Por VIVALDI MOREIRA *
Coletânea de conferências proferidas no Congresso Nacional em homenagem ao IV Centenário (1572-1972) de Os Lusíadas |
Presidente Murilo Badaró, eminentes Senadores José Lindoso e Magalhães Pinto, Deputado José Bonifácio, Ministro Décio Miranda, minhas Senhoras, meus Senhores, mocidade do Brasil.
Honra e engrandece o Congresso Nacional esta Semana de Estudos Camonianos ¹, feliz iniciativa da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, sob a dinâmica presidência do Deputado Murilo Badaró, inteligência vibrátil, homem público dos mais lúcidos, herdeiro e continuador da mais pura e elevada tradição dos políticos da minha terra. Alia S. Exª à ação mais intensa e profícua ampla cultura e amor pelo saber, o que o torna, ilustre Deputado Murilo Badaró, portador de fulgurante porvir nos quadros da Nação.
Desejo agradecer ao jovem Presidente e aos eminentes membros da Comissão o honroso convite para esta noite, vendo unidos, num ato de cultura, o povo e seus representantes no Congresso Nacional, o que foi também, nós o sabemos, uma das aspirações evidentes de Luís de Camões, o Vate da língua.
Quero também agradecer, comovido, as palavras do eminente Senador José Lindoso, homem público respeitado em todo o País, inteligência brilhante, professor de Direito, membro da Academia Amazonense de Letras, meu confrade, portanto. Suas palavras, meu querido Senador, tão generosas, acabam de evidenciar que o nosso imenso País é um todo compacto e diferenciado na policromia de sua unidade indissolúvel. Ele estendeu a mão do extremo da Pátria ao confrade mineiro, para significar, com um gesto, que o elo que nos prende não é gerado nas entranhas da compulsão, mas se inspira na esplêndida fraternidade democrática, o destino do Brasil.
Vou, aqui, tentar celebrar minha missa camoniana.
É preciso falar sobre o gênio? Discorrer sobre sua vida e peripécias? Creio que não. O gênio é evidente por si mesmo. Ao gênio, como à divindade, nós oramos simplesmente. Dirigimos-lhes preces. Discorrer acerca do gênio seria como se nos puséssemos a decantar a claridade do sol. Diremos somente Camões, e tudo já se acha implícito na enunciação do nome.
Quis a bondade vossa que um estudioso da província viesse aqui orar convosco nas solenidades com que se comemora o Quarto Centenário da publicação do poema excelso — Os Lusíadas. Formularei, como puder, os termos da prece, inspirando-me unicamente na leitura dos versos imortais daquele que, neste instante, minhas palavras procuram rememorar.
Eruditos e especialistas já depuseram e deporão, aqui, nesta audiência, a respeito do vate incomparável. Resta-me simples nesga. Tentarei, por isso, algumas amenidades camonianas. Entendo porém, que o trato pessoal é o dado mais precioso. Todos nós tivemos a experiência camoniana e a oração melhor que votaria ao gênio seria relatar-vos a minha.
Sua vida? Não vale a pena. Fruto de numerosas conjecturas em quatro séculos, desde Pero de Mariz, passando por Severim de Faria, Faria e Souza, Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Juromenha, Storck, Teófilo Braga, Carolina Michaëlis, até o grande mestre da camonologia contemporânea, o ilustre Professor Hernani Cidade. A este me apraz citar: “Escassíssimos os documentos relativos ao Poeta. Viveu no esplêndido isolamento dos gênios, só lhe fazendo referências os seus contemporâneos, depois que, já morto, a ninguém a sua glória podia fazer sombra e ninguém podia negar então a da Pátria, garantida pelo poema em cuja realização todos sonharam” (Lições de Cultura Luso-Brasileira, pág. 125).
Eis aí o epítome da biografia de Camões e a ementa de seu destino. O gênio vem para luzir, fulgurar, abrir clareiras, mostrar caminhos, desvendar horizontes e desaparecer tão misteriosamente quanto misteriosamente apareceu. O homem muito explicadinho, sem véus ou mistérios, é o homem comum. O grande homem, o mais das vezes, nasce não se sabe onde, emite seus raios pela combustão do gênio e, depois, fica encantado, como disse miraculosamente o nosso Guimarães Rosa.
Briguei com Camões aos dezessete anos. Que mal me fez, sem premeditação, o meu querido professor da nossa língua! A culpa, já confessada algumas vezes, não foi minha. A experiência que irei narrar é a de toda a minha geração e de cada um de nós em particular. O poema, que já provocou a admiração de tantos homens ilustres como Montesquieu, Voltaire e Humboldt, segundo me certifiquei depois, na Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Foi-me apresentado Camões como um poeta caolho, soldado infeliz nos amores com Caterina de Ataíde, mudado o nome no anagrama Natércia. Salvara-se de um naufrágio nas costas da China com o horrendo livro de versos à mão. Naquela idade, e com o espantalho da chamada análise lógica pela frente, lastimei que o naufrágio não fosse total, ou não consumasse o trabalho: poeta e poema completamente tragados pelas ondas do mar Índico.
Meu professor, Albino José Dias Moreira Júnior, cadete republicano, expulso da Pátria pelas revoluções, sabia a língua e, como bom português que era, conhecia perfeitamente Os Lusíadas. A tediosa análise lógica, à procura de sujeitos e objetos que se escondiam mais do que dinheiro em bolso de usurário, me incompatibilizou, de saída, com o que havia de ser uma das mais fortes paixões de minha vida intelectual. Foi no Canto III, episódio de Inês de Castro:
“Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando, e às ervinhas,
O nome, que no peito escrito tinhas.”
— “O Sr. aí. É o Sr. mesmo! (Eu estava atônito, metralhado pela exigência do professor.) Quem fala? Quem está falando neste verbo estavas?”, rugia o professor do alto da cátedra.
Sabia eu lá quem estava falando? Assim, sem nenhuma preparação, entrávamos, de súbito, no âmago do poema, para explicar as extravagâncias e profundidades do poeta genial. Haviam, também, me ensinado o horror ao cacófato e às assonâncias, e o último verso da estrofe, “o nome que no peito escrito tinhas”, este escrito tinhas me implicava. Rui Barbosa havia iniciado um período pospondo a variação pronominal, para evitar o cacófato e isto era para mim o cânon, a regra áurea e definitiva. Nas Cartas de Inglaterra, no estudo sobre Carlyle, o mestre da prosa brasileira, modelo dos puristas, escreveu: “Eu tinha-me aventurado muitas vezes por essas paragens singulares, etc.” Em vez de eu me tinha, a fim de fugir à dissonância. É que tínhamos no Ginásio outro professor fanático pelo grande Rui Barbosa. Recitava-lhe de cor vários trechos, e só Rui era a sabedoria. A hoje tão proclamada contestação, que na época não trazia este nome, começou aí. Nem Camões nem Rui, por desaforo. Vede só, dois pecados de uma só vez. Com Rui Barbosa, só vim fazer as pazes após a biografia do homem, escrita por Luiz Viana Filho. Mas com Camões eu as refiz, logo após sair da Faculdade de Direito e ir advogar no interior, na solidão de uma cidadezinha mineira das margens do rio Doce. Uma edição prefaciada por D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos na prateleira de um amigo português, apanhada por desfastio, me reaproximou do vate.
— “Isto é que é poeta”, começou logo a dizer o jovem causídico, entusiasmado como aquele personagem de Chesterton, que acabara de descobrir a própria ilha em que habitava. O que me feriu logo a sensibilidade foi a última estrofe do Canto Primeiro:
“No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”
(Canto Primeiro, 106)
Quero que penetreis no âmago, na mágoa profunda destes oito versos para deles haurirdes toda a sabedoria que encerram. Depois de lê-los atentamente, naquela noite feliz da redescoberta, foi que vi o tempo perdido em não cultuar Camões.
Na escola, quase vinte anos antes, não atinara que me defrontava com um dos textos mais belos em matéria de realização literária, uma das peças mais finas da poesia universal, em que o lírico se insere no épico com a naturalidade das águas que nascem e correm em plano inclinado.
Volvi, então, ao que me entediava e encetei a leitura do poema desde “As armas e os barões assinalados”... Quando me deparei na sua integridade, com o episódio de Inês de Castro, foi como se o visse pela vez primeira. O frescor da brisa matinal inundou meu ser:
“Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga, (...)”
“Assim como a bonina, que, cortada,
Antes do tempo, foi cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina, que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido, e a cor murchada:
Tal está morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor, com a doce vida.”
(Canto III, 119, 134)
Que há de mais cantante, mais puro e doloroso em qualquer outro lírico de qualquer outra língua? E, ao mesmo tempo, que há de mais épico do que aquilo que fica em estrofes anteriores, quando o poeta põe na boca de Inês de Castro as palavras, nas quais roga clemência ao Rei Afonso, pai de seu amante, avô de seus filhos, a fim de comutar a pena de morte sumariamente realizada pelos verdugos do monarca, vencedor de mouros, desabrido no combate:
“Se já nas brutas feras, cuja mente,
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como co'a mãe de Nino já mostraram
E co'o irmãos que Roma edificaram: (...)”
“Ó tu que tens de humano o gesto, e o peito,
(Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela:
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.”
(Canto III, 126, 127)
A madrugada, anunciada pelo amiudar dos galos, me surpreendeu no Canto V:
“Porém, já cinco sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados
Prosperamente os ventos assoprando.”
(Canto V, 37)
Eu ia recompondo minha vida aos passos do poema camoniano e me recordava de que, por certas insubordinações e transgressões disciplinares, me fora imposto decorar, num domingo, privado da saída e passeio pela cidade, como supremo castigo, dezesseis estrofes do episódio Adamastor. Que estupenda pedagogia vigorava ainda no Brasil na década de 20! Sabia-se de cor, como ainda hoje, mas sua leitura, no contexto global do poema, e as trinta e seis estrofes anteriores, afiguraram-se-me algo novo, um romance de aventuras, cujas páginas ia devorando na sofreguidão da noite, povoada de ninfas e duendes, mescladas às reflexões, produzidas ao contato do gênio. Ah! A felicidade da descoberta! Enxerguei Camões pela primeira vez. Até ali, Os Lusíadas eram para mim um monumento da língua. Passaram a ser algo mais, algo que possui vida, que pulsa, que comunica a verdade, que nos segreda aos ouvidos nas horas incertas, e percebi a sua duração, a sua perenidade e como puderam reerguer uma pátria e ser o alimento de seus filhos nas horas tormentosas das desventuras e deleite nas horas tranquilas de fruição e prazer. Naquela noite de setembro de 1939, selei minha amizade com Camões.
Deixemos de lado as especulações se Os Lusíadas são a história poetizada das glórias de um povo. São também isto, evidentemente. Mas não são propriamente história em verso. Hoje, podemos asseverar que valeram como grito existencial, emitido na hora certa.
Diferente de todos os poemas épicos, desde a Ilíada e a Odisseia, porque Camões cantou efetivamente a epopeia de um povo, seu personagem central, invisível embora, é a totalidade da nação lusitana, representada às vezes na pessoa do ilustre Gama e seus sequazes — a marinhagem que singrou mares, dobrou o Cabo Tormentório, chegou a Calecute, extasiou-se com as riquezas do Oriente. A verdade expressa, logo na terceira estrofe do Canto I, é: “Que eu canto o peito ilustre lusitano,
/ A quem Netuno e Marte obedeceram.”
Tal categoria foi reconhecida pelo próprio censor da Inquisição, Frei Bertholameu Ferreira, na licença para impressão do poema: “Vi por mandado da santa e geral Inquisição estes dez cantos de Os Lusíadas de Luís de Camões, dos valorosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa...”
Se fossem só história em verso, como pretenderam não só os detratores, mas alguns comentadores sem perspectivas, é claro que Os Lusíadas não teriam vindo até os quatrocentos anos. Muitos outros exercícios pretensiosos, com finalidade semelhante, foram tentados, antes e depois de Os Lusíadas. E, no entanto, não alcançaram a mesma nomeada. A detração veio de longe, e até o frade arreliento José Agostinho de Macedo, no início do século XIX, tentou denegrir o vate nacional, publicando o hoje ilegível Oriente, após as difamações mais rubicundas e saloias produzidas nos panfletos Censura dos Lusíadas e Reflexões Críticas sobre o Episódio do Adamastor que mereceram, na época, as reprimendas mais aceradas do honesto e eruditíssimo Cardeal Saraiva, D. Francisco de São Luís, Patriarca de Lisboa, fino escritor, nas suas admiráveis páginas da Apologia de Camões, liquidando as pretensões do zoilo despeitado com a glória consolidada.
Inúmeras outras informações eruditas, achegas curiosas para ilustrar a história e a compreensão do poema, poderiam ser aqui enumeradas, colhidas ao longo da leitura dos mais famosos comentaristas de Camões e sua obra. Tudo, porém, seria matéria de repetição e que os especialistas dizem melhor. Achados surpreendentes que esmaltam a leitura foram e continuam sendo o cuidado de muitos estudiosos. Já sobre o nome do poema começa a disposição erudita. Reproduzo, agora, uma página de meu diário, quando me preparava para compor estas palavras. Traduzem elas fielmente minhas preocupações.
“22-7-72 — O que realizo não é nem a centésima parte do que idealizo ou planejo. Esta manhã, li minucioso estudo de Alfredo Pimenta, erudito respeitável, sobre a origem da palavra lusíada, que André de Resende afirmou haver empregado pela primeira vez. Que debate mais bizantino para quem não está vivendo o problema como eu estou agora. A verdade é que tudo sobre Camões me interessa neste momento. Possuo sobre ele e sua obra mais de vinte volumes especializados e talvez outros tanto de referência. Todos lidos no tempo devido e sem pressa. Agora, estou relendo ou repassando os olhos em todos. E a angústia me atormenta, não por desejar dizer tudo, o que seria tolice, mas por querer dizer o essencial daquilo que penso. Original, a meu modo. E o original seria uma reflexão atual sobre a importância do Poeta num mundo que conhece a psicanálise, a energia atômica, a velocidade da cápsula espacial, as viagens estratosféricas e outros avanços da técnica e da ciência. Que poderia dizer? A sua língua é nossa, evidentemente. Camões prestou-nos o serviço de fixar a nossa linguagem. Está mais próximo de nós, decorridos quatrocentos anos de sua obra máxima do que ele estava de Fernão Lopes ou André de Resende. Nosso idioma, isto é, sua funcionalidade e poder expressivo, nasceu com ele. Isto prova sua atualidade. Camões é atual não só pela língua, mas pelos sentimentos que expõe em seu poema, em seus sonetos e outras composições. Os problemas pessoais e muitas das relações com o cosmos são os mesmos até hoje. De modo que não é difícil fazer-se um cotejo do núcleo da obra camoniana com os tempos atuais. A questão é saber se terei força para efetuar esse trabalho de cotejo. Gostaria, agora, de compor um ensaio bastante lúcido sobre o tema; o vivo e o morto em Camões. Arrastaria o homem para os dias de hoje, mergulharia em sua obra ou submetê-la-ia aos testes atuais como num laboratório. Mas, para que tanto esforço, se os problemas com que nos defrontamos exigem medidas e soluções completamente estranhas, há quatro séculos?”
Nesta pequena nota íntima exponho as dúvidas e mostro os andaimes da construção que estou tentando.
Dona Carolina Michaelis, José Maria Rodrigues e outros mais afirmam ser André de Resende, o mestre da Universidade de Évora, o inventor da palavra lusíada, que Camões adotou para título de seu poema maior, sem usá-la uma só vez no corpo da composição. Com irretorquíveis subsídios, acolhidos em obras anteriores, Alfredo Pimenta desmonta a autoria de André de Resende e mete no chinelo os abonadores dessa autoria. Pergunto eu: em face da sugestão imponente do poema, daquilo que ele provoca em nossa alma, que vale a indagação de seu título?
Príncipe dos poetas épicos, afirmam-no desde sua morte. E príncipe por quê? Porque seu poema merece leitura por si mesmo, independentemente do assunto, do tema e das virtuosidades do poeta. Repensou e trabalhou o petrarquismo, diremos nós. Até ali, Sá de Miranda e seus antecessores quinhentistas petrarquizaram somente. Camões, dentro do espírito renascentista, retomou a matéria e nela verteu o talento incomum na arte do verso, seu sentimento, seu gênio, afinal. A teoria do amor, a que foi tão magistralmente enunciada na Ode VI: “Aquele não sei quê, / Que aspira não sei como, / Que, invisível saindo, a vista o vê, / Mas para o compreender, não acha tomo”, e, mais tarde, no Soneto 81 das Rimas: “Amar é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento descontente; / dor que desatina sem doer”, se foi bebida em Petrarca, foi depurada, em seguida, na quintessência do gênio camoniano.
A originalidade em Camões reside precisamente nisto. Se em Petrarca o leitor sagaz percebe logo que o amor é um fino, um hábil instrumento de sua arte, uma gratuita manifestação vocabular, em Camões, a teoria se faz carne, transubstancia-se, é a obsessão de sua vida, um sentimento profundo, que ele eleva à perfeição poliédrica, através da lírica mais requintada na sua simplicidade. O amor é tão essencial que essa paixão se funde à retórica, que o ornato desaparece da frase, da composição, oferecendo unicamente ao poema os elementos de que necessita para atingir a suprema conquista da estesia. “Manda-me Amor que cante o que a alma sente, / caso que em verso nunca foi cantado, / nem dantes entre a gente conhecido...”
O que nos assombra em Camões é a justaposição, tanto na lírica como na épica, do conceito à imagem. Poesia, no alto dizer de Valéry, é dança, como a prosa é marcha, e nesta cabem os conceitos ficando as imagens para aquela. Ora, Camões, humanista como Petrarca, conseguiu fundir imagem e conceito, realizando a penetração no ser, conforme o ensinamento dos modernos.
Se a mestria na Gaya Scienza do soneto é unicamente atribuída a Petrarca, parcela não menos considerável de críticos e poetas, com Eugenio D'Ors à frente, reconhece que, dentro da produção poética lusitana, o cânon do soneto de Camões é a forma típica por excelência, antonomástica, por assim dizer, que dá estilo a todo conjunto de ilustres epígonos, a começar por Bocage, passando por Antero de Quintal até Fernando Pessoa. Eis aí a diferença: enquanto os outros permaneceram petrarquistas, Camões tornou o soneto forma sua, peculiar, antonomástica, de modo que, ao dizermos soneto, logo podemos acrescentar camoniano, embora Pierre de Vignes o inventasse em França e Petrarca o marmorizasse na Itália no limiar da Renascença.
A maneira vital com que Camões concebe os fatos do mundo encontra-se com toda potência em sua obra. Os Lusíadas, poema dito épico, é um produto além do racional. Foi pena que Bergson não houvesse conhecido a poesia camoniana para nela versar a sua doutrina da intuição. O filósofo iria fornecer-nos dados maravilhosos, hauridos nas estrofes de Os Lusíadas, para nos demonstrar que a razão não é o modo superior do conhecimento, que a relação cognoscitiva estava ligada a essa intimidade transracional e com a realidade vivente. A própria vida, no seu fluir, é que é o método do conhecimento. Camões viveu a matéria de seu poema. O que se passa em Camões, não só em Os Lusíadas, mas nos sonetos, odes, elegias, églogas, oitavas, redondilhas, canções e sextinas, é o sopro vitalista da realidade, o problema da vida é o que ele projetou em sua arte total. A matéria poética ali é pura manifestação vital.
Um de meus propósitos aqui não é recitar os versos, mas somente chamar a atenção sobre eles, oferecendo aos ouvintes a dádiva da descoberta ou redescoberta, como foi no meu caso, das belezas vitais do poema. Não só do artifício vocabular, ou da arte de compor a rima, através de engenhosas metáforas, mas da própria significação do conteúdo, do núcleo da mensagem camoniana, desejo falar.
Vou ao Canto IX e rogo-vos que leiais o desembarque na Ilha dos Amores e penetreis no que significam a imortalidade e a recompensa ou o prêmio da "Fraca carne humana":
“Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, a ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.”
(Canto IX, 83)
Eis aí a mais delicada e fina descrição do amor físico, transubstanciado na experiência vivencial do poeta. Por isso em Camões não se encontram somente a doxa, isto é, a notícia, a coisa fria, de segunda mão, referida já por outro e que entra mecanicamente na rima, mas ainda epístemo, isto é, o conhecimento, como ele mesmo colocou nos decassílabos finais do Canto X, como conselho aos pósteros: “Não se aprende, senhor, na fantasia, / Sonhando, imaginando, ou estudando, / Senão vendo, tratando, e pelejando.”
Vêem-se em Dante ou Vergílio os modelos de Camões, para a composição de seu poema. Ouso afirmar que esses modelos se restringem unicamente ao emprego do verso, para exprimir sua concepção do mundo.
A mensagem moderna de poetas ciclópicos ou megalópicos, digamos assim, da linha camoniana, nós a temos em T.S. Eliot ou Ezra Pound. Em que diferem e em que se assemelham a Camões, para os trazermos aqui à colação? É que no lusitano não se evidencia com tanta clareza a consciência dividida que esses poetas ostentam. A nostalgia, que é a consciência da ruptura com a ordem estabelecida há séculos, Camões a sublimou na sua lírica com acentos parêmicos, ao passo que a ambivalência em Eliot, por exemplo, assume a equivalência de cataclismas. Para Eliot, o arquétipo é a Divina Comédia, do Dante, culminância e expressão maior deste mundo, a que ele opõe The Waste Land, a terra devoluta, que nós dizemos hoje a terra poluída. Eliot colocou em outros padrões a tradução dos mesmos valores que Camões expôs na sua épica e na sua lírica. A sociedade moderna, desde as claras origens renascentistas, como vemos em Camões, vem desaguar nas sórdidas e fantasmagóricas realidades contemporâneas descritas em Eliot. As fontes espirituais em um e outro são as mesmas. A tradução, em termos de comunicação, difere, porque o material utilizado por Eliot foi enriquecido por quatro séculos de conquista científica e empobrecido por outros tantos de desilusões. Digamos ousadamente: se Camões usou as palavras na sua pureza original, na aurora vocabular, Eliot parece que ajuntou cacos de palavras, despojos, fragmentos, o subfolclore, o colóquio mais rasteiro e repugnante, intercalados na linguagem mais castiça, na prosopopeia mais dinâmica, entre citações de Dante, Shakespeare, Santo Agostinho e os Upanishades. Estudamos o mundo da Renascença em Camões, assim como penetramos na essência do mundo de nossos dias, na situação presente, nos versos de Eliot e sua Terra Poluída. Um crítico filólogo poderia asseverar que as palavras em Camões nascem naturalmente como o fruto da flor que se sustenta pelo caule, ao passo que em Eliot elas se apresentam na forma de colagem, usada na pintura moderna, ou através de citações com força de provérbios. Oriundos, ambos da mesma tradição espiritual, Camões partilhava de crença profunda nela, ao passo que Eliot, se não nega a tradição e até a cultua do modo mais peremptório, não acredita em sua eficácia. Não obstante, sua grande poesia é a reconquista da herança europeia, embora negando a lógica e o princípio da analogia, e utilizando o processo destruidor da unidade da consciência pela associação de ideias.
Volto a insistir: Camões é original em tudo. Não desejo, aqui, trazer fastidiosos laudos de heurística ou cotejos cansativos entre Os Lusíadas e paralelos poemas épicos anteriores. Recordemos, porém, a lição de Hegel em sua Estéticas — “Para que a epopeia nacional ofereça interesse duradouro a povos e idades afastados é preciso que o mundo que ela observou e descreveu pertença a uma nacionalidade particular, mas que seja de tal sorte que este povo especial, no seu heroísmo e empresas, seja profundamente repassado do caráter de humanidade em geral.” Foi precisamente este modelo que Camões preencheu com Os Lusíadas. Se não houvesse neles o tal caráter de humanidade, aludido em Hegel, ninguém mais leria o poema a não ser o erudito. Basta, porém, abrirmos o poema em qualquer canto e ler uma estrofe. Sente-se logo um sopro de vida. Embutido na massa de conhecimentos da época, como síntese do Renascimento e de toda a ciência de então, bafeja-nos conjuntamente o hálito da realidade palpitante, aquele sentimento que não deixa envelhecer as coisas e mantém aceso o interesse da vida.
Foi longa a preparação de Os Lusíadas na alma de Camões, tão longa quanto é preciso para a obra-prima brotar do gênio. Os ensaios da lírica e da épica, no todo de sua produção literária, com mestre Sá de Miranda como resumo, prenunciavam o aparecimento de Os Lusíadas. Como seria o poema? Conjecturemos, à maneira de Renouvier na sua Ucronia. Poderia ter saído uma cataplasma informe, contando, também, pachorrentamente a história pátria, as conquistas e até a descoberta do Brasil, pois essa façanha já havia acontecido e continuava maravilhando os espíritos da Europa. No entanto, Camões só escreveu sobre o que conhecia. Por que preferiu colocar o tema da epopeia na viagem de Vasco da Gama à Índia? Porque à Índia ele foi. A quinta estrofe do Canto Primeiro, quando o poeta pede às Tágides: “Dai-me uma fúria grande e sonora, / E não de agreste avena ou fruta ruda, / Mas de tuba canora e belicosa, / Que o peito acende e a cor ao gesto muda”, deixa, mais uma vez, clara a sua intenção. A agreste avena ou a fruta ruda eram para a lírica, já longamente exposta na “Verdadeira enciclopédia do amor”, no elegante dizer de Fidelino de Figueiredo. Agora, seu gênio pedia outros instrumentos, a tuba canora e belicosa em que ele iria expressar o momento existencial da pátria.
O dotto e buon Luigi, como lhe chamou Torquato Tasso, ainda usando a tuba sonora, não desprezou a agreste avena, homem de múltiplos instrumentos que sempre fora. E daí a variedade, não direi bem, mas a originalidade de Os Lusíadas: o épico e o lírico se interpenetrando, para oferecer o poema sui generis, na sua prosopopeia, que os eruditos estrangeiros como Wilhelm Storck, Aubrey Bell e outros nem chegam a fazer paralelos com a Gerusalemme Liberata, do Tasso, ou Orlando Furioso, de Ariosto, seus contemporâneos. Ele não só pensou em verso, como asseverou Aubrey Bell, mas produziu reflexões que assustam até hoje pela atualidade do conteúdo:
“Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
C' uma aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”
(Canto IV, 95)
Não nos deteremos, também na qualidade vocabular, que se louva em Camões, o conhecimento filológico e as estranhezas, como o emprego da palavra nequícia, no Canto VIII, estrofe 65, para então, versado, como se verifica, da simples leitura do poema, em todos os grandes pensadores e escritores da antiguidade e do seu tempo. Só os gafentos procuram os senões e os cochilos como aquele da estrofe 18 do Canto VI — “Mas porém de pequenos animais”, as duas adversativas de uma só vez. Isto talvez fosse um modismo da época, mantido até hoje na linguagem popular. E tudo foi absorvido na mocidade para, depois, brotar longe da pátria, afastado do convívio dos livros. É evidente que Camões compôs seu poema num ambiente hostil à cultura intelectual, sem os recursos das bibliotecas, valendo-se unicamente da memória.
Humboldt, espírito dos mais bem dotados, objetivo na sua observação de cientista, não escondeu a fascinação que lhe causaram Os Lusíadas em face de sua experiência de viajante. Convém que o próprio Humboldt nos fale, retirando-se das páginas de seu Cosmos as palavras entusiasmadas: “Este caráter de verdade, que nasce da observação imediata e pessoal, brilha no mais alto grau na epopeia nacional dos portugueses. Sente-se flutuar o perfume das flores da Índia através desse poema escrito sob o céu dos trópicos, na gruta de Macau e nas Ilhas Moluscas. Sem me demorar a discutir uma opinião arrojada de Frederico Schlegel, segundo a qual Os Lusíadas de Camões excedem em muito o poema de Ariosto pelo brilho e riqueza de imaginação, eu posso afirmar pelo menos como observador da natureza que, nas partes descritivas de Os Lusíadas, nunca o entusiasmo do poeta, o encanto de seus versos e os doces acentos de sua melancolia alteraram um ponto a verdade dos fenômenos. A arte, tornando as impressões mais vivas, deu realce à grandeza e à fidelidade das imagens, como acontece todas as vezes que ela se inspira de uma fonte pura. Camões é inimitável quando pinta a relação perpétua que se opera entre a atmosfera e o mar, as harmonias que reinam e entre a forma das nuvens, suas transformações sucessivas, e os diversos estados pelos quais passa a superfície do oceano. Camões é, no sentido próprio da palavra, um grande pintor marítimo.”
Não era meu propósito entrar na explanação erudita. Diante, porém, de testemunhos tão eloquentes da qualidade realista e vivencial da poesia camoniana, característica básica, a meu ver, citar Humboldt para me ajudar, não é atochar o texto de inutilidades. Camões é o mais alto exemplo do escritor que só escreve daquilo que viveu, sabia ou viu.
Na época de seu poema, o Brasil já é assunto superlativo do Reino de Portugal e preocupação primeira do rei. Em 1572, já estava aqui o 3º Governador Geral, o grande capitão Mem de Sá, enérgico, criterioso e justiceiro, flor da fidalguia portuguesa. São Paulo já estava fundado com o nome de Piratininga, e o Padre Anchieta já ilustrava essas plagas. A Bahia já era Bahia desde Tomé de Souza, o primeiro Governador Geral. Enfim, o Brasil já não era coisa informe, era o Estado do Brasil, ao que se lê nos documentos coevos. Alma e corpo da grande nação já estavam de pé, para ser o que hoje estamos vendo. E nesse ano da morte de Mem de Sá, na Bahia, é que surge o livro de Os Lusíadas. Com tudo isso, com a preocupação infatigável de Dom João III, exemplar monarca, que soube fazer do absolutismo instrumento do bem-estar e prosperidade dos súditos, altivo no trato com as potências de então, Santa Sé, França, Espanha e Inglaterra. Mecenas da cultura e protetor das artes, propulsor da riqueza das colônias até sua morte em 1557 — o Brasil era e continuou sendo a menina dos olhos da administração portuguesa. No entanto, por que Camões só uma vez alude ao Brasil, assim mesmo de raspão, como referência, no Canto X, na estrofe 63? A razão nós já a sabemos. Ele nunca veio ao Brasil. E fez a viagem da Índia, viveu a Índia, e daí Vasco da Gama e sua gente tomarem conta do poema.
Como peça existencial que creio ser, como existencial é sua lírica. Os Lusíadas são uma crônica da atualidade, da vida circundante à época de sua elaboração. Visualiza o espaço de dezoito meses, que dura a viagem do Gama à Índia, de março de 1498 a setembro de 1499, espelhando quatrocentos anos da história portuguesa. Ora, o tempo sempre foi uma categoria infalível, obstinada e intransferível nas epopeias. Uma das epopeias de nosso tempo é o Ulisses, de James Joyce, e conta a história de um homem vulgar no espaço de um dia. A condensação genial de Joyce, precipitando os acontecimentos e as trivialidades, aquilo que consideramos efemérides e o existir comum, ou corriqueiro, no espaço de vinte e quatro horas, é estimado como um dos feitos mais célebres da literatura em nosso século. Ao lado dele, há a saga mundana de profundo sentido existencial também, que é o romance de Proust. A façanha de James Joyce e de Marcel Proust, como epopeia dos tempos novos ou de nosso tempo, pode ser comparada à aventura camoniana de reduzir quatro séculos de história portuguesa, revividos no espaço de ano e meio, misturada a muitas outras informações. Tanto nos modernos como em Camões, o passado está presente para alimentar os feitos gloriosos ou a simples atuação dos personagens de Joyce e Proust. A aventura que preenche o tempo e ocupa o espaço camoniano corresponde, hoje, à proeza de Guimarães Rosa, a braços com Diadorim e Riobaldo, elaborando uma atmosfera, uma cosmologia, uma gnosiologia particular ao nosso tempo, estatuindo novos critérios condicionantes de nosso conhecimento da realidade. A criação quando é parturejada pelo gênio, pois todos eles se tocam pelo cume, quer se trate de Camões, Proust, Joyce ou Guimarães Rosa, estrelas genéricas, isto é, astros centrais de sistemas planetários, capazes de irradiar luz e vida aos planetas que giram em torno deles. Os Lusíadas são a crônica da atualidade no século XVI. Assim como o homem de Dublin estava vivendo um dia do ano de 1900 e o nosso Guimarães Rosa fixando para os séculos a vida transracional, o comportamento superfreudiano dos habitantes do sertão que desaparece por força da técnica: do telefone, do rádio, do automóvel, do avião, da penicilina e das sulfas. De forma idêntica devemos encarar Os Lusíadas.
Estamos caminhando, agora, para a epopeia da uniformização. Superados Carlyle, que valorizava os heróis, e Nietzsche, o super-homem, penetramos no reino do homem comum. Camões, lá nos confins do Renascimento, já via, pelo telescópio do gênio, o povo como personagem. Só nos resta imaginar como será proclamada, para as centúrias vindouras, a viagem do homem à Lua. Na época das comunicações, quando um acontecimento é presente, concomitantemente, em todo o globo terrestre e já o ultrapassa até para atingir os planetas, a epopeia acha-se escrita nos televisores e nas páginas dos jornais. Não seria mais o caso de invocar-se, como fez Camões, na estrofe Primeira do Canto III: “Agora, tu Calíope, me ensina / O que contou ao rei o ilustre Gama”, se um bardo destes nossos dias pretendesse contar a façanha dos primeiros astronautas ao pisar a lua. Não. Um semiletrado repórter, assentado em sua mesa, no tumulto da redação, redige uma espécie de relatório, uma notícia, sem nenhum fulgor, relatando o fato, e está gravado para a posteridade o epílogo de um dos mais extraordinários acontecimentos da espécie humana, auxiliado pelo trabalho anteriormente executado pelas objetivas fotográficas e as câmeras de televisão, que projetam as imagens em nossa própria casa.
Retornemos, uma vez ainda, ao vitalismo insculpido no poema, ao caso pessoal de seu lirismo, inserido nas estrofes que são a descrição do ser e do tempo simultaneamente. Camões entregava sua mensagem, procedia à declaração do homem português do Renascimento, levado pelo poder do gênio, informado pela cultura humanística como já o disse Frey Bertholameu Ferreira no parecer de censor: — “... Que o Autor mostra nele (no poema) muito engenho e muita erudição nas ciências humanas".
Quem compulsar o poema com vontade de ler nas entrelinhas, percebe que Camões deseja advertir os compatriotas de que não estão ainda à altura dos tempos, que sua conduta não corresponde à magnitude da tarefa e que à ação desferida devia corresponder uma consciência nítida do momento histórico. É seu poder crítico que opera ao mostrar as coordenadas espirituais a serem tomadas em consonância ao arrojo da ação. Afigura-se-nos que Camões apresentou o modelo ideal, o alvo generoso, o metro a ser preenchido pela atuação de seus dirigentes e seguidos pela nação como um todo. Camões descortinou, genialmente como sempre, aos contemporâneos os horizontes da Idade Moderna. Por isso entristece-nos que não tenha conhecido Copérnico. Ou não o tenha podido usar em sua temática, talvez por cautela, com os olhos no Tribunal da Santa Inquisição. O sistema ptolomaico, viabilizado na descrição, entra em conflito com outras observações científicas que enxameiam a contextura do poema. O cuidado em não magoar, para não ser punido, as potestades de então não chegam a atingir a integridade realística e macular a ordem experimentalista implantada já no método científico e que, por certo, era também o camoniano. A verdade, todavia, é que seu alvo foi alcançado: consciencializar os compatriotas, dar-lhes o sentido de nacionalidade, ou revitalizar esse sentimento, de modo que Os Lusíadas foram um estímulo aos portugueses, os quais viram a pátria sucumbir com a morte do Cardeal Dom Henrique, e prepararam-na, nas sombras do underground, para ressurgir na revolta articulada por João Pinto Ribeiro, cultor de Camões, ledor e comentador do poema, restabelecendo no reino de Portugal a Casa de Bragança, ramo bastardo da Casa de Avis. Não contivesse o poema os ingredientes para essa motivação, por certo não teria germinado como semente que mantém vida latente, guardada em celeiro seguro para o plantio no tempo próprio.
Os juízos expendidos acerca da política europeia do momento, nas estrofes 1 a 14 do Canto VII, são uma lição chamada realpolitik, que os alemães ensinaram na era bismarquiana: sobretudo não sair do espírito da pátria, de suas raízes profundas, daquilo que o povo adotou como postulados indesejáveis.
Enfim, tudo em Os Lusíadas nos fala da realidade do mundo, tratada embora em dois planos, com o recurso à mitologia, talvez para melhor exprimir sua invectiva ou pregar sua doutrina, como fazem os doutos e precavidos. A descrição da Índia Cisgangética, no Canto VII, das estrofes 17 a 25: — “Além do Indo jaz e aquém do Gange / Um terreno mui grande e assaz famoso” — é modelo do objetivismo geográfico de Camões, pois ele pintou um grande painel, autêntico mural físico e espiritual de sua época, paradigma para todos os tempos.
Enfim, se fôssemos pelo caminho das amenidades camonianas, que ocorrem repetidamente com as sugestões da leitura, em muitas noites iguais a esta, teríamos de nos encontrar para as ouvirdes.
Confio, porém, em que, muitos de vós, que, porventura, ainda mantendes atitude igual à com que enfrentei Camões, por alguns anos aparelheis o espírito para receberdes a hóstia consagrada da poesia. Usou genialmente o épico incomparável todos os recursos artísticos para debuxar esse grandioso mural, pensando em oferecer à Pátria, à “ditosa pátria minha amada”, o instrumento de sua sobrevivência, sobrevivendo, ele próprio, o Poeta, nas estrofes da maravilhosa sinfonia.
Quero citar meu saudoso mestre Afrânio Peixoto, que muitas vezes me falou apaixonadamente de Camões, antes de minha iniciação, antes de eu ser tocado pela graça de sua poesia, antes de haver penetrado a teogonia camoniana: — “Vimo-lo, divino, sobre uma obra enciclopédica que é Natureza e Arte, Espaço e Tempo, História e Filosofia, Fé e Patriotismo, Aspiração e Esperança... Vemos que não bastamos, e não podemos bem ver, porque a nossa vista é curta, e muito, muitíssimo há que ver e admirar.” (Afrânio Peixoto, Ensaios Camonianos, pág. 54, ed. 1932).
Finalizo com Aubrey Bell ²: — “Na sua graça e melancolia, no seu amor da natureza, na apaixonada devoção, na persistência e resistência, na independência e orgulhosa sensibilidade, no seu dom lírico e poder de expressão, na sua coragem e ardente patriotismo, Camões é a personificação e o modelo ideal da Nação Portuguesa.” [A Literatura Portuguesa (História e Crítica), pág. 241]. Finalizo dizendo que o Brasil espera um Camões.
* Jornalista, advogado, escritor e homem público de Minas Gerais. Foi eleito em 1959 para a Academia Mineira de Letras; tornou-se em 1988 seu presidente-perpétuo por eleição unânime de seus membros. Publicou 23 livros de ensaios.
Fonte: Homenagem a Camões, Brasília: Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação da Diretoria Legislativa, 1973, pp. 89-106. Conferências promovidas pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados em 1972. Livro impresso pelo Centro Gráfico do Senado Federal em julho de 1973, 160 p.
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo gerente do Blog
¹ Em 1972 foi comemorado o IV Centenário da 1ª edição especial de Os Lusíadas. O poema épico de Camões provavelmente tenha sido iniciado em 1556 e concluído em 1571. Este opus magnum foi publicado em Lisboa em 1572.
Em comemoração ao IV Centenário de Os Lusíadas no Brasil, foram proferidas conferências promovidas pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, e tiveram lugar no período de 18 a 23 de junho de 1972.
² Tradução do inglês por Agostinho de Campos e J. G. de Barros e Cunha. Imprensa da Universidade. Coimbra. 1931. 507 p.
III. AGRADECIMENTO
À minha amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho.
7 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Para comemorar o IV Centenário da 1ª edição de Os Lusíadas, o Congresso Nacional, através da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, sob a presidência do Deputado Murilo Badaró, teve a feliz iniciativa de realizar uma Semana de Estudos Camonianos com a participação de eruditos e especialistas brasileiros em Luís de Camões, aos quais cabia proferir uma conferência sobre temas variados à sua escolha.
VIVALDI MOREIRA (1912-2001), na época da palestra, era membro da Academia Mineira de Letras e foi um dos convidados a tomar parte da homenagem ao vate português, com sua conferência "AMENIDADES CAMONIANAS", uma das conferências realizadas no período de 18 a 23 de junho de 1972 que o Blog de São João del-Rei tem muito prazer de transcrever.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/10/amenidades-camonianas.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...
Obrigado pelo convite!
De 1958 a 1962 no assim chamado Colégio São João, São João del-Rei. Internato, cursei o “ginasial”. Em todas as aulas de Português e Literatura, havia que usar a Gramática de Napoleão Mendes de Almeida, o Dicionário da Língua Portuguesa publicado pelo MEC -Ministério da Educação e Cultura, e o “Florilégio Nacional”, antologia da Literatura Brasileira e Portuguesa, impresso nas Oficinas Gráficas da Escola de Aprendizes, do Colégio Salesiano Santa Rosa, de Niterói.
Claro que na antologia não poderia faltar Os Lusíadas. Nas longas horas no salão de estudo, terminadas as tarefas restava como lazer – à falta das ‘histórias em quadrinhos” da época e os vídeo games de hoje ou da TV, de transmissões de jogos e/ou vídeos de streaming da Disney e quejandos, sobrava como lazer: ler outros textos do Florilégio que não os marcados pelo professor.
Então o que pude ler na postagem do Blog já, de certa forma, fez parte de minha existência e formação escolar.
Rememorar é reviver!
Paulo José de Oliveira - Pajo Poeta, presidente da AFL-Academia Formiguense de Letras disse...
Saudades de Vivaldi Moreira. Era um gentleman, e já nos honrou com a presença em Formiga, em nosso Congresso de Poetas Trovadores, em 1993.
Bom dia, meu nobre!
Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...
Revisitar a ensaística ilustrada e sedutora de Vivaldi Moreira é sempre bom. Vivaldi tinha uma antenação intelectual multidirigida, uma voz envolvente, uma fluidez estilística, uma empatia, enfim, capaz de cativar o leitor desde as primeiras palavras. Um clássico moderno. Rejubilo-me de ter podido manter alguma convivência pessoal com ele, com quem tenho a honra de ser aparentado, e uma convivência livresca mais longa e mais profunda. Este ensaio sobre Camões me agrada particularmente, por sua erudição, compreensão e encanto.
Abração.
Anderson
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Oportuna lembrança da figura do intelectual Vivaldi Moreira. Transcrevendo sua conferência primorosa, louvamos Camões e saudamos a memória também de Murilo Badaró, amigo e sucessor de Vivaldi na presidência da Academia. Abraço agradecido do Pedro Rogerio Moreira
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