segunda-feira, 26 de agosto de 2024

BURITI PERDIDO


Por AFONSO ARINOS * 
Comentários por Francisco José dos Santos Braga

Praça do Buriti em Brasília - Crédito pela foto: Flickr/Francisco Aragao

 
Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo ¹ dos campos! 
No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem às vezes as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas — velho guerreiro petrificado em meio da peleja! 
Tu me apareces como o poema vivo de uma raça quase extinta, como a canção dolorosa do sofrimento das tribos, como o hino glorioso de seus feitos, a narração comovida das pugnas contra os homens de além! 
Por que ficaste de pé, quando teus coevos já tombaram? 
Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda cheia de poesia do cantor cego da Ilíada comovem mais do que tu, vegetal ancião, cantor mudo da vida primitiva dos sertões! 
Atalaia grandioso dos campos e das matas  junto de ti pasce tranquilo o touro selvagem e as potrancas ligeiras, que não conhecem o jugo do homem. 
São teus companheiros, de quando em quando, os patos pretos que arribam ariscos das lagoas longínquas em demanda de outras mais quietas e solitárias, e que dominas, velha palmeira, com tua figura erecta, queda e majestosa como a de um velho guerreiro petrificado. 
As varas de queixadas bravias atravessam o campo e, ao passarem junto de ti, talvez por causa do ladrido do vento em tuas palmas, redemoinham e rangem os dentes furiosamente, como o rufar de tambores de guerra. 
O corcel lobuno, pastor da tropilha, à sombra de tua fronde, sacode vaidosamente a cabeça para arrojar fora da testa a crina basta do topete que lhe encobre a vista; relincha depois, nitre com força apelidando a favorita da tropilha, que morde o capim-mimoso da borda da lagoa ²
Junto de ti, à noite, há dois séculos, as primeiras bandeiras invasoras; o guerreiro tupi, escravo de Piratininga, parou então extático diante da velha palmeira e relembrou os tempos de sua independência, quando as tribos nômades vagavam livres por esta terra. 
Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evoé! 
Gerações e gerações passarão ainda, antes que seque esse tronco pardo e escamoso. 
A terra que te circunda e os campos adjacentes tomaram teu nome, ó epônimo, e o conservarão! 
Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. ³ Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças nos versos sublimes de Eurípedes, tu impedirás, poeta dos desertos, a própria destruição, comprando um direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que tu sabes tão bem comunicar. 
Então, talvez, uma alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia, não permitindo a tua destruição, fará com que figures em larga praça como um monumento às gerações extintas, uma página sempre aberta de um poema que não foi escrito, mas que referve na mente de cada um dos filhos desta terra. 

Afonso Arinos, “Um Buriti perdido”. Pelo sertão.
 

 
* Escritor, contista, romancista, jornalista e jurista. Considerado “Pai do Regionalismo Brasileiro”, influenciou escritores como Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos.

 
 
NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga
 
¹ Palavra de origem grega; designa uma personalidade histórica ou lendária que dá ou empresta seu nome a qualquer coisa, lugar, época, etc.

² O buriti, cientificamente denominado Mauritia flexuosa, é uma espécie que ocorre geralmente no coletivo, a que se dá o nome de buritizal. Habita terrenos alagáveis e brejos de várias formações, sendo encontrado com muita freqüência nas "veredas", importante fitofisionomia do cerrado. Tais veredas são descritas como áreas indicadoras de água, de lençol freático superficial, onde há nascentes e cursos d'água, além de uma fauna exuberante que vive a partir desse recurso.

³ Danilo Gomes, em adorável crônica, intitulada "Afonso Arinos e o Buriti Perdido" escreveu: 
(...) A página mais famosa de Afonso Arinos intitula-se “Buriti perdido”, que releio com frequência. É um antológico conto, com cara de crônica. O buriti perdido, aquela velha palmeira solitária; uns dizem que situada em Paracatu; outros, como Bernardo Élis, que situada em Corumbá de Goiás. 
Afonso Arinos escreveu que esse buriti perdido, “cantor mudo da natureza virgem dos sertões”, estaria, um dia, numa “larga praça”. Palavras proféticas, premonitórias, de um brasileiro que viveria apenas 48 anos. Com efeito, hoje temos na nossa querida Brasília, fundada pelo diamantinense Juscelino Kubitschek de Oliveira, uma Praça do Buriti, onde se situa o Palácio do Buriti, sede do Governo do Distrito Federal. (...)
 
Confirmando a visão premonitória de Afonso Arinos, durante a construção de Brasília, a palmeira do buriti foi escolhida como símbolo da nova capital. Em 1959, inspirado no poema “Buriti perdido”, de Afonso Arinos, o Senador Afonso Arinos de Melo Franco Sobrinho sugeriu ao engenheiro e presidente da Novacap, Israel Pinheiro, e este determinou que fosse plantada uma muda da árvore na frente da futura sede do Governo do Distrito Federal. A muda morreu, mas, em 1969, houve uma segunda tentativa e, desta vez, a palmeira conseguiu se desenvolver. No local, foi inaugurada a Praça do Buriti no ano seguinte. E, em 1985, aquela árvore foi tombada pelo Patrimônio Público e Cultural, pelo Decreto nº 8.623 de 30/05/1985.
 
A página que extraímos do livro Pelo Sertão (1898) de Afonso Arinos é um exemplo de poema em prosa ou, dito de outra forma, prosa poética, que, na pena do escritor paracatuense, adquire contornos de grande poder pictórico, frutos da observação visual ou auditiva do autor.
 
 

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
A célebre página do escritor e jornalista AFONSO ARINOS (1868-1916) foi extraída do livro PELO SERTÃO (1898) e transcrita no Blog de São João del-Rei para deleite do leitor.
Guimarães Rosa, ao colocar Buriti Perdido como orelha da sua segunda coletânea de contos, Corpo de Baile de 1956 (mais tarde tripartida em três tomos: 1) Manuelzão e Miguilim, 2) No Urubuquaquá, no Pinhém e 3) Noites do Sertão), reconheceu a própria filiação literária a Afonso Arinos, Ou seja, o renovador genial da linguagem escrita reconhecia, com tal decisão, que o paracatuense Afonso Arinos (1868-1916) era o "Pai do Regionalismo brasileiro".

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/08/um-buriti-perdido.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...


Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...
Fantástico!

Francisco José dos Santos Braga disse...

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...
Prezado amigo,Francisco Baga,
Saudações! Fico feliz com sua atuação como escritor,divulgando seus riquíssimos conteúdos, também na ADL. O seu exemplo clássico nos incentiva e sacia nossa sede de saber. Parabéns, grande mestre!

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga

Que maravilha! É mesmo um texto que nos traz imagens gratas à alma. Para ler muitas e muitas vezes.
Gratíssimo,
Cupertino

Francisco José dos Santos Braga disse...

João Bosco de Castro Teixeira (escritor, ex-reitor da UFSJ e ex-presidente e membro honorário da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...
Francisco, já não me lembro, mas parece que o EPÔNIMO DOS CAMPOS era um dos muitos, muitos apostos que Afonso Arinos atribuiu ao Buriti. Na minha juventude, cheguei a decorar essa linda página de literatura brasileira. Abraço.

Francisco José dos Santos Braga disse...

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (jornalista e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB), mestre em Comunicação e doutor em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB), onde foi também professor. É graduado em Jornalismo, Política e História) disse...
Braga,
Que belo artigo este sobre o Afonso Arinos. Muito esclarecedor. Confundia o pai com o filho. Fui aluno do neto, o embaixador, Afonso Arinos de Melo Franco Filho(!), na UnB, no início dos anos de 1960. Era um erudito. Teve momentos de grande projeção dentro do Itamarati e da política externa brasileira.
Parabéns, obrigado, e abraços.