Por ROGÉRIO CASANOVA *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO P2 nº 12.470, na coluna CRÓNICA, matéria publicada na edição de domingo, 23/06/2024.
N'Golo Kanté joga na posição de meio-campo |
Sob qualquer análise rigorosa e imparcial dos factos disponíveis, São José de Cupertino foi a pessoa mais engraçada do século XVII. Nascido em 1603 no calcanhar de Itália, começou a irritar pessoas praticamente desde o berço. Roberto Nutti, autor da sua primeira hagiografia, descreveu-o como “uma criança impetuosa, volátil, e dada a fúrias”. Era também dado a entrar em transes ao mínimo pretexto: na escola, deram-lhe a alcunha “Boca Aberta”; a família mais próxima, incluindo a mãe, preferia chamar-lhe “idiota” ou “inútil”.
Já adolescente, especializou-se na arte de mostrar incompetência em qualquer tarefa que lhe confiassem. Conseguiu arruinar um negócio de venda de legumes através de olímpicas proezas de distracção. Um sapateiro de quem foi aprendiz descreveu-o como “um desastre” e dispensou-o ao fim de poucos dias.
Filho de um carpinteiro, e nascido num estábulo, a religião deve-lhe ter parecido uma óbvia escolha de carreira. Tentou ingressar na Ordem Franciscana, pedindo uma cunha a dois tios, ambos membros respeitados, que o rejeitaram com o argumento persuasivo de que ele era demasiado “ignorante” e “esquisito”. Os Capuchinhos, cujos critérios de admissão eram aparentemente mais laxos, aceitaram-no. José tinha 17 anos. Destacado para a cozinha do convento, armou tamanha confusão (loiça partida, sopas entornadas, etc.) que acabou por ser expulso. Num segundo convento, mandaram-no tomar conta de uma mula: se a mantivesse viva durante uns dias, seria admitido. A tarefa deve ter requerido todos os seus poderes de concentração, mas José conseguiu. Entusiasmado com o sucesso, dedicou-se a ser irritante de outras maneiras: passou a alimentar-se apenas de relva, feijão e couves podres, a dormir um máximo de duas horas por noite, passando o resto do tempo a flagelar-se, e a soltar gritos nos momentos mais inoportunos. Ao fim de um tempo, começou também a levitar.
Ao princípio levitava sozinho, depois em companhia. Uma vez levitou com um cordeiro nos braços, com o qual ficou duas horas a conversar, flutuando por cima de uma árvore. Chegou a levitar com outros frades, para sua compreensível consternação. Ninguém o suportava: o esvoaçar, a gritaria, as multidões que começava a atrair, era tudo uma enorme canseira. As queixas formais eram tão frequentes que a Inquisição acabou por mostrar interesse. Levado ao Tribunal do Santo Ofício (fartou-se de levitar durante a viagem), José mostrou-se tão humilde que foi declarado inocente em tempo recorde: a sua levitação não era obra do Diabo. Ao repertório de exibições aéreas, acrescentou mais tarde a bilocação: a capacidade de estar em dois sítios distantes em simultâneo. Num dos casos, testemunhas viram-no no convento em Assisi ao mesmo tempo que confortava um moribundo em Roma, a mais de 150 quilómetros de distância.
A reacção mais comum a este tipo de relatos é de cepticismo. Ninguém anda por aí a levitar ou a ocupar dois espaços físicos em simultâneo, porque isso viola flagrantemente uma série de leis já em vigor no séc. XVII. Mas, como escreve o historiador medieval Carlos Eire (autor do magnífico livro They Flew: A History of the Impossible, de onde muita desta informação foi retirada), “qualquer história do impossível é sempre uma história sobre testemunhos de eventos impossíveis”, e sucede que o único milagre que testemunhei na vida foi precisamente um caso de bilocação: em 2016, num jogo do Leicester City, na altura a meio caminho do inesperado percurso que os sagrou campeões ingleses. O que aconteceu foi o seguinte: a dada altura desse jogo, o médio francês N’Golo Kanté estava na meia-lua adversária a pressionar um desgraçado qualquer, e ao mesmo tempo a correr na direcção oposta, já junto à linha de meio-campo. Para ser claro: durante uma breve fracção de segundo, o mesmo plano aberto da transmissão televisiva mostrou Kanté a ocupar dois sítios em simultâneo no mesmo relvado.
Isto é obviamente uma impossibilidade física — e, no entanto, há pelo menos uma testemunha credível: eu, que vi tudo na televisão, e tenho 100% certeza do que vi (sinto-o dentro do peito, derradeira instância de todo o fact-checking que importa). Infelizmente não há provas — tal como os vampiros não são reflectidos por espelhos, os milagres verdadeiros não são preservados pelo YouTube.
Mas não é surpreendente que o caso tenha envolvido Kanté, cuja biografia tem alguns pontos de contacto com a de José de Cupertino. Também ele demorou a encontrar o seu caminho, após uma série de contratempos: a reputada academia de Clairefontaine rejeitou-o ainda criança; e Arsène Wenger recusou a recomendação de um “olheiro” para o contratar, ainda adolescente, numa altura em que Arsène Wenger contratava duas paletes de adolescentes franceses todas as semanas.
Os testemunhos que Kanté provoca são da mesma ordem. Durante o estágio de preparação da selecção francesa, Marcus Thuram expressou a frustração da sua presença em qualquer relvado: “É horrível, com ele aqui já não conseguimos fazer jogos-treino normais... às vezes sinto que regressaram três Kantés da Arábia Saudita...” Como outros exilados do Golfo, Kanté não foi um convocado consensual, muito menos um titular, quando opções como Camavinga trazem outros dotes ao jogo. Mas a sua exibição contra a Áustria serviu para recordar por que é que foi um dos futebolistas mais entusiasmastes de acompanhar na última década.
O debate sobre estilos no futebol afunila demasiadas vezes para o óbvio, reduzindo a expansiva diversidade do jogo a dois pólos antagónicos, positivo e negativo (Guardiolas e Mourinhos, Palhinhas e Vitinhas, etc.). Na verdade,
a única divisão pertinente não é entre filosofias tácticas ou tipologias físicas ou técnicas, mas entre a presença da imaginação e a sua ausência. O que se quer é ver ideias a funcionar.
Kanté não encarna nenhuma delas — ele é o que acontece quando essas ideias não funcionam. A sua imaginação é essencialmente negativa. É por isso que reduzi-lo a uma disponibilidade física sobrenatural é injusto. A sua característica principal é a capacidade de jogar emancipado das características específicas de cada partida, subordinando ambas as disciplinas colectivas à infalibilidade dos seus caprichos. Isto costuma ser um modo de descrever o golpe de asa dos génios criativos, mas Kanté, no seu melhor, anda há uma década a fazer da imprevisibilidade um atributo defensivo: não causa e consequência da criatividade, mas a condição da sua extinção e regeneração.
Para os seus, funciona como um corrector táctico em tempo real, neutralizando qualquer ineficiência, desatenção ou risco calculado. Para os outros, é um instrumento ambulante de dissuasão, mas também de exigência: a sua mera presença obriga a constantes revisões. As possibilidades viáveis são reduzidas só porque ele lá está, portanto é preciso pensar no que não devia ser possível.
Na sua carreira, além do improvável título com o Leicester, Kanté já ganhou uma Liga dos Campeões, um Euro, um Mundial de clubes e outro de selecções. Em todas essas conquistas, foi, por mais de uma vez, o melhor jogador em campo; e impediu muitos outros de o serem, quando isso seria o mais natural. O melhor vídeo do Euro 2024 até agora mostra-o a regressar ao balneário francês depois do jogo com a Áustria, ao som de aplausos dos colegas, um dos quais, Fofana, olha para a câmara e diz: “Não é um mito. Eu vi com os meus próprios olhos: ele é incrível.”
Que o resto do Euro lhe corra bem; seria bom sinal, não apenas para a França (que é o menos importante), mas para todos os adversários, e todas as testemunhas.
• Rogério Casanova é o pseudónimo de uma personalidade rica, multifacetada e dona de uma escrita límpida e vibrante. Colabora com a imprensa desde 2008, com passagens pelo Expresso, Observador, Diário de Notícias e revista LER. É tradutor dos principais autores de língua inglesa. Lecciona desde 2016 um seminário na pós‑graduação em Artes da Escrita, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
4 comentários:
Um texto muito interessante. Obrigado pelo envio, caro Braga. Abraço para o casal Rute e Braga.
Caro professor Braga
Faltam provas, sobra fervor ! Curiosa publicação! Apenas uma correção na chamada da publicação: Giuseppe "da Copertino" era italiano da Púglia, e não francês.
Saudações,
Cupertino
Prezad@,
N'Golo KANTÉ é um jogador francês que atua como volante e nesta posição tem-se destacado, conquistando, por mais de uma vez, o título de melhor jogador em campo.
A admiração de ROGÉRIO CASANOVA por esse jogador é tanta que a crônica que assina neste domingo o compara a um santo italiano da Púglia, San Giuseppe da Copertino(✰ 1603, Copertino ✞ 1663, Osimo), cujo dom era o da bilocação, ou seja, estar em duas localidades, distantes uma da outra, ao mesmo tempo.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/06/sao-kante-de-paris.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
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