Por ANA SÁ LOPES *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, artigo publicado na edição de domingo, 09/06/2024, Ano XXXV, nº 12.456, coluna Anacrónica, p. 32.
Josef Estaline (1878-1953) |
O passado é uma coisa esquisita. Quando o que as fontes históricas contam nos perturba minimamente, inventamos um outro passado, mitificado. A natureza humana tenta riscar da memória tudo o que a incomoda — um mecanismo de sobrevivência, provavelmente. Estaline apagava os inimigos das fotografias, hoje é a vez de o Ocidente lhe fazer o mesmo.
A História não é uma linha recta, está cheia de sombras, de incongruências, de realpolitik, de cinzentos, de alianças ditas espúrias, de horrores e algumas grandezas. Para alegria do povo (vemos o que se passa ainda em Portugal com o império), precisamos de a simplificar.
Ao assistir às cerimónias dos 80 anos do desembarque da Normandia, é difícil não conter as lágrimas ao lembrar a coragem daqueles jovens que vieram de muitos lugares do planeta para salvar a Europa do nazismo.
O que ficou esquecido é que o sangue dos soldados soviéticos foi determinante para combater o regime nazi. Antes e durante a guerra, Churchill sempre considerou Estaline “um homem abominável” — e foi contra o “inimigo soviético” que centrou a sua campanha eleitoral de 1945, depois da guerra. Aliás, não foi reeleito por várias razões, incluindo porque o eleitorado britânico não compreendia os discursos de Churchill contra o comunismo: a URSS, aliada dos ingleses e dos americanos no combate a Hitler, era olhada com simpatia pelo povo britânico.
O sangue dos jovens das várias repúblicas soviéticas não foi derramado nas praias da Normandia, mas foi efectivamente a Frente Leste que derrotou Hitler. Max Hastings, um historiador totalmente insuspeito de simpatias comunistas, escreve em Os Melhores Anos — Churchill 1940-1945: “Os aliados ocidentais nunca derrotaram os principais exércitos alemães — apenas auxiliaram os russos a destruí-los.”
E mais perturbador ainda: “Não obstante todo o entusiasmo de George Marshall e dos seus colegas com a invasão da Europa, continua a ser impossível acreditar que os Estados Unidos estariam dispostos — como a Grã-Bretanha não estava — a aceitar milhões de baixas para desempenhar o papel de desgaste do Exército Vermelho em Estalinegrado, em Kursk, e em 100 outros banhos de sangue de menores dimensões entre 1942 e 1945."
E, por fim, "Roosevelt e Churchill tinham a satisfação da superioridade moral sobre Estaline mas é difícil contestar a pretensão do senhor da guerra soviético a ser chamado arquitecto da vitória."
A foto de Evgueni Khaldei registrando a
tomada do Reichstag pelas tropas soviéticas mostra a bandeira soviética hasteada no topo da sede do Parlamento alemão, em Berlim, em maio de 1945 |
Uma das explicações para esta superioridade no combate dos soviéticos é que não havia opinião pública na URSS para contestar a morte de soldados em massa, ao contrário do que se passava nos Estados Unidos e Grã-Bretanha.
O presente — a invasão da Ucrânia pela Rússia — intrometeu-se na homenagem ao passado, transformando as comemorações do Dia D num dia de combate à Rússia. Sem deixar de concordar que todos os dias devem ser de combate à Rússia e apoio a Kiev, o apagar da União Soviética da fotografia da vitória na II Guerra é replicar no Ocidente os métodos de Estaline.
A França, que organizou a comemoração dos 80 anos do Dia D, decidiu não convidar Putin (que, por acaso, esteve presente nos 70 anos, já depois de anexada a Crimeia). Mas queria convidar alguns representantes russos, herdeiros dos homens que ajudaram a combater o nazismo. A Casa Branca e o Reino Unido fizeram saber a sua discordância. A França recuou.
A organização das comemorações, Mission Libération, chegou a escrever em comunicado: "Contrariamente ao Kremlin, a França não faz revisionismo político da história." Também um deputado conservador britânico chamado Tobias Ellwood, que chegou a ser ministro da Defesa do Reino Unido — não obstante ser um dos maiores defensores do apoio ocidental à Ucrânia e de um maior investimento na defesa para auxiliar Kiev —, dizia ao jornal Político em Maio que, se a Rússia não fosse convidada, corria-se o risco de "confundir a geopolítica de hoje com a união de objectivos para derrotar o nazismo no passado".
Confundiu-se tudo. Procedeu-se ao revisionismo da história. Talvez o Dia D não seja história. Talvez nunca tenha existido. Talvez Estaline não tenha derrotado Hitler. As comemorações desta semana revelaram apenas a geopolítica do presente condimentada com geopsicologia política.
* Redactora-chefe do PÚBLICO, tendo sido jornalista parlamentar e trabalhado essencialmente na secção política.
9 comentários:
Prezad@,
A crônica de ANA SÁ LOPES (que ela classifica como "anacrónica") apareceu na última página do PÚBLICO de hoje, 09/06/2024, com a característica de ter sido a última, mas não a menos importante, de acordo com a língua inglesa: "last but not least". A jornalista desfere uma crítica acerba contra a França principalmente, por ter sido a organizadora da comemoração dos 80 anos do Dia D e ter decidido não convidar Putin para a cerimônia, além de ofender a nação russa com o seguinte comunicado: "Contrariamente ao Kremlin, a França não faz revisionismo político da história", mesmo com a discordância da Casa Branca e do Reino Unido.
É triste esse comunicado partindo da França, cuja língua foi a mais cultuada pelos russos em todos os tempos. Segundo a cronista, "Stalin apagava os inimigos das fotografias, hoje é a vez de o Ocidente fazer-lhe o mesmo." Ademais, consta que apenas a tomada de Berlim custou ao Exército Vermelho aproximadamente 300.000 soldados, equivalente ao número de soldados americanos mortos nas frentes europeia e japonesa, de 1941 a 1945.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/06/o-dia-em-que-um-vencedor-da-ii-guerra.html 👈
Abraço cordial,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
A história é sempre contada de acordo com interesses pouco realísticos.
O convite para Putin participar da comemoração dos 80 anos do DIA D, seria como convidar Pilatos para participar do Credo, (muito embora Pilatos tenha participado do "Credo"). Já Putin não participou da invasão da Normandia e seus últimos "mise-en-scènes" na História sejam mais uma contestação do Dia D do que uma vênia cerimoniosa ao evento. Além disso, será q Putin não gostaria de reeditar a invasão da Normandia desta vez com o exército russo??
Quando inauguraram o monumento que fica defronte da igreja de São Gonçalo aqui em São João del-Rei, lembro de ter notado a ausência da bandeira soviética e de suas autoridades. Estavam as bandeiras brasileira, britânica, francesa e estadounidense. Nada de novo agora, portanto.
Parabens pela temática deste texto. Me estimulou a memória e me lembrou que uma vez um economista, que os Cursos de Economia classificam como um Economista Clássico, pontuou: "A História, quando se repete, vira farsa". O tema é candente e envolvente pelas multiplas dimensoes que nos aprresenta e penso que a Europa devia lidar com sua empáfia cultural e subserviência globalizada e entender que os jovens russos que antes venceram Napoleão, e naquele momento Hitler, aprenderam, como nossos ancestrais que foram lá se iluminar de conhecimentos libertários e aqui construíram nosso "MinasMundo" com uma história de acordos desde Manuel Nunes Viana, o emboaba a Tancredo Neves, o sábio da Política e, depois, os conjurados. Os russos criaram no pós-guerra um "mundo novo" onde o simbólico da luta precisava ajudar a reconstruir suas realidades: o comunismo de partido único e o mundo de todos para todos. Por que? Acho que construíram uma noção de sobrevivência e fortaleza, realpolitik, de que adversário não é inimigo e que, na Política, a arte da busca do bem comum, seu adversário hoje pode ser seu parceiro amanhã. Aqui, na Província, aprendemos a lidar com a decadência e a reconstrução, já que temos, na base da mineiridade, a noção essencial de proximidade (Minas) e alteridade (Mundo). A Terra, nossa casa da humanidade, nos mostra que a Europa decai, os americanos e ingleses decaem, os brasileiros sofrem e nós, mineiros, perseveramos, pois sabemos que depois do sofrimento de Dunquerque e Timbuctu, veio Normandia que precedeu o grande avanço em Stalingrado, Moscou e Berlim. Como nós mineiros sabemos lidar com a decadência, o mundo também sabe e os czares e mandarins nos ensinam!
Paulo Sousa Lima
Caro Francisco Braga,
Mais uma vez a França perde oportunidade de começar diálogo de paz para o mundo.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Verdades!
Nada de novo sob o sol!
Grato pelo envio do texto. Abraço.
Caro professor Braga
Não apenas lamentável esse incidente, muito bem analisado pela jornalista Ana Sá, como também preocupante.
Oportuna publicação!
Saudações,
Cupertino
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