O mais lido e aclamado poeta português, na transição do século XIX para o século XX, desencadeou as maiores polémicas religiosas e políticas. Apesar de todas as consagrações, deixou de ter a projeção literária que em tempos lhe foi atribuída (artigo publicado originalmente n' A Revista do Expresso, edição de 9/7/2023, com o título “Centenário de Guerra Junqueiro: de poeta cantado a ilustre desconhecido”)
Guerra Junqueiro (1850-1923) |
Cem anos depois da morte de Guerra Junqueiro, glorificado no Panteão Nacional, será possível recuperar a leitura da sua obra, tal como se verificou durante décadas? Os livros de português no ensino secundário ainda reproduzem poemas de Junqueiro? Tanto quanto se pode avaliar, o culto de Junqueiro (1850-1923) circunscreve-se às manifestações que decorrem na sua terra natal, Freixo de Espada à Cinta. Deixou de ter a amplitude que o situava na mais elevada dimensão nacional, embora neste centenário sejam várias as iniciativas que ajudam a recordá-lo. A partir de hoje, data da morte do escritor, e até julho do próximo ano, Freixo de Espada à Cinta, Porto, Lisboa e Viana do Castelo — à cidade onde nasceu juntam-se aquelas em que desenvolveu o seu trabalho — acolhem um conjunto de exposições, palestras, atividades educativas e concertos.
A partir de 1915, a geração que lançou a revista “Orpheu” — Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Alfredo Guisado — abriu novos caminhos na literatura, em especial na poesia. Em relação ao passado próximo, elegeu Antero, Gomes Leal e Cesário Verde entre os poetas preferidos. Outros nomes do século XIX e XX também deixaram de ter o reconhecimento que lhes era dispensado.
Junqueiro faleceu a 7 de julho de 1923, em Lisboa, na casa da filha Maria Isabel, em Campo de Ourique. Vivia-se um dos anos mais turbulentos da Primeira República. Assistia-se a uma “balbúrdia sanguinolenta”, conforme Eça de Queirós vaticinara no “In Memoriam”, de Antero (1896), a propósito dos efeitos da implantação da República em Portugal. Entre numerosos casos insólitos, que provocaram sobressalto, a 22 de maio era morto a tiro, no cemitério dos Prazeres, um gerente da Companhia União Fabril (CUF), durante o funeral do conde de Sabugosa, o último representante do grupo Vencidos da Vida, do qual Guerra Junqueiro fizera parte.
Os atentados eram consecutivos. No dia da morte de Junqueiro, à saída do Tribunal de Defesa Social, arremessaram três bombas a três juízes, que ficaram gravemente feridos. A falta de alimentos essenciais, como o pão, provocava greves impulsionadas pela Confederação Geral do Trabalho. Predominava a inquietação, o medo e o pânico. Cunha Leal, que já pedira a pena de morte por ocasião da “noite sangrenta” de 19 de outubro de 1921, voltou a apelar, numa conferência na Sociedade de Geografia, para a intervenção urgente da Força Armada, a fim de repor a ordem pública e a estabilidade social.
UM GÉNIO NO PANTEÃO
As exéquias de Junqueiro realizaram-se na Basílica da Estrela. O funeral seguiu diretamente para os Jerónimos, na altura Panteão Nacional. Ficou no espaço nobre da Sala do Capítulo, onde já estavam Herculano e Garrett. O Governo — com o apoio do Presidente da República António José de Almeida — pagou as despesas da trasladação e determinou, em decreto-lei, que os funerais fossem nacionais. O cerimonial — que se prolongou durante cerca de uma semana — constituiu uma apoteose cívica e cultural, enquanto era enterrado na maior obscuridade Basílio Teles, um dos principais ideólogos da República.
Sepultado com todas as honras, Guerra Junqueiro continuava a ser classificado um génio, não obstante as polémicas religiosas, políticas e literárias que desencadeou. Assim apareceu nas primeiras páginas dos grandes jornais e nos depoimentos de personalidades com a responsabilidade de Teixeira de Pascoaes:
“Guerra Junqueiro é um poeta genial. A sua lira é feita do mesmo ouro que a de Apolo. A luz ri nas suas sátiras, mais belas do que as de Juvenal. Este poeta é o Sol. Nenhum outro encarnou assim a natureza no seu milagre deslumbrador e criador.”
“Não existe, em literatura alguma, paralelo que se lhe compare.”
O renome de Junqueiro acentuou-se, em 1885, em “A Velhice do Padre Eterno”. A crítica indignada do padre Sena Freitas concorreu para numerosas reedições entre nós e no Brasil. Nunca houve em Portugal uma acusação tão virulenta contra a Igreja Católica. Deu lugar a uma polémica interminável. Atingiu a Igreja Católica desde as mais altas hierarquias até ao pároco de aldeia.
Contudo, Junqueiro nunca pôs em causa a existência de Deus nem a figura de Cristo. Num poema incluído na própria “Velhice do Padre Eterno”, confessou, sem margem para equívocos:
“Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal. [...] Sim, creio que depois do derradeiro sono,/ há de haver uma treva e há de haver uma luz...”
“Hoje, padre é melhor que ser doutor. [...] Quando o abade morrer hás de vir para cá./ Despacha-te o doutor nas Cortes: quando não/ votamos contra ele, e foi-se a eleição. [...] Toca para o seminário. Eu quero ir para a cova/ só depois de te ouvir cantar a missa nova.”
POETA DE CAUSAS
As questões políticas e sociais mobilizaram, sempre, a atenção de Junqueiro. Foi um poeta de causas de interesse público. Enumeramos, por exemplo: “A Vitória da França”, sobre a República em França (1870); “A Espanha Livre”, acerca da instauração da República em Espanha (1873); “A Fome no Ceará”, um dos grandes flagelos no Brasil; “A Lágrima”, por ocasião do incêndio do Teatro Baquet, no Porto; e, ainda, “O Crime”, contestação ao ministro da Justiça do assassínio a um militar. “Contra o braço da forca e contra a guilhotina,/ eu que proscrevo o algoz, eu exigi-lo-ei/ para enforcar somente esse bandido — a Lei.”
Integram-se, neste contexto, “Finis Patriae” (1890) e, sobretudo, “Pátria” (1896). Basta citar que uma tiragem de 6000 exemplares — caso sem precedentes em Portugal — vendeu-se em cinco dias. No “Pátria” arrasou com ferocidade a dinastia de Bragança. D. Pedro V foi a exceção. Despedaçou o rei D. Carlos, a corte que o rodeava, os chefes dos partidos que permaneciam à frente das instituições. Protagonista e espectador dos acontecimentos quotidianos, Junqueiro interveio nas guerras e nas guerrilhas que agitaram o país, tais como o Ultimato de 1890 e a Revolução Republicana de 31 de janeiro. Tudo quanto precipitou o fim da Monarquia e acelerou a instauração da República.
Elogiou inclusive o regicídio.
“Lamento de olhos enxutos” — e citamos para não haver dúvidas — “a execução do monarca. Mas se tivesse o dom de o ressuscitar não o levantava do túmulo. Deploro angustioso a morte do príncipe. E diante dos cadáveres dos homicidas descubro-me ajoelhado, com lágrimas de piedade, e, porque não hei de confessá-lo, de adoração e carinho.”
Cumpria-se o vaticínio de Antero de Quental, numa carta de agosto de 1874 a Oliveira Martins, da qual resumimos o seguinte passo:
“Estou curiosíssimo por saber o que você dirá de Guerra Junqueiro e de ‘A Morte de D. João’. Mas que admiráveis páginas! Há de fazer-se daquele rapaz um grande poeta — nos limites em que hoje se pode ser grande poeta —, um eco vibrante das grandes ideias do nosso tempo.”
REAÇÕES CRÍTICAS
Esta circunstância não impediu que, na “Revista Portugal”, dirigida por Eça de Queirós, o crítico mais arguto da Geração de 70, Moniz Barreto (1863-1896), prematuramente falecido, sem dissecar as controvérsias políticas e religiosas, se ocupasse de Guerra Junqueiro, no âmbito estritamente literário, contrariando a unanimidade de opinião que predominava. Assinalou
“os recursos da expressão, a sumptuosidade e o vigor da frase, a sábia gradação dos efeitos, a arte consumada de formular, intimar, ornar e lançar à circulação um tema poético”.
“Um vocabulário escolhido e nobre, uma adjetivação abundante e nova, uma sintaxe regular e ampla” constituem “o segredo do seu prestígio”.
Para concluir categoricamente: Junqueiro é
“muito mais orador do que poeta. Tem muito mais eloquência do que imaginação”. (“Revista Portugal”, nº 1, 1889)
Intelectuais quer da “Seara Nova” quer do “Integralismo Lusitano” formularam críticas à obra e à personalidade de Junqueiro. Lopes de Oliveira (1881-1971), biógrafo e memorialista de Junqueiro, reagiu:
“Trata-se de um ataque dos zoilos, mais ou menos obscuros, mas todos horríveis e despeitados versejadores. Desenvolvia-se uma reação obscurantista, à conta da defesa da religião. Não só se acusava o ateísmo (de Junqueiro), mas descia-se à calúnia sobre a vida pública e particular.”
CENTENÁRIO NO SALAZARISMO
O ano de 1949 não apagará os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no plano interno, os movimentos democráticos em torno da candidatura presidencial de Norton de Matos. A oposição encontrava-se retalhada. A PIDE multiplicava as prisões em todo o país. Aproximava-se, a 15 de setembro de 1950, a homenagem devida a Guerra Junqueiro.
Egas Moniz proferiu, a 14 de outubro de 1949, uma conferência no salão de festas do Coliseu do Porto na qual propôs:
“Estamos no limiar do centenário do poeta, que passa no próximo ano de 1950. Homenagem de gratidão lhe deve ser tributada, em todo o país, mas deve partir a iniciativa dos homens de letras do Porto, para que tenha maior retumbância por esse Portugal além. Em cada cidade, em cada vila, em cada aldeia, sejam lidos os seus versos. Deram-me o feliz ensejo de dar o sinal de alvorada, poucos meses antes da comemoração de um dos maiores poetas.”
“Tem sido em Portugal, no Brasil, na própria Espanha, o pai espiritual de algumas gerações de poetas.”
“TROVOADA DE LATA”
Mesmo em cima da morte, do funeral, da tumulização de Junqueiro no Panteão Nacional, Raul Proença (1884-1941), sem deixar de enaltecer méritos ao poeta, teve a coragem de contestar o génio de Junqueiro (“Seara Nova”, julho de 1923). Observou ele:
“Falta-nos o sentimento da medida, a rigorosa disciplina das qualificações. Toda a nossa crítica se encerra nos dois termos antinómicos dum dilema: a apoteose ou a descompostura. Resvalamos sempre sobre um plano inclinado: deixamo-nos ir à mercê do impulso laudativo ou pejorativo. [...] Sem a mínima preocupação de fazer restrições, de ver os defeitos ou as qualidades daquilo que se elogia ou se censura. Não há por isso crítica em Portugal.”
“Junqueiro ocupa apenas um dos primeiros postos entre os nossos escritores de segunda ordem. Mais direito do que ele entrar nos Jerónimos têm certamente Eça de Queirós e Antero — de primeiro plano, esses, sem dúvida. O tempo se encarregará de pôr os homens e as coisas nos seus lugares, quando se fizer a distância que permitirá avultar os gigantes, a reduzir os que não foram à sua exata proporção.”
É evidente que, mais do que previa Raul Proença em 1923, deixou Guerra Junqueiro de ter a projeção literária que em tempos lhe foi atribuída. Perdura, contudo, a veemência do inconformismo e do protesto, que ganha atualidade perante a degradação política e social que se tem intensificado nos dias que vivemos, e de forma preocupante.
* Jornalista - sócio efetivo da Academia das Ciéncias de Lisboa.
AGRADECIMENTO
6 comentários:
Prezad@,
GUERRA JUNQUEIRO (1850-1923) foi o poeta português não só mais lido e mais aclamado na transição do século XIX para o século XX, mas também o que mais desencadeou polêmicas religiosas e políticas. Unamuno chegou a dizer que Junqueiro "foi um dos maiores do mundo".
Junqueiro faleceu a 7 de julho de 1923, em Lisboa; portanto, Portugal comemorou em 7/7/2023 o centenário de sua morte que se estenderá até 2024.
Neste artigo, publicado por ocasião do centenário da morte do poeta n'A Revista do Expresso, ANTÓNIO VALDEMAR analisa as razões por que, apesar de todas as consagrações, o poeta português deixou de ter a projeção literária que em tempos lhe foi atribuída.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/07/o-que-resta-de-guerra-junqueiro-100.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Obrigado, Francisco. Pena que produções desse autor não figuravam no Florilégio Nacional, coletânea de textos e poesias que usávamos no seminário. Pelo menos, não me recordo.
Bom dia, Francisco e Rute. Muito obrigado pelas suas informações sobre este poeta interessante GUERRA JUNQUEIRA.
Bem, desejo tudo de bom para vocês na sua caminhada, sempre vivendo a serviço de um mundo melhor, que é possível! Grande abraço. f. Joel.
Belíssimo o texto do Antônio Valdemar.
Obrigadod a você e ao António Valdemar. Vou ler com a merecida atenção, mesmo porque Guerra Junqueiro foi e continua sendo, de fato e de direito, um de nossos maiores poetas.
Obrigado. Gosto muito dos poemas dele.
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