Antigamente Knut Hamsun escrevia esplêndidos romances sobre tormentos de amor e corações mal compreendidos, entre rochedos e pinheiros. Na sua velhice o grande escritor transformou-se em politiqueiro. Traiu a Vitória por Hitler. Substituiu Pan, o deus da natureza, por Wotan, o deus da guerra dos antigos germanos, sedento de sangue para os sacrifícios. Este escritor, gozando de reputação mundial ¹, colocou-se na posição de um êmulo de Goebbels. Hamsun odeia a União Soviética, e a fim de denegrir nosso país, chega a ponto de glorificar até a Antiga Rússia. Mas Hamsun nunca conheceu ou compreendeu a Rússia. Muito antes da revolução, passou alguns dias em Moscou e uma semana no Cáucaso. Depois dessa viagem, publicou um livro absurdo: "No País das Fadas". O livro não conta nada sobre a Rússia, mas fala muito de Hamsun.
Hoje Hamsun escreve:
"Na antiga Rússia o povo divertia-se. Podia-se dizer que a vida transcorria serena como um sonho poético."
Vejamos seu livro "No País das Fadas".
Em Moscou, Hamsun conheceu especialmente os clubes noturnos. Nesses pontos de reunião, comeu muito e especialmente bebeu. Esta última observação explica o caráter fantástico de suas notas:
"O restaurante... Inclino-me diante de todos e tiro meu enorme passaporte. Mas ninguém compreende isto... Os garçons tratam-me por "Vossa Excelência"...
De repente, sem razão alguma, dirijo-me ao ícone e faço o sinal da cruz... Começo a cantarolar..."
Provavelmente foi esse o divertimento que Hamsun recordou quando escreveu:
"Na antiga Rússia o povo divertia-se."
Há também a seguinte cena no livro:
"O oficial faz um gesto de comando com a mão - Alto! E os camponeses pararam. Aparentemente ele é o seu senhor. Pertencer-lhe-á esta aldeia?... Uma vez, quando a multidão ameaçadora perseguia Nicolau I através das ruas de Petersburgo, ele gritou enfurecido para o povo:
- Ajoelhem-se!
E a multidão caiu de joelhos."
Partindo desse ponto, Hamsun tenta justificar a escravidão.
"Napoleão era obedecido com entusiasmo. A obediência é um prazer. E o povo russo ainda é capaz disso."
Hamsun satisfez-se com uma imitação de Napoleão. Experimenta um sentimento de "prazer" quando encontra a polícia germânica — com a idade de oitenta e dois anos, ainda cai de joelhos. Hamsun exaspera-se contra a Rússia. Por que razão o povo russo não suspende o passo quando o cabo tirolês grita: "Alto"?
Hamsun glorifica a "nova ordem", isto é, a sujeição de todo o mundo à Alemanha. Chama a Inglaterra de "nação preguiçosa e covarde", e os Estados Unidos de "o país do bluff" ². O escritor Hamsun deixou de existir; em seu lugar surgiu um insignificante plagiário de Goebbels.
Todos os que visitaram a Noruega sabem das nobres qualidade do povo norueguês. A luta constante contra uma natureza hostil desenvolveu no povo o espírito da fortaleza. Lá os homens vivem a milhas de distância uns dos outros. Duas casas vizinhas são separadas por montanhas. Talvez seja por isso que os noruegueses respeitam os seus semelhantes. Dão valor à amizade e admiram a lealdade. Desde dias longínquos vêm cultivando o amor pelo mais caro de todos os bens: a liberdade. Os invasores não encontraram entre os noruegueses homens prontos a servi-los, corrompidos por uma vida fácil e prontos a qualquer "colaboração". O nome de Quisling vive coberto de desprezo. E agora este velho escritor, que deve sua fama ao seu país, à sua beleza, aos seus costumes, ao seu povo, vendeu-se a uma nação inimiga.
Os alemães condenaram os noruegueses à extinção. Basta lembrar que receberam menos de seis onças e meia de pão por dia. Antes da guerra, as prisões da Noruega viviam às moscas. Presentemente não há mais lugar para os encarcerados. Cortes militares condenam homens valorosos ao fuzilamento. Mas, apesar disso, os noruegueses não se dão por vencidos.
As ilhas Lofoten, antes apenas famosas pela pesca de bacalhau nas tempestades de verão, tornaram-se o núcleo nacional de resistência. Os guerrilheiros de Larsen estão exterminando os destacamentos germânicos.
Hamsun, o mundialmente famoso escritor, e Larsen, o modesto norueguês, trilham diferentes caminhos. Um preferiu a traição, o louvor de Goebbels, à lealdade devida ao seu país natal. O outro escolheu o caminho de pedras, de luta e do heroísmo.
Quando um gigolô de certos bairros de Marselha se alista na legião de Hitler, ninguém quebra a cabeça para compreender as razões que a isso o induziram; uma carabina resolve a questão. Mas como pode um escritor famoso, um velho, desmoralizar-se para justificar o saque, glorificar os carrascos, entregando-se ele próprio à traição? Achamos resposta para isso na biografia espiritual de Hamsun. Seu entusiasmo por Nicolau I não é acidental. Este revoltado há muito que se sente atraído à submissão e à genuflexão. Sempre odiou o progresso, e Hitler lhe apareceu como um policial místico, capaz de fazer parar a marcha da história.
Certamente, uma longa distância separa o encantamento de turista de Hamsun do fosso repleto de cadáveres perto de Kerch, ou do patíbulo em Volokolamsk. Mas o velho escritor considera os SS como seus sucessores. Abençoa-os quando partem para a pilhagem e para o crime. Que significa o fascismo para Hamsun?
Antes de mais nada, a revolta contra o progresso, o reinado das forças das trevas contra a razão, a coalisão de homens que não possuem tradições verdadeiras e que com justiça podem ser chamados os bastardos da história.
Os fascistas surgiram na arena amaldiçoando o futuro. Costumavam falar sobre a beleza do passado, mas ao galgar o poder, destruíram as grandes tradições. Que copiou Hitler do passado? Algumas superstições, o chapéu alto dos carrascos e os instrumentos de tortura de Nuremberg. Os fascistas não se limitam a matar os escritores; destróem-lhes também os livros. Todos nos lembramos das fogueiras de Berlim, onde dezenas de milhares de volumes foram queimados. Em Paris os alemães incluíram dois mil livros na lista Otto de livros condenados.
Destruíram o monumento a Chopin em Cracóvia, puseram abaixo o monumento a Voltaire e Rousseau em Paris, profanaram Iásnaia Poliána ³. Não foram manifestações esporádicas da soldadesca; foram destruições sistemáticas do passado. Somente na França os hitleristas destruíram trezentos monumentos de arte, entre os quais monumentos arquitetônicos, como o castelo d'Amboise. Pode-se a isso acrescentar a biblioteca de Louvain, a catedral de Conventry, a Abadia de Westminster, os museus de Londres, os templos da Grécia, a nossa Istra, Smolensk, Novgorod.
Como se pode explicar esse vandalismo deliberado? Para aqueles que odeiam o futuro da humanidade, o passado da raça humana também é odioso. Os fascistas surgiram como a negação do século XIX. Os frequentadores das cervejarias de Berlim consideravam esse século como uma "decepção". Mas, recuando ainda, chegando ao século XVIII, também não podem deixar de considerá-lo uma "decepção", porque este foi o século dos Enciclopedistas e da Revolução Francesa. No século XVII há o trabalho dos humanistas que os perturba. Às vezes ouve-se dizer que o fascismo é a ressurreição da Idade Média. É uma afirmação errônea, um insulto aos nossos remotos ancestrais! Havia muitas coisas que os homens da era medieval ignoravam, mas que procuravam saber. Os poemas épicos e as catedrais góticas são a enciclopédia dessa época e evidenciam a sua sede de conhecimento do mundo. Contrastando com esse desejo de saber, o fascismo é uma negação do conhecimento e com isso coloca-se fora da história.
Por que estão todas as forças espirituais da humanidade unidas na luta contra o fascismo? O mundo ideado por Wells difere inteiramente do mundo ideado por um escritor soviético. Diferentes são os caminhos percorridos pelo filósofo católico Maritain e por Einstein. O físico Langevain e Hemingway vivem em mundos diferentes; mas nenhum deles concebe um progresso da humanidade que fuja às tradições, à herança cultural. Podemos dizer, sem o intuito de vangloriar-nos, que nossa pátria em muitos sentidos ultrapassou os outros países. Preocupamo-nos com o futuro; é o ar que respiramos. E é exatamente por isso que não renunciamos ao passado. Quem é que não bebeu nas fontes da Hélade, da Renascença, ou do século luz, que foi o século XIX? É o que nos aproxima de Wells, de Maritain, de Hemingway, de Langevain, de Einstein e de toda a humanidade pensante. Tudo que é grande exige continuação. Tendo compreendido a grandiosidade do passado, é impossível renunciar ao avanço criador.
Marx não poderia existir sem os Enciclopedistas; nem Rodin sem a Grécia; Shostakovich sem Beethoven; Hemingway sem Tolstói.
É essa a razão por que os fascistas negam a inteligência. Na gigantesca prisão criada por Hitler, as trevas são compulsórias. Os historiadores denominarão os anos das fáceis vitórias de Hitler de eclipse da Europa. Os fascistas temem os representantes do pensamento, sobre cujos rostos brilha a luz da inteligência — seja do pensamento criador, ou do reflexo fosforescente do passado. Nem por um instante o fascismo se deteve ante uma inteligência real. No plano cultural o hitlerismo representou a rebelião da escória social, dos fracassados, dos sabichões, dos vagabundos intelectuais, dos filisteus que odeiam com alma todas as manifestações do pensamento vivo.
Trágica foi a vida dos escritores da antiga geração que ingressaram no campo literário ao mesmo tempo que Hamsun. Eles foram ou atormentados pelo espectro da morte ou aniquilados pelo fascismo. Thomas Mann e Heinrich Mann estão no exílio. Stephan Zweig suicidou-se. Roman Rolland silenciou — cabos do exército alemão moram em sua casa ⁴. Roger Martin du Gard também silenciou. Os alemães queimaram os livros de Duhamel e confiscaram seus manuscritos. Antonio Machado, grande poeta espanhol, morreu na fronteira, quando tentava fugir aos invasores fascistas. Unamuno amaldiçoou o fascismo no seu leito de morte. Os túmulos dos mortos, o silêncio forçado dos vivos — é esta a resposta a Hamsun. Ele não traiu somente seu país. Traiu também o mundo intelectual, o mundo do pensamento.
A geração de escritores que se seguiu também não aceitou o fascismo. Rot morreu em país estrangeiro. Toller matou-se. Remarque, Renn Deblin, Brecht, Werfel, Seegers e Frank estão no exílio. Maurois, Maritain e Bernanos deixaram a França corridos do hitlerismo. Malraux e Mauriac foram condenados ao silêncio. O poeta polonês Tuwim, o escritor espanhol Bergamín, e Alberto Moravia, o melhor romancista italiano, estão na América. Os escritores tchecos estão amordaçados. O escritor norueguês, Nordahl Grieg, está na Inglaterra com outros noruegueses, lutando contra a Alemanha.
Esta lista poderia alongar-se muito. Podia-se falar sobre o destino dos artistas e compositores. Descrever a angústia do famoso e já velho paisagista Marke, ou a do renomado químico Pérain, ambos vivendo na França ocupada. Mas como condensar a martirologia do pensamento europeu nas colunas de um jornal?
Hitler apossou-se de mais de dez países e em toda a Europa só encontrou um apologista — o velho Hamsun. Nós, não queimaremos os romances de Hamsun. Não discutiremos o seu talento literário. O escritor Hamsun há muito deixou de viver. Quanto aos seus artigos fascistas, até mesmo Goebbels escreve melhor. Nem milhares de tanques, nem os cabelos brancos do ex-escritor, desgraçados pela sua traição, defenderão o fascismo.
A apostasia de Hamsun servirá apenas para aproximar ainda mais os intelectuais progressistas ⁵ em sua luta contra o fascismo. Compreendemos a razão pela qual os povos dos dois hemisférios volvem os olhos esperançados para o Exército Vermelho. Compreendemos os sentimentos que impelem os cientistas, os escritores, os artistas da Europa e da América, a saudar nosso povo ⁶. Nos campos da Rússia defendemos os valores culturais, o passado da humanidade e seus poderes criadores. O progresso é uma corrida em que os corredores são gradualmente substituídos. Não é uma corrida fácil. A história conheceu a invasão dos vândalos, as fogueiras da Inquisição, o fanatismo estúpido e efêmero dos déspotas. Entretanto, em cada novo posto de substituição, a geração seguinte recebe a mensagem das mãos ensanguentadas dos homens de pensamento, mensagem de sabedoria e de luz. Avançamos sob o fogo e sob o fogo expulsamos a grande invasão das trevas. Muito perderemos nesta luta, mas havemos de salvaguardar para a nova geração a força do pensamento, a luz, a consciência da humanidade.
21 de março de 1942.
Artigo no jornal "Estrela Vermelha" (Красная звезда)
Fonte: EHRENBURG, Ilyá: A EPOPEIA RUSSA: Diário de um jornalista junto ao Exército Soviético, São Paulo: Editora Brasiliense Ltda (obra “impressa nas oficinas da Empresa Gráfica da "Revista dos Tribunais" Ltda., à rua Conde de Sarzedas, 38”), 1946, 372 p.
NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga
¹ Seu romance “Os Frutos da Terra” rendeu a Hamsun o Nobel de Literatura em 1920.
² Hamsun chama os EUA de "o país do blefe".
³ Casa de campo do escritor Leon Tolstói, localizada a 12 km sudoeste de Tula e 200 km de Moscou. Atualmente é patrimônio histórico (museu).
⁴ Em 1943, correu a notícia de que morrera num campo de concentração.
⁵ Norberto Bobbio, in Dicionário Político, define o que entende sobre progresso: “A ideia de progresso pode ser definida como ideia de que o curso das coisas, especialmente da civilização, conta desde o início com um gradual crescimento do bem-estar ou da felicidade, com uma melhora do indivíduo e da humanidade, constituindo um movimento em direção a um objetivo desejável.”
O progresso é aí entendido como avanço científico, tecnológico, econômico e comunitário.
Portanto, para o filósofo e historiador do pensamento político, o que é Progressismo é a ideia de que a sociedade caminha constantemente em direção ao progresso material, moral e social.
O progresso é aí entendido como avanço científico, tecnológico, econômico e comunitário.
Portanto, para o filósofo e historiador do pensamento político, o que é Progressismo é a ideia de que a sociedade caminha constantemente em direção ao progresso material, moral e social.
⁶ Consta
que apenas a tomada de Berlim custou ao Exército Vermelho
aproximadamente 300.000 soldados, equivalente ao número de soldados
americanos mortos nas frentes europeia e japonesa, de 1941 a 1945.
4 comentários:
Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza do envio de “O Significado de uma traição” de autoria de Ylyá Ehrenburg.
Muito interessante! Apreciamos ler!
Grande abraço, meu e de Beth.
Mario P. Cupello
Prezad@,
Recentemente, o Blog de São João del-Rei publicou uma crônica de 1941, intitulada "A Guerra e a Literatura", por Temístocles Linhares, em que ele questionava sobre o efeito da guerra sobre a literatura. No presente momento, está publicando um artigo que apareceu na revista russa "Estrela Vermelha" em março de 1942, intitulado O SIGNIFICADO DE UMA TRAIÇÃO, por ILYÁ EHRENBURG (trecho do livro A EPOPEIA RUSSA de 1946), em que este mostra os malefícios de uma "colaboração" com o hitlerismo, tomando como exemplo o do escritor norueguês Knut Hamsun que, na sua velhice, deixou-se seduzir pelos discursos de Goebbels, caindo de joelhos em genuflexão diante da "nova ordem", isto é, a sujeição de todo o mundo à Alemanha.
Como bom propagandista, Ehrenburg lembra ao Ocidente que, quando convocado, o Exército Vermelho estará pronto para fazer oposição atroz ao Nazismo e ao Fascismo, como provou no cerco e rendição de Berlim pelos Aliados.
TEXTO
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/03/o-significado-de-uma-traicao.html 👈
BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/03/colaborador-ilya-ehrenburg-1891-1967.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Um texto para ser lido e meditado. Há sempre consequências nas escolhas na vida e história.
Abraço, amigo
Difícil acreditar que tudo isso aconteceu.
WINSTON CHURCHILL: ordena que tudo fosse filmado, documentado, pois um dia poderiam dizer que nada daquilo aconteceu.
E o fato que seu BLOG nos dá a conhecer em relação a Knut Hamsun , mais o que vemos atualmente (matanças, destruições...) nos lembra Jesus a dizer que o mundo jaz no maligno.
Que Deus nos ajude.
Hilma Ranauro.
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