna a aparecer, e logo a partir de textos de outro filósofo grego anterior a Cristo, Filodemo de Gadara (110-35 a.C.), autor do “Índice dos Filósofos”, a mais antiga história da filosofia grega de que há conhecimento. Filodemo não foi contemporâneo de Platão, que morreu em 348 a.C., mas certamente recebeu as suas narrativas de uma tradição contínua, talvez de livros hoje desaparecidos, e à partida não há razões para julgar que a cena da morte de Platão tenha sido inventada, embora a esse respeito as opiniões divirjam um pouco.
O papiro foi encontrado em Herculano, uma cidade vizinha de Pompeia que também acabou soterrada quando o Vesúvio eclodiu em 79 d.C. Bastante mais pequena do que Pompeia, Herculano era o lugar onde muitos membros da elite romana tinham as suas residências. Ao contrário de Pompeia, não ficou debaixo de uma chuva de cinza e pumita e sim de correntes bastante mais densas de gás e matéria vulcânica que atingiram temperaturas de 1000 graus e permitiram a preservação de materiais orgânicos como comida, madeira — ou papiro. Esse pormenor fez toda a diferença para os historiadores de filosofia. Quase 17 séculos passaram até Herculano ser redescoberto, em 1709, antes mesmo de Pompeia. Em 1750, camponeses que abriam um poço depararam com um chão de mármore. Era uma grande villa, a maior da cidade, como depois se constatou. Tinha pertencido a um particular, sem dúvida alguém muito rico (mais tarde serviria de modelo para a villa Getty em Los Angeles, onde hoje se encontra o museu com o mesmo nome). Rodeada por jardins e pomares, ocupava uma área costeira de 250 metros e tinha quatro andares abaixo do piso principal.
Outra indicação do elevado estatuto social do seu proprietário é que numa das alas constava uma biblioteca particular com centenas de rolos de papiro que tinham ficado carbonizados em 79. Esses rolos, à primeira vista indistinguíveis de simples bocados de carvão, chamaram a atenção dos estudiosos não muito depois de a villa ter sido descoberta. Percebeu-se que eram, ou haviam sido, livros, mas a leitura de muitos deles era extremamente difícil, se não impossível; desde logo, pelo facto de qualquer tentativa de os desenrolar produzir considerável destruição, como aconteceu aos primeiros com que isso foi tentado. A biblioteca continha sobretudo obras de filosofia, 44 delas escritas por Filodemo, que provavelmente fora amigo do dono da propriedade e o criador original da biblioteca. Em 1756, o padre Antonio Piaggio, curador de manuscritos antigos no Vaticano, inventou uma máquina para tornar menos lesiva a operação de abrir os papiros. Ainda assim era inevitável continuar a haver danos, até porque a máquina começava o seu trabalho puxando as extremidades dos papiros, o que desfazia logo essas partes. "O material é muito frágil devido ao choque termal do Vesúvio", explica ao Expresso Paolo Romano, investigador do Instituto di Scienze del Patrimonio Culturale, sediado em Nápoles. "Durante esse processo, muitas partes dos papiros ficaram danificadas ou permaneceram coladas às outras folhas."
Em boa parte dos papiros desenrolar não era uma opção. Estavam demasiado "grudados". E assim, enviados para a Biblioteca Nacional de Nápoles, boa parte deles guardaram o seu mistério até hoje. Os estudiosos continuaram a trabalhar naqueles em que isso era viável — essencialmente, os fragmentos que fora possível abrir. A partir de finais do século XIX, a história da filosofia de Filodemo foi conhecendo várias edições que, embora parciais (mesmo hoje, apenas uns 5-10 por cento dela terá sido decifrada), forneceram informações preciosas sobre escolas de filosofia e filósofos individuais. Entretanto, as escavações em Herculano tinham parado, após protestos de residentes locais. Retomadas nos anos 80 do século XX, encontram-se longe de terminadas, e julga-se que em andares inferiores da villa possam existir mais papiros, talvez com obras de outros autores gregos e até de autores latinos. A imaginação saliva com a perspetiva de encontrar não apenas obras de filosofia mas dramas, poemas, tratados médicos de autores clássicos, alguns eventualmente desconhecidos até hoje.
A FORÇA DA TECNOLOGIA
Nas últimas décadas, essa possibilidade cresceu e fortaleceu-se. O que mudou tudo foi a utilização de técnicas de visualização importadas da medicina. Exploradas originalmente por um professor de ciência de computadores na Universidade do Kentucky, Brent Seales, têm dado resultados por vezes espetaculares na decifração de texto oculto — seja em fragmentos já desenrolados, como aquele em que agora se encontraram as referências à morte de Platão, seja nos que é impossível tentar desenrolar sem os destruir. Seales, cujo foco é a exploração do legado cultural da Antiguidade, começou há 20 anos a examinar os papiros de Herculano, mas não foi fácil.
Em declarações ao Expresso, conta que começou por trabalhar em livros durante a era da “livraria digital”, com foco no restauro digital. “Mas depressa me interessei por alguns dos materiais mais danificados — livros e papiros que não podiam ser desenrolados. Inventámos o ‘desenrolamento virtual’ (virtual unwrapping) como uma forma de recuperar a escrita dentro deles sem os abrir fisicamente”, explica. “O nosso primeiro grande sucesso foi com o fragmento da lombada de um livro, que revelou ser uma pequena parte do Eclesiastes escrito em hebraico.”
O trabalho com os papiros de Herculano foi uma continuação disso. Além das dificuldades técnicas, havia a resistência dos papirologistas a darem-lhe acesso aos papiros antigos. A papirologia é um meio relativamente pequeno, e o fenómeno da territorialidade, que se encontra com frequência na Academia, não parece estar menos presente aí do que noutras áreas de estudo. “Muito poucas bibliotecas têm material de Herculano, e esses papiros são muito frágeis”, diz Seales. “O acesso para qualquer outro objetivo que não observação exige autorizações especiais que me levou muito tempo a conseguir.”
Seales queixou-se publicamente dos obstáculos — no programa de televisão “60 Minutos”, entre outros lugares — e só o anúncio, feito em 2016, de que a sua equipa tinha conseguido decifrar um pergaminho hebraico do séc. III ou IV d.C. encontrado queimado e enrolado em Ein-Gedi, junto ao Mar Morto, ajudou a desbloquear as resistências. O fragmento continha passagens do Levítico, o terceiro livro da Bíblia hebraica (e do Antigo Testamento). Nessa altura mesmo papirologistas renitentes começaram a perceber o valor do trabalho de Seales, que aliás não dispensa o deles. Antes pelo contrário: uma vez produzidas as imagens, continuam a ser precisos filólogos e outros especialistas para as interpretar.
“O processo usa um método da imagiologia que consegue ver através de um objeto sem o abrir. Temos usado tomografia de raio-X computorizada, adaptada de tecnologia também usada em contextos médicos”, explica Seales. “Após a imagiologia, o desenrolamento virtual é o conjunto de passos implementados como algoritmos de computador para converter os resultados visuais numa representação plana, legível, daquilo que se encontra dentro. Se a digitalização for de um livro fechado, obtêm-se imagens de cada página. Se for de algo tipo rolo em que não se pode mexer, também se criam imagens planas da superfície enrolada, de modo a poder ler tudo o que a digitalização apanhar nessa superfície. É como fazer um mapa do interior de um livro ou um rolo, desenrolando-o digitalmente para que um leitor possa examinar o que lá esteja escrito.”
A recuperação de textos da Antiguidade não passa apenas por tentar detetar tinta em imagens. Um caminho inverso — bottom-up approach, chama-lhe Seales — recorre à linguística computacional para assumir conhecimento de uma linguagem e procurar provas. “Os grandes modelos de linguagem, em particular, estão a ficar muito bons a preencher lacunas na escrita baseando-se no
conhecimento de como uma linguagem funciona, treinados a partir de um grande acervo de material escrito”, diz. Embora o grupo de Seales ainda não recorra à linguística computacional, ele admite que será o próximo passo a dar no esforço para restaurar o material danificado de Herculano.
Neste momento, a imagiologia recorre a meios cada vez mais sofisticados para separar (“segmentar”) as várias folhas contidas num papiro enrolado e examinar o que se encontra em cada uma. Alguns dos instrumentos privilegiados nesse esforço são os aceleradores de partículas, essas grandes estruturas que normalmente associamos a estudos de física extremamente complexa ou então a cenários catastróficos de ficção científica. Na verdade, eles têm utilizações variadas em muitas áreas. “O acelerador permite-nos capturar digitalizações muito precisas do interior do objeto acabado”, diz Seales. “A previsão e a rapidez são importantes para bons resultados. Muitos aceleradores têm um processo para requerer e comprar tempo para usar os seus instrumentos, e é assim que nós e outros investigadores conseguimos acesso. Esperamos que os custos se reduzam através da automação e da aplicação de técnicas em conjunto.”
O trabalho pioneiro de Seales e da sua equipa teve seguidores. Entre eles, o grupo que agora anunciou ao mundo as descobertas sobre Platão: o GreekSchools Project, uma iniciativa financiada pela União Europeia cujo objetivo é digitalizar e tornar acessíveis textos gregos antigos, bem como fornecer recursos educacionais aos académicos e outros interessados. Foi uma ideia de Graziano Ranocchio, professor da Universidade de Pisa e especialista em papiros. “Teve por base a intuição de que só esforço multidisciplinar e colaboração entre físicos e químicos, por um lado, e papirologistas, paleógrafos e filólogos, pelo outro, poderia produzir resultados significativos na investigação aos papiros de Herculano”, diz Ranocchio ao Expresso.
Contando que há 30 anos estuda diariamente os papiros de Herculano na biblioteca de Nápoles, e que esse foi um trabalho solitário durante muito tempo, Ranocchio acrescenta: “Somos o segundo grupo em todo o mundo que aplica técnicas físicas, químicas e óticas avançadas aos papiros para os decifrar e ler texto que está oculto neles.” Como nesta área os progressos conseguidos em isolamento são raros ou nenhuns, menciona o lançamento de uma plataforma em open source para edição colaborativa. “Isto é um produto completamente novo que permitirá aos papirologistas do mundo inteiro fazer edições críticas dos papiros de Herculano diretamente com um processador de texto e em colaboração”, sem terem de dominar ferramentas de software nem sempre fáceis. O projeto aplica aos papiros técnicas que usam onda curta, infravermelhos, raio-X, tomografia, imagiologia hiperespectral, envelhecimento, macrocoloraçōes, coerência ótica, microscopia digital de alta resolução, etc.
“Em 2016 fomos os primeiros a aplicar algoritmos matemáticos para o desenrolamento digital de partes dos rolos analisados por nós através de luz de sincrotrão na European Synchroton Radiation Facility em Grenoble usando tomografia de contraste de fase por raio-X para separar folhas digitalmente e ler algum texto dentro delas”, diz Ranocchio. “Foi um avanço não apenas no que respeita aos resultados, mas também do ponto de vista metodológico.”
Reconhecendo o papel pioneiro de Seales no desenrolamento virtual dos papiros e a qualidade dos resultados por ele obtidos num outro sincrotrão, em Oxford, o investigador italiano nota que o investigador americano não conseguiu descobrir texto dentro do produto tomográfico. “Mas teve a brilhante ideia de tornar universalmente acessíveis os seus resultados e os seus dados experimentais. Jovens especialistas em inteligência artificial e redes neurais encontraram o que ele não tinha conseguido encontrar.”
Isto é uma referência a uma iniciativa inovadora lançada em março de 2023 por Seales com a ajuda de financiadores privados. O Vesuvius Challenge (Desafio Vesúvio) ofereceu prémios até um milhão de dólares para quem conseguir decifrar passagens no interior de papiros de Herculano enrolados usando machine learning e visão computacional. Convém lembrar que machine learning é algo que hoje em dia muitos estudantes de liceu pelo mundo fora já exploram por si mesmos. O primeiro prémio foi atribuído a um estudante universitário (e estagiário da SpaceX) norte-americano de 21 anos, que se tornou a primeira pessoa a conseguir identificar uma palavra inteira num fragmento de um papiro. A palavra era “púrpura”, um termo associado a riqueza e realeza.
Semanas depois, um estudante de doutoramento egípcio em Berlim decifrou algumas colunas de texto com excecional clareza. E um estudante de robótica em Zurique também recebeu prémios pelo seu trabalho no mapeamento de partes dos papiros em 3D. Os três premiados acabaram por formar uma equipa que se candidatou ao grande prémio, no valor de 700 mil dólares, destinado a quem conseguisse decifrar “quatro passagens de 140 carateres cada, com pelo menos 85% dos carateres recuperáveis”. Os promotores do desafio admitem que estimavam em menos de 20% as probabilidades de sucesso no prazo definido — 1º de janeiro de 2024. No final, não só a equipa vencedora conseguiu cumprir o estipulado mesmo em cima do prazo, como lhe acrescentou 11 colunas extra de texto, num total de mais de 2 mil carateres.
Os resultados do Vesuvius Challenge até agora provam que, não obstante o papel fundamental de novas tecnologias, a evolução da ciência continua a não dispensar o esforço de uma enorme quantidade de pessoas pelo mundo fora.
NA HORA DA SUA MORTE
No que respeita à fiabilidade das revelações sobre a morte de Platão, um grau de ceticismo não parece irrazoável. “Temos de compreender que o modo como se escrevia História na Antiguidade não tem nada a ver com a nossa”, diz ao Expresso Pierre Vesperini, do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. “Os autores antigos com frequência inventam coisas, recebem tradições orais, e o mais importante para eles é transmitir essas tradições, contar histórias, mas não necessariamente ter certeza da verdade objetiva do que estão a contar. Por isso, temos de ser muito cuidadosos quando usamos fontes antigas. Em especial, mas não só, quando se trata de uma escola, digamos, um inimigo ou um rival de outra escola.”
Lembrando que a escola designada como Jardim de Epicuro era rival da escola de Platão, Vesperini acha que não se deve pensar em Filodemo como uma fonte absolutamente objetiva, para mais não sendo um historiador como Tucídides e sim um filósofo. “Devemos encarar os seus textos como testemunhos ou exemplos do que se dizia sobre Platão, não como documentos objetivos.” Em relação às últimas horas do filósofo, “podem ter sido um pouco inventadas”, arrisca.
Na sua opinião, é ilustrativa a diferença em relação à famosa cena da morte de Sócrates. “Porque Platão escreve para uma audiência que conhecia Sócrates e sabia como ele tinha morrido. É quase impossível pensar que ele tivesse inventado os detalhes da morte de Sócrates, que aconteceu em frente a um grupo de contemporâneos. Se Platão tivesse mentido, haveria certamente textos antigos a dizer isso.”
Em relação ao relato de Filodemo, António Pedro de Mesquita entende que “o facto de se tratar de um testemunho duzentos e tal anos posterior à morte de Platão não é suficiente para considerar que não seja relevante e fidedigno. Todos esses autores se baseavam em fontes anteriores, e tudo depende da fiabilidade dessas fontes e também do critério historiográfico que eles tinham”, diz. “Se fossem pessoas honestas e com orgulho, teriam capacidade para filtrar a informação boa da outra. Nós temos testemunhos muito posteriores, do século III d.C. (refere-se a Diógenes de Laércio, autor de uma famosa compilação de biografias de filósofos gregos) e no entanto damos-lhes valor.”
Faz uma distinção. A informação sobre o local de enterro de Platão “tem um estilo fiável. Não quer dizer que o seja”. Já a cena com a flautista, podendo ter acontecido, “também é o género de coisas que alguém imaginativo podia ter dito”. Há que levar em conta não só o autor que transmite as fontes, mas também o estilo de informação, que sugere se se trata de algo eventualmente lendário ou pode ter um fundo histórico. “Pelo que ouvi das notícias, essa réplica à escrava se calhar é lendária, e a outra parte provavelmente fiável”, diz.
Qualquer que seja a verdade, a discussão só se torna possível porque surgiu um texto com mais de 2 mil anos que a lançou. O professor Victor Gysemberg, especialista na interpretação de fontes greco-latinas e investigador no Centre National de la Recherche Scientifique, em França, nota que a imagiologia tem realizado grandes feitos em escritos da Antiguidade nas últimas décadas. Refere, por exemplo, o palimpsesto de Arquimedes, um pergaminho do século X com cópias de obras do geómetra grego, que entre 1998 e 2008 foi submetido a um processamento digital que tornou legível o seu conteúdo. Material de origem animal, o pergaminho é bastante mais durável do que o papiro, e por isso temos hoje uma quantidade considerável de
pergaminhos antigos mas quase nenhuns papiros. Os de Herculano sobreviveram, paradoxalmente, por terem sido carbonizados, o que os preservou durante milénios, à espera que alguém os resgatasse do esquecimento e do seu mistério.
“Temos estado à espera disto”, diz Gysemberg. “De certa forma, há dois séculos que esperamos, pois é impossível desenrolar estes papiros. Ficaram tão queimados que é impossível fazê-lo sem os quebrar em mil peças. Eu vi-os e vi as máquinas que se inventaram no século XVIII. Funcionavam bem para desenrolar os menos queimados e danificados, mas agora temos centenas de rolos que não há maneira de desenrolar. Recentemente, nos últimos 20 ou 30 anos, tem-se especulado que a grande inovação estava prestes a chegar, e agora chegou de facto. Embora ainda haja imenso trabalho pela frente, sabemos finalmente que o podemos fazer.” O sincrotrão dispara sobre o objeto um fluxo de raio-X mais poderoso do que os usados na medicina, explica. “A seguir medimos o que objeto reflete. O objeto é um pouco como um espelho. Mantém parte dos raios-X e envia alguns de volta.” Para usar o sincrotrão, os investigadores públicos ou privados têm de fazer um pedido. Se este for concedido, não se tem necessariamente de pagar, ou paga-se apenas uma pequena fração do custo real — afinal, é um equipamento público — mas o tempo disponível é limitado.
“
A utilização destes equipamentos na exploração da nossa herança cultural é importante, mas só temos uma hipótese”, diz Gysemberg. “É uma situação cheia de adrenalina quando temos 24 horas de beam time (tempo de raio) numa semana, por exemplo. Toda a gente vai tentar usar cada segundo disponível, pois a próxima oportunidade poderá ser daqui a um ano ou dois, ou nunca.”
O passo seguinte, a utilização de machine learning, ele descreve-a como "a criação de um cérebro artificial que então se começa a instruir”. “Podemos ensinar-lhe muitas coisas. Neste caso, queremos ensiná-lo a identificar padrões dos dados do sincrotrão, reconhecendo mudanças na textura, mudanças na sensação que dá a superfície do papiro. Pois é assim que podemos dizer se há tinta no papiro. Ela torna-o um pouco mais suave do que normalmente ele é.” Sendo tinta puramente à base de carbono, a dificuldade em detetá-la aumenta. “É como um lápis”, diz. “Tradicionalmente, não tem quaisquer metais. Mas às vezes há um pouco de chumbo, provavelmente acidental.”
O caminho está aberto. Lembrando que as notícias recentes sobre a morte de Platão não se basearam no desenrolamento virtual, pois foram realizadas sobre papiros já abertos, Seales diz não ser surpresa que académicos e investigadores estejam a rever as suas leituras com base em tecnologia que permite ver mais claramente a tinta. “Digitalizámos a coleção inteira de Herculano de forma sistemática e estamos a preparar-nos para disponibilizar à comunidade académica imagens e modelos 3D de cada pedaço de papiro de Herculano. Estas novas digitalizações são cotejadas com todas as anteriores, permitindo aos investigadores comparar diretamente os textos agora visíveis com a fotografia mais antiga. Quando isso acontecer, esperamos um fluxo contínuo de investigação, revelando leituras novas e revisões de leituras anteriores.”
Além dos textos já antes identificados, espera que centenas de outras obras tornem à luz ao fim de dois milénios. “O restauro desses papiros continuará esta recuperação de material clássico a um nível que o mundo não assistia desde que Poggio Bracciolini andou a resgatar manuscritos no início do Renascimento italiano”, diz. Bracciolini (1380-1459) foi o humanista italiano que aproveitou os intervalos no seu trabalho como scriptor e diplomata ao serviço de sucessivos Papas para visitar bibliotecas monásticas em vários países europeus e ressuscitar manuscritos da antiguidade há muito esquecidos. Devemos-lhe o conhecimento de obras de autores como Cícero, Lucrécio e Quintiliano, entre outros. A comparação feita por Seales é ambiciosa, mas ele justifica: “Há grande beleza nas tecnologias de que fomos pioneiros e na sua força restauradora.”
* Luís M. Faria é jornalista
NOTA DO GERENTE DO BLOG: Em 21/04/2024 o Blog do Braga apresentou a tradução do espanhol de um artigo intitulado "Villa dei Papyri" em Herculano no século XXI: Atualização científica e situação dos trabalhos (2000-2016) dos professores Drª María López Martínez e Dr. Andrés Martín Sabater Beltrá, em que os autores abordavam o mesmo tema para o período de 2000 a 2016.
A transcrição do presente artigo publicado pela revista EXPRESSO no Blog de São João del-Rei, intitulado "Os papiros voltaram a falar", objetiva fazer uma atualização das mais recentes descobertas, tratando extensivamente do Vesuvius Challenge (Desafio Vesúvio).
10 comentários:
Prezad@,
Os rolos carbonizados de Herculano, cidade que, tal como a vizinha Pompeia, ficou soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C., dão informações valiosas sobre a filosofia antiga. Mas só uma fração foi lida. Encontrar e decifrar muitos dos seus textos era uma tarefa quase impossível.
Qualquer tentativa de desenrolar os papiros resultava numa considerável destruição dos mesmos, como aconteceu aos primeiros que tentaram fazê-lo.
Nos últimos anos, essa possibilidade cresceu e fortaleceu-se. O que mudou tudo foi a utilização de técnicas de visualização importadas da medicina.
Tenho o prazer de transcrever um artigo da revista EXPRESSO, que mostra o estado-da-arte da decifração empreendida e da tecnologia utilizada nesta tarefa.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/06/os-papiros-voltaram-falar.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Muito obrigado!
Já tinha 'notícia" desta técnica e de que tinha sido empregada nos papiros de Herculano, mas o artigo é muito mais detalhado e esclarecedor!
Heitor
A tecnologia revelando o passado e seus fatos. Uma conquista, sem falta. Abraço.
Caro professor Braga
Assunto verdadeiramente fascinante! A admiração sobre um relato tão recuado da vida de Platão, por exemplo, dá-nos uma pequena medida do que poderá ainda ser revelado caso as pesquisas possam seguir adiante com novos recursos.
Cumprimentos,
Cupertino
Parabéns, Francisco Braga.
O Sr. permanece como as pirâmides do Egito: sempre admiráveis.
O seu trabalho é impecável!
Deus o ilumine sempre.
Que trabalho maravilhoso! Nobre, enriquecedor.
Parabéns, Francisco, confrade querido.
Olá Francisco: li com entusiasmo esse relato, mas confesso q não encontrei nada nele a não ser a metodologia da busca e uma ou duas informações novas: o desagrado de Platão, em seu leito de morte, sobre a performance da flautista, e a falta de credibilidade dos relatos dos comentaristas da Antiguidade. Fiquei decepcionado. Esperava algo de novo como uma nova interpretação de algum ponto obscuro do 5° livro da Metafísica de Aristóteles... claro q a minha decepção não tem nada a ver com v , mto pelo contrário, louvo o seu ardor na busca e aplaudo seu zelo em comunicar seus achados aos amigos!!!
Que notícia maravilhosa! A ciência, a história da humanidade. Obrigado, meu amigo, pelo envio. Um grande abraço.
Caro professor Braga
Assunto verdadeiramente fascinante! A admiração sobre um relato tão recuado da vida de Platão, por exemplo, dá-nos uma pequena medida do que poderá ainda ser revelado, caso as pesquisas possam seguir adiante com novos recursos.
Cumprimentos,
Cupertino
Caro amigo, só nesse momento pude ler esse texto dos muitos que me enviou.
Quanto aprendo e me informo com o que me envia.
Aqui, passado se apresentando a nós.
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