Por ÁUREO Macedo Bringel Viveiros de MELLO
POESIA DA ENCHENTE
(Constante do livro INSPIRAÇÃO - POESIAS (publicado em 3 tomos pela Gráfica do Senado, 1989))
"— Tu tá veno, cuirão? ¹ Tu tá veno, José?
Eu num disse qui a inchente esse ano era braba?
Cadê tua juta ² agora? Eu quero vê cumo é
Qui vai-se arisurvê! Suco! ³ Água qui nunca acaba!"
E o rio vai galgando as carnes do barranco
Cobrindo os capinzais, os troncos assediando,
Seguindo, mata a dentro, em desmedido arranco,
Aos lagos e igapós ⁴ as águas germinando...
Estão mortos jutais, as plantações tombadas,
As casas se-mostrando, à flor do lençol tétrico,
E hercúleo e caudaloso, o rio, em rabanadas,
Avança, vale a dentro, o corpo quilométrico...
O Amazonas cresceu, nestes meses pioneiros
E ainda mais crescerá, nos meses que hão de vir.
Nesse anseio de criar que estremece os banzeiros ⁵
O gigante brutal somente faz destruir...
O rio é largo e belo, é como um canto errante
Da natureza, entoado em plena tempestade.
O ventre colossal vibra, enfunado ⁶, arfante
E rola os vagalhões ⁷ com lenta majestade...
Na superfície, ao sol, balseiros ⁸, velhos troncos,
Em lenta procissão vão demandando o mar.
O vento é frio, e é forte. As vagas soltam roncos
E espumam, são cristais se esfacelando no ar...
A selva assiste a marcha eterna da corrente
E é bela, é moça, é verde, é viva e misteriosa...
A coma ⁹ é seiva e luz, mas lôbrego e silente
É o fundo coração dessa floresta umbrosa...
As aves vêm valsar nas margens, de beleza
Criando, contra o céu, figurações ideais,
E segue, assim, vibrando, a enorme correnteza
Entoando um cantochão entre sons festivais...
O crepúsculo é um sonho, é uma paisagem linda
De ouro e coral e azul e espelhos de cristal
A alma se enleva e ajoelha, e esse enlevo não finda
Quando nos céus se espalha a noite equatorial...
O vento sopra, e soa a inúbia ¹⁰ dos rebojos ¹¹,
A água sinfonizando em gorgolões ¹² sombrios...
O pensamento sobe, em místicos arrojos
E mergulha depois na esteira dos navios...
Mas... o monstro subiu trinta metros ao todo,
E as matas invadiu, as várzeas submergindo.
Terra firme é bem pouca. O gado está no lodo
Ou triste, a se imprensar ¹³ nas marombas ¹⁴, mugindo...
E o caboclo? ¹⁵ O mongol calado da restinga? ¹⁶
Onde está o oriental do "jaticá" ¹⁷, do arpão?
Campeão dos matupás ¹⁸, batalhador da aninga ¹⁹
Rei completo do anzol, da rede e do facão?
Onde está o grande herói que na proa da sua
"Montaria" partiu pra pescar jacaré?
Onde o veste-de-trapo, o João-ninguém que à lua
E ao sol trabalha e luta, alentado a "chibé"? ²⁰
Onde é que você está, meu bravo amazonense,
Que mergulha no barro arrancando o jutal? ²¹
Onde é que você está, nordestino, cearense
Que caboclo ficou nas lides da jangal? ²²
Está no pastoreio ao gado? Na caçada?
Cortando canarana ²³ ou lançando o espinhel? ²⁴
Virando tartaruga à praia? Na queimada?
Ou foi pro seringal, representando Abel?
Qual o quê! O caboclo, encorujado a um canto
Está, qual um Noé, sozinho no Dilúvio.
Sem casa, sem vintém, tendo a vida, se tanto
Nada pode fazer contra o inimigo plúvio...
Plantar roças sobre água? Impossível! Pescar
Ele o pode fazer, mas com dificuldade.
Que lhe resta, afinal? É remar, é remar
E ir, como outro já fez, mendigar na cidade...
"Vucê, se me ajudá, cumpatrício do sur ²⁵,
Vai ganhá de presente umas cuisa incantada ²⁶:
Vú mandá pra vucê, já "feito", irapuru ²⁷
E olho de buto ²⁸, viu? Suco! Inchente zangada!"
Fonte: livro INSPIRAÇÃO de Áureo Mello, tomo 3, p. 87-9, Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1989.
Crédito: Serviço de Pesquisa e Recuperação de Informações Bibliográficas-SGIDOC da Biblioteca do Senado Federal
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Análise literária por Francisco José dos Santos Braga sobre a Poesia da Enchente de Áureo Mello
Aqui ofereço um pequeno glossário para a Poesia da Enchente, cheia de "brasileirismos da Amazônia", como quer o Dicionário Aurélio, mas que, em minha opinião, constituem regionalismos lexicais e semânticos amazonenses, só verificados na Amazônia e praticamente desconhecidos por nós, brasileiros nascidos em outras regiões.
“Não há uma língua portuguesa, há línguas em português”, disse José Saramago em depoimento para o documentário “Língua - Vidas em Português”, que aborda as diferentes nuances do português falado por milhões de pessoas pelo mundo. Quem faz a defesa de línguas em português foi o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, e do Prêmio Camões, em 1995, o mais importante da língua portuguesa.
A frase é fundamentada na própria experiência de Saramago. No documentário, a lusofonia é, sobretudo, fala, surpreendida do cotidiano de personagens ilustres e anônimos de quatro continentes. Em cada um deles, o português amalgamou deuses, melodias, climas, ritmos; misturou-se aos alimentos e às paisagens; foi reinventado centenas de vezes e alimentado sucessivas vezes por colonizadores, imigrantes e descendentes.
Passo então a apresentar um pequeno glossário para esclarecimento do vocabulário muito típico utilizado pelo Amazônida Áureo Mello.
¹ Cuirão é o nome dado ao menino caboclo do norte da Amazônia.
² Juta: fibra grosseira tirada de uma planta tiliácea que se cultiva na Índia, Paquistão e Brasil, e da qual se fazem sacos, especialmente para embalar cereais.
A própria planta.
³ Suco: coisa muito boa (popularmente).
⁴ Igapó: região da floresta amazônica que permanece alagada mesmo na estiagem dos rios. Mata de igapó: vegetação baixa e uniforme dessa região, pobre em espécies, com árvores afastadas e numerosos epífitos.
⁵ Banzeiro: a sucessão de ondas ou marolinhas provocadas por uma embarcação em deslocamento.
⁶ Enfunado: cheio de vento, inchado
⁷ Vagalhão: grande vaga ou onda formada em alto-mar, em mar aberto, quando o oceano está bem agitado.
⁸ Balseiro: aquele que dirige a balsa ou jangada.
⁹ Coma: cabeleira, juba.
¹⁰ Inúbia: tipo de trombeta de guerra dos índios tupis-guaranis, feita de dois pedaços ocos de maçaranduba, unidos entre si com cipó; membitarará.
¹¹ Rebojo: redemoinho de água que se forma no mar ou no rio e leva coisas para o fundo; sorvedouro, turbilhão, voragem.
¹² Gorgolão: pequeno jato; golfada, borbotão.
¹³ Imprensar: apertar muito, como numa prensa (literal); espremer.
¹⁴ A maromba ou palafita, como é conhecida na Amazônia, é um estrado construído de madeira tendo como pilares troncos de madeira-de-lei para dar suporte à estrutura da construção. Em cima desse estrado são construídos a casa e os currais para receber pessoas e animais durante a cheia dos rios.
A vida ribeirinha na Amazônia é assim: no início do ano as águas dos rios sobem sem parar. Nos meses seguintes, o esforço dos ribeirinhos é concentrado em salvar os animais. Às vezes é preciso usar a própria casa para não perder a criação, mas o principal recurso dos ribeirinhos na na época das enchentes é uma construção de madeira, um curral suspenso chamado maromba, uma tábua de salvação onde os animais ficam confinados. O sacrifício é grande, mas renova a esperança de que os animais sobrevivam até a água baixar.
A maromba ou palafita, como é conhecida na Amazônia é um estrado construído de madeira tendo como pilares troncos de madeira-de-lei para dar suporte à estrutura da construção. Em cima desse estrado são construídos a casa e os currais para receber pessoas e animais durante a cheia dos rios.
¹⁵ Caboclo, segundo o dicionário Houaiss (2009), é “o indivíduo nascido de índia e branco (ou vice-versa), de pele acobreada e cabelos negros e lisos”, como também o “caipira”. No Norte do Brasil a palavra “caboclo” está ligada ao homem do campo e dos rios. Muitas vezes colocada de forma pejorativa e preconceituosa da herança europeia.
¹⁶ Restinga: termo utilizado para definir as diferentes formações vegetais estabelecidas sobre solos arenosos que ocorrem na região da planície costeira.
¹⁷ Jaticá: arpão de comprida haste, usado na pesca da tartaruga.
¹⁸ Matupá: termo da língua tupi, que designa uma grande massa de vegetal flutuante ou segmento de barranco que, devido à ação erosiva, se desprende e fica boiando e deslocando-se sobre as águas de um rio. É um fenômeno comum nos rios da região amazônica.
¹⁹ Aninga ou envira: na região amazônica, planta da família das aráceas, que esculpida serve como barquinhos que bóiam nos rios.
²⁰ Chibé ou jacuba: espécie de papa de farinha com água, que pode ser consumida sozinha, ou serve de acompanhamento para o peixe.
²¹ Jutal (masc.): plantação de jutas.
²² Jangal (fem.): palavra muito comum na expressão "a jangal amazônica", no sentido de floresta tropical da Amazônia.
Falando sobre o surgimento e o desenvolvimento de Paragominas, [ANDRADE apud Barreto, 2012, 304] assim se referiu:
"(...) A história de Paragominas é mais ou menos a de tantas outras: em 1959, imperava ali a jangal amazônica; em 1960, com a trilha pioneira sangrada, instala-se ali uma serraria, destinada a fornecer madeira para as pontes provisórias da estrada. Quase que ao mesmo tempo, chega a ela o primeiro fazendeiro: um mineiro jovem de Uberaba (...) Antônio Fernandes declara-se engenheiro para a caboclada que toma conta das balsas, cruza o Tocantins, e instala-se nas terras férteis que cercam a serraria. (...) Em breve, chegam outros: do Pará, de Goiás e de Minas [dando o nome à cidade]: Paragominas. (...)"
²³ Canarana: cana brava, planta gramínea.
²⁴ Espinhel: aparelho de pesca que consiste numa corda comprida ao longo da qual são fixadas, de distância em distância, linhas munidas de anzóis. O mesmo que espinel e espichel.
²⁵ Sur: corruptela de sul.
²⁶ Cuisa incantada: "coisas encantadas", que foram objeto de encantamento ou feitiço.
²⁷ Irapuru ou uirapuru: nome popular de uma ave, o mesmo que uirapuru-verdadeiro. É muito famosa por seu canto melodioso e agradável, considerado um dos mais belos da floresta. Muitos a consideram a ave mais canora do Brasil.
²⁸ Buto ou boto: mamífero cetáceo da família dos delfinídeos encontrado tanto no mar, ao longo da costa brasileira, quanto nos rios da bacia amazônica. O olho de boto, seco, é considerado um ótimo amuleto para atrair o amor das mulheres indiferentes. Se o homem quiser conquistar uma mulher, dizem que ele deve olhar para ela através de um olho de boto. Desse modo, ela vai ficar perdidamente apaixonada.
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De fato, outros poetas brasileiros escreveram com maestria sobre algum quadro pitoresco das enchentes, dentre os quais aqui relembro Cecília Meirelles com o seu poema Enchente de matiz infantil e Thiago de Mello, este amazônida como Áureo Mello.
Em Amazonas: Pátria da Água, de 1980, o amazonense Thiago de Mello critica a modernidade racionalista e expansionista que acaba arrastando uma cosmovisão que separou homem e natureza e seu livro é um grito contra a destruição da jangal amazônica. É verdade que sua poesia está ancorada em uma paisagem que espelha a maior vegetação e o maior rio do mundo — respectivamente, a Amazônia e o Amazonas, — ameaçados, de fato, pelas incursões capitalistas. Em "As Tantas Águas da Água Amazônica", de 2009, o poeta produziu um belo poema, no qual, entretanto, a enchente é um fenômeno en passant na apresentação do quadro geral da importância da água para a sua região. Neste contexto, é a lei das águas que modula o viver das pessoas na Amazônia e suas relações com a a natureza e o imaginário social.
Bem diferente é a abordagem da enchente em Áureo Mello: ela é supra-real, é maravilha pura, dotada de vida e geradora de vida, uma entidade viva da floresta tropical, embora carregada de destruição muitas vezes, principalmente quando seus efeitos são muito duradouros e devastadores para a população ribeirinha, com seu empobrecimento e de consequências deletérias como a do êxodo social.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Rômulo de Paula: A Amazônia na Era do Desenvolvimento: Saúde, Alimentação e Meio Ambiente (1946-1966), tese de doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz, Rio de Janeiro, 2012, 364 p.
DOURADO, Gustavo: Brasília 5.0 - Antologia de Cordel, Brasília: Art Letras, 2010, 352 p.
9 comentários:
Tive o prazer de conhecer o Senador e escritor ÁUREO MELLO em 1987 na companhia do Deputado José Barbosa, natural de Cajuru-SP, quando trabalhávamos para a Administração de Rondônia, dirigida pelo governador Jerônimo Santana, o "Bengala", natural de Jataí-GO. Em nossas reuniões, sempre mostrava vivo interesse em nosso trabalho, pois era um dos apoiadores do governador e amigo pessoal de José Barbosa.
Mais tarde, Áureo e eu víamo-nos com frequência na "Casa do Poeta Brasileiro-Seção de Brasília-DF", da qual era sócio-fundador e seu vice-presidente. Naquelas alegres reuniões, costumávamos pedir-lhe que declamasse "aquele" seu longo poema. Estou ainda a vê-lo enchendo de lágrimas os nossos olhos, declamando sua "POESIA DA ENCHENTE".
Áureo Mello faleceu em 21/01/2015, deixando-nos com enorme saudade.
Em abril de 2010, o escritor Gustavo Dourado homenageou-o em seu livro Brasília 5.0 - Antologia de Cordel, destacando em cordel, nesse seu trabalho primoroso, a figura de Áureo Mello nas letras nacionais.
Caro leitor,
Receba, portanto, esta homenagem que também o Blog de São João del-Rei presta a esse grande poeta amazônida.
Breve biografia do escritor ÁUREO MELLO
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/05/colaborador-aureo-mello.html
POESIA DA ENCHENTE, acompanhada de minha breve análise literária
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/05/a-poesia-da-enchente.html
Cordial abraço,
Francisco José dos Santos Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Meu amado,
Que beleza que ficou seu artigo sobre a "Poesia da Enchente" do escritor Áureo Mello. Que coisa meu Deus!
Eu me lembro dele.
Eu admirava aquele homem corpulento, como ele conseguia falar durante um tempão recitando sobre a enchente que vinha lavando os barrancos da beira do rio e arrastando tudo pela frente. Ficava eu me imaginando lá me agarrando às raízes das árvores, vivenciando aquele fenômeno da natureza.
Quantos anos depois, aquele mundaréu de água se repetindo novamente! E você agora me surpreende com o saudoso Áureo aqui e agora.
Parabéns, meu amado!
Tempo bom aquele que vivemos em Brasília e pudemos privar com aquele pessoal tão ilustrado e feliz. Festa da novela O CLONE: 2002. Léa Sayão. Festa linda, na qual se fez um break e silêncio profundo para a Enchente chegar com tudo.
Kkkkkk e eu lá bem no meio da Enchente. Na Amazônia.
Olá, Francisco e Rute.
Obrigado pela bela poesia de Áureo Mello! Viva a linguagem poética, que é muito querida pelo povo Brasileiro! Paz e Bem!! f. Joel.
Dr. Francisco,
Paz, saúde e alegria!
Li e reli - A Poesia da Enchente, de autoria do deputado Áureo Melo.
Dr. Francisco, sua tão precisa análise literária, mostrando os regionalismos lexicais e semânticos amazonenses, é um presente para nós. Além do glossário com o qual nos premiou, muito me ajudou na compreensão do poema.
Que riqueza é a cultura do nosso país!
Parabéns e gratidão por suas ótimas postagens no seu blog.
Abraços extensivos a nossa querida Rute.
Merania
Caro professor Braga;
Cenográfica e vibrante poesia que traz de forma genial a força de um dos mais impressionantes fenômenos da natureza. Em paralelo, uma aula do léxico local. Valiosa publicação!
Grato.
Cupertino
Mestre Francisco Braga, conheci e fui amigo do poeta e senador Áureo Mello.
Parabéns pela sua homenagem a ele, de muito saudosa memória.
Vou mandar para amigos.
Abraço do Danilo Gomes.
Obrigada, Francisco, pela belíssima poesia! Só hoje tive tempo para lê-la, me senti nas margens do Rio Amazonas. Eu já vi as enchentes por lá, já viajei no Amazonas e pude, com saudade, relembrar esses momentos.
Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, diplomado em Direito, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, de Valença RJ, Membro da Academia Valenciana de Letras, entre outras instituições fluminenses e mineiras, disse:
Caro amigo Braga
Parabéns pela sua brilhante iniciativa em homenagear e divulgar esta importante obra de Áureo Mello, através de sua cativante “Poesia da Enchente”!
Trata-se de uma bela composição de refinada linguagem poética, repleta de inspiração e musicalidade frasal que revela, além da alma aflita do caboclo amazonense, a tristeza, a angústia, e a desesperança de um povo ribeirinho, diante das enchentes do Rio Amazonas.
Eu e Beth agradecemos, sensibilizados, pela gentileza do envio.
Abraços, do amigo Mario Cupello.
Recebido e agradecido.
Pe. Sílvio
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