sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Luzes e sombras na “restituição” de colecções em museus


Por LUÍS RAPOSO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, na coluna CULTURA, opinião publicada na edição de quinta-feira, 08/08/2024, p. 25.
“A questão do saque e tráfico de antiguidades para colecções privadas e para museus consiste no verdadeiro “elefante na sala” quando se fala de peças “de origem contestada” ou “duvidosa”.
Mandu Yenu, o trono camaronês conservado no Museu de Etnologia de Berlim DAVID VON BECKER/CORTESIA MUSEU DE ETNOLOGIA DE BERLIM

 

“O tráfico de bens culturais é uma actividade lucrativa para a criminalidade organizada e, em alguns casos, para as partes em conflito e os terroristas. Tal deve-se, em especial, ao baixo risco de detecção, ao potencial para conseguirem margens elevadas e à dimensão atractiva dos mercados lícitos e ilícitos, impulsionados por uma procura mundial estável ou crescente por parte de coleccionadores, investidores e museus.” “Em 2021, o mercado 'lícito' da arte e das antiguidades foi avaliado em 65 mil milhões de dólares a nível mundial, o que corresponde a um aumento de 29% em relação a 2020, ultrapassando os níveis anteriores à pandemia de covid-19.” 

Assim começa a comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, em Dezembro de há dois anos, dando conta da elaboração de um Plano de Acção para Combater o Tráfico de Bens Culturais. E logo acrescenta: “A Interpol assinalou o facto de mais de 850 mil artefactos terem sido apreendidos a nível mundial em 2020, dos quais mais de metade na Europa. Desde 2016, a operação mundial anual Pandora conduziu a 407 detenções e à recuperação de 147.050 bens culturais.” 

Trata-se de um assunto muito sério, que os Pandora Papers apenas vieram actualizar, causando profundo impacto, mesmo vergonha, no mundo dos museus e desde logo dos “grandes museus”, aqueles que se diria estarem “acima de toda a suspeita”. Um dos exemplos mais chocantes foi e continua a ser o do Metropolitan Museum, de Nova Iorque (ver, por exemplo, a recente reportagem do programa televisivo 60 Minutes sobre as antiguidades traficadas do Camboja). Mas muitos outros museus americanos (pelo menos uma dezena, segundo o Fórum Internacional de Jornalistas de Investigação) poderiam ser referidos — e isto sem contar pseudomuseus, galerias, marchands e coleccionadores privados, sendo os museus apenas a ponta de um imenso icebergue de sangue. 

O escândalo não se limita aos museus e outros agentes americanos. Os museus europeus, por exemplo, a começar pelos mais referenciais, não fogem ao drama. Basta lembrar o caso do Louvre: depois de sucessivas denúncias dos profissionais do museu e dos museus em geral quanto aos caminhos ínvios que estava a seguir ("Os museus não estão à venda", numa tradução livre de um texto do diário francês Le Monde), o antigo director, Jean-Luc Martinez, acabou por ser detido há dois anos por apoio ou mesmo pertença a uma rede de traficantes de antiguidades, sendo demitido do seu cargo… para entretanto ter já sido nomeado “embaixador temático responsável pela cooperação internacional no campo do património”. E quase o mesmo se passou ainda mais recentemente com o Museu Britânico: a nuvem originada por rocambolesca estória do roubo de cerca de dois milhares de peças por parte de rede promovida por um dos seus conservadores, com a inicial e persistente recusa do director em reconhecê-lo, e que levou à demissão deste, essa nuvem não levou assim tanto tempo a dissipar-se porque o dito director foi nomeado director do Museu Saudita das Culturas Mundiais. 

Talvez nenhum país, nenhuma região, nenhum museu, e seguramente nenhum “mercado de antiguidades”, esteja isento deste tipo de flagelos. Portugal também não, como comprovam por exemplo os ainda poucos, mas inquietantes dados emergentes do período em que Lisboa funcionou como uma espécie da Casablanca da Europa (ver, por exemplo, o recente livro de Neill Lochery Lisboa II: Os Países Neutros e a Pilhagem Nazi, editora Casa das Letras). E ainda este ano os EUA tiveram de devolver à Itália centenas de antiguidades pilhadas, provenientes de museus e colecções particulares, arrestadas em apenas dois anos e no valor de mais de 80 milhões de dólares. 

Esta questão do saque e tráfico de antiguidades para colecções privadas e para museus consiste no verdadeiro “elefante na sala” quando se fala de peças “de origem contestada” ou “duvidosa”. Constitui um flagelo, um verdadeiro escândalo civilizacional do nosso tempo, muitíssimo mais vasto e grave do que a questão das colecções coloniais ilegal ou ilegitimamente recolhidas em museus. Causa por isso estranheza (para dizer o menos) que seja quase omitida nas agendas “activistas” contemporâneas e para o demonstrar levei a cabo há semanas numa rede social a seguinte experiência: em dias seguidos inseri publicações sobre "patrimónios sensíveis" ou “contestados”, um deles ligado ao tema da "descolonização dos museus" (na ocorrência, o caso dos patrimónios a “descolonizar” pela Universidade de Coimbra, edição de 9 de Julho do PÚBLICO) e o outro ao saque e tráfico para colecções privadas e "grandes museus" norte-americanos (na ocorrência, o caso já antes citado do Metropolitan e das colecções cambojanas). 

O meu primeiro post, relacionado com as “restituições coloniais”, deu lugar a quase uma centena de reacções, entre gostos, espantos, fúrias e comentários inflamados, extremados e de sentidos opostos. O meu segundo post quase não teve reacções: 12 gostos (nenhum de irritação) e um comentário. A conclusão é evidente: vivemos cada vez mais atascados num universo obsessional onde "activistas descoloniais", de um lado, e "nacionalistas ultramontanos", do outro, ditam as agendas, se retroalimentam e reproduzem, em imagem de espelho. Um mundo onde a verdadeira exploração não suscita paixões e quase passa despercebida. 

No entrementes, alguém vai rindo e aproveitando, claro: o "mercado" e o verdadeiro dono disto tudo, o capitalismo internacional, que não olha a países ou latitudes na procura de negócios lucrativos. Pergunto-me se será apenas por ingenuidade e debilidade caracterial (e/ou intelectual) que muitos académicos e alguns profissionais de museus "esquecem" as colecções de "origem duvidosa" e se afadigam tanto agora em fazer inventários de peças de origens coloniais, tendo até o desplante de pretenderem que desenvolvem novos conceitos, afinal velhíssimos e por isso bacocamente apresentados, como o da "biografia dos objectos". 

É claro que todos os inventários e investigações sobre a incorporação de colecções em museus são bem-vindos. Com certeza. Mas será apenas ingenuidade, fraqueza de espírito ou mediocridade científica que leva a apontar os holofotes nas peças de origem colonial, fazendo vista grossa a todas as restantes? Será apenas isso? Ou será algo muito mais grave: o medo de incomodar quem manda e paga ou, pior, uma assumida conivência, assente naquela atitude secular que a igreja milenar chama "bendita ignorância". Bendita e muito conveniente, convenhamos, porque afinal o que temos de concluir é que não evoluímos muito, por mais piedosas que sejam as intenções e planos da União Europeia ou da Administração dos EUA (a que se juntam os oligarcas russos, árabes e de tantas outras latitudes). 

Há mais de duas décadas escrevia neste jornal que “seremos sempre nós, na nossa abundância, os destinatários de todos os saques” (19 de Abril de 2003). Tinha presente o saque do Museu Nacional do Iraque, depois da ocupação de Bagdad pelas tropas americanas. Foi preciso mais de uma década para que, há dois anos, o referido museu pudesse ter reaberto, com apenas um terço das cerca de 15 mil peças saqueadas em 2003, recuperadas a maior parte a partir dos EUA. Pergunto-me quantas mais décadas será preciso para reaver as restantes. Muitas seguramente, porque no mundo das redes de saque e tráfico de obras de arte, sobretudo em contexto de guerra, não há “Ocidente” e “Oriente”, não há “Norte” e “Sul”, não há em certo sentido “bons” e “maus”. E pelos vistos quem se diz querer “estar acordado” também dorme. 

 

* Arqueólogo e historiador português que dirigiu trabalhos de investigação em diversas regiões de Portugal (Vale do Tejo, em Vila Velha de Ródão e Alpiarça, na Estremadura, no Litoral do Alentejo e no Algarve), desde 1973. Tem cerca de duas centenas e meia de trabalhos publicados. Presentemente é presidente do Conselho Internacional de Museus da Europa-ICOM Europa.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco José dos Santos Braga disse...

Prezad@,
O arqueólogo e historiador português LUÍS RAPOSO está literalmente mexendo no vespeiro, ao levantar a questão do saque e tráfico de antiguidades para coleções privadas e para museus, tema que se constitui no verdadeiro "elefante na sala", ou seja, o tema é flagrante, mas, por causar turbulência e como tal todos o veem, preferem ignorá-lo ou fingir que não o veem.

Em 10/07/2024, o Blog de São João del-Rei transcreveu um artigo intitulado "Sabia que este museu italiano apresenta antiguidades resgatadas do tráfico ilegal?" que mostrava o Museo Dell'Arte Salvata, anexo ao Museu Nazionale Romano, em Roma, dedicando-se desde junho de 2022 à tarefa inusitada de expor antiguidades "recuperadas".

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/08/luzes-e-sombras-na-restituicao-de.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Jorge Antunes (regente, compositor, político cultural e escritor) disse...

Oi, Braga:

O tema é importante.
Você tem dados sobre peças nativas nossas saqueadas pelos invasores portugueses, franceses e holandeses?
Caberia uma campanha pela recuperação.
Abraço,
Jorge Antunes

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga

Pode-se entender que o tráfico de obras de arte para coleções particulares e museus-empresas é uma forma de privatização da cultura, embora se tenha dificuldade em admitir que a maioria das privatizações não passem de saque de patrimônio público e que o Neocolonialismo é ainda mais grave que o Antigo, porque consentido.
Cumprimentos pela publicação do artigo.
Cupertino