Por Isabel Salema *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição de 24/03/2024, p. 27, da coluna Obituário: MAURIZIO POLLINI (1942-2024), indissociável do Scala de Milão, foi um dos maiores pianistas da segunda metade do século XX.Numa das suas passagens por Lisboa, em 2002, chamámos-lhe “uma lenda viva”. Viera interpretar na Fundação Gulbenkian obras de Chopin e Debussy, num concerto de celebração dos seus 60 anos, e concedeu-nos uma rara entrevista. O pianista italiano Maurizio Pollini, um músico a quem os outros músicos prestavam atenção, como apontava o Washington Post no seu obituário, morreu ontem aos 82 anos, em Milão.
A sua morte foi anunciada pelo Teatro alla Scala, onde actuou frequentemente: precisamente 168 vezes. O anúncio não especificava a causa, mas em 2022 já se vira obrigado a cancelar concertos devido a problemas cardíacos. Incluindo, à última hora e já com o público sentado na sala, aquele com que o Festival de Salzburgo pretendia celebrar os seus 80 anos.
Maurizio Pollini era “um dos grandes músicos do nosso tempo”, sublinhou o grande teatro de ópera de Milão, e uma referência fundamental na vida artística da instituição, nomeadamente na sua colaboração com o maestro Claudio Abbado (1933-2014), “destinada a marcar não só a história do espectáculo mas também a história cultural da cidade de Milão”.
“Acho que é um dos maiores pianistas do século XX”, disse ao PÚBLICO o pianista Nuno Vieira de Almeida. “Percebe-se tudo o que ele está a tentar fazer do ponto de vista estrutural, da arquitectura da música.” A música do romantismo, por exemplo, não fica entregue a uma inspiração do momento.
O seu virtuosismo, o domínio técnico, “é um meio para conseguir dar à obra as características de ambiente e de cor que ela tem”, explica. “O seu Chopin não é um Chopin de chá e torradas, mas um Chopin viril, inspirado, uma afirmação de vitalidade e inteligência. Desse ponto de vista, ele é admirável. Conseguia ser absolutamente claro. O rodriguinho do momento não ocorre a Pollini e acho que nós agradecemos.”
Foi um intérprete notável, sobretudo de Schumann, Chopin, Brahms, Beethoven e Schönberg, mas também, mais tardiamente, de Mozart, aponta Nuno Vieira de Almeida.
Na opinião de Pedro Burmester, desapareceu “uma das maiores referências da interpretação musical dos últimos 60 anos”, que o pianista português teve “a felicidade de ouvir muitas vezes ao vivo”. Pollini, explicou ao PÚBLICO, punha a sua “técnica prodigiosa” ao serviço “de uma leitura refinada, analítica e cosmopolita”. Foi um homem de repertórios diversos (de Beethoven a Boulez, de Chopin a Stockhausen), e também de um grande “engajamento político”, forjado na proximidade ao Partido Comunista Italiano.
Maurizio Pollini em Varsóvia em 1960 após vencer o Concurso Chopin de Varsóvia. | Fonte da imagem: picture-alliance/dpa |
“Protagonista absoluto da cena concertística internacional desde que venceu o Concurso Chopin de Varsóvia em 1960, aos 18 anos, foi um intérprete capaz de revolucionar a percepção de compositores como Chopin, Debussy e o próprio Beethoven, e de promover, com incansável dedicação, a escuta das vanguardas históricas, sobretudo Schönberg, e da música actual”, escreveu ainda o Scala acerca deste músico que deixa como herdeiro musical (e único filho) o pianista, compositor e maestro Daniele Pollini.
Precisamente com Daniele, lembrava ontem o presidente da Deutsche Grammophon, Clemens Trautmann, Maurizio revisitara Schubert recentemente. “É muito tocante que nos últimos anos tenha regressado às últimas cinco sonatas de Beethoven que em tempos lançaram os fundamentos da sua incrível obra discográfica”, salientou o editor no X (ex-Twitter), lembrando o Pollini “incansável das sessões de estúdio que deram origem a inúmeros álbuns icónicos”, mas também “a inspiração e a sensibilidade de uma alma calorosa e vulnerável”.
Música para todos
Maurizio Pollini nasceu em Milão a 5 de Fevereiro de 1942, no seio de uma família de artistas e intelectuais ligados ao modernismo italiano. Filho de Gino Pollini, um arquitecto racionalista, e também violinista, e de Renata Melotti, que tocava piano e era irmã do escultor Fausto Melotti, estudou na sua cidade natal, tendo-se licenciado no Conservatório de Milão em 1959. Estudou piano desde muito cedo, lembra o Scala na nota biográfica dedicada ao pianista, cujo corpo será velado em câmara ardente no próprio teatro milanês.
É lendária a frase de Arthur Rubinstein quando o ouviu no concurso de Varsóvia, aos 18 anos. “Tecnicamente, ele já toca melhor do que qualquer um de nós no júri.” Também o crítico musical italiano Piero Rattalino, conta o La Repubblica, terá ficado estupefacto ao vê-lo a interpretar Chopin: “Ou se torna o maior pianista do mundo ou acaba no manicómio!”
Esse domínio da técnica definiu a carreira de Maurizio Pollini: era o pianista “com a técnica perfeita, capaz de reproduzir a partitura como se de um espelho se tratasse”, escrevemos também no PÚBLICO em 2002, no artigo em que o crítico Rui Pereira antecipava o concerto da Gulbenkian.
Sobre as suas interpretações muito ancoradas na arquitectura da música, que alguns acusavam de ser demasiado cerebral, disse ao PÚBLICO, na entrevista conduzida por Cristina Fernandes, que não o preocupava o que escreviam sobre ele: “A minha aproximação à música é sempre global, no sentido em que todas as componentes contribuem para o todo. A arquitectura de uma peça é até um dos aspectos mais imediatos, mais óbvios, facilmente compreensível. Há muitos outros muito mais complexos de trabalhar, por exemplo, o carácter a dar a cada peça ou a cada secção. O que está para além das notas, das indicações da partitura, da estrutura, esse sim é o verdadeiro desafio.”
O século XX era um dos núcleos do seu repertório. A sua discografia, como mostra uma colecção da Deutsche Grammophon, estende-se de Mozart aos grandes mestres da actualidade. Era, além disso, um fervoroso defensor do papel da música na vida contemporânea, como expressou na mesma entrevista: “A cultura em geral, não só a música, deveria chegar a todos. Seria desejável uma vida musical muito mais alargada, até para dar possibilidades de trabalho a tantos jovens músicos talentosos. Há também uma necessidade de alargar o público através de novos repertórios, de programas mais imaginativos. Esperemos que isto não seja uma utopia, mas uma realidade no futuro.”
A revista especializada Gramophone sublinhava ontem que, embora o seu repertório se centrasse “na grande literatura romântica austro-alemã para piano” (Beethoven, Brahms, Schubert, Schumann, e também Chopin), Pollini “era um notável defensor da música moderna, interpretando frequentemente obras de Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez, Luigi Nono, Gianluca Cascioli, Giacomo Manzoni, George Benjamin e Salvatore Sciarrino, alguns apenas uma ou duas décadas mais velhos do que ele”.
A amizade com Luigi Nono, cuja militância comunista Pollini testemunhou de perto, e com Claudio Abbado, igualmente comprometido com a esquerda, levou-o a empenhar-se pessoalmente em acções de aproximação ao proletariado fortemente politizado da tumultuosa Itália das décadas de 60 e 70. Juntos, os três actuaram em fábricas e praças. E no próprio Scala, que dirigiu entre 1969 e 1986, Abbado “fez programas fracturantes e levou a cabo iniciativas maravilhosas, arriscadíssimas, dessas que agora não se vêem, mas que deveriam servir de exemplo para os responsáveis dos teatros e auditórios no futuro”, lembrava o pianista numa entrevista ao El País em 2021.
Nunca deixou, aliás, de ser de esquerda, traço que se inflamou particularmente nos anos em que Itália foi governada por Silvio Berlusconi. Considerava-o, como chegou a dizer ao The Guardian, nada menos do que “um ditador” em construção. com Inês Nadais
* Jornalista no jornal PÚBLICO desde a sua fundação em 1989, onde atualmente é Grande Repórter na secção de Cultura. Cobre maioritariamente assuntos ligados às artes visuais, arquitectura e política cultural. É formada em História de Arte.
BIBLIOGRAFIA
FERNANDES, Cristina: Maurizio Pollini: “O que está para além da notas, esse sim é o verdadeiro desafio do pianista”, entrevista de Maurizio Pollini ao jornal PÚBLICO em 25/03/2002, após uma passagem pela Fundação Gulbenkian, em Lisboa, onde interpretou peças de Chopin e Debussy, e publicada em 23/03/2024.
MONTANARI, Andrea: Il tributo di Milano a Maurizio Pollini, un minuto di silenzio alla Scala e la camera ardente in teatro. Chailly: “Perdiamo un interprete sommo”, publicado por La Repubblica em 23/03/2024.
PEREIRA, Rui: “Maurizio Pollini - músico intemporal”, digressão sobre a discografia de Maurizio Pollini, in PÚBLICO, em 23/03/2002.
TEATRO alla SCALA: tributo do alla SCALA ao pianista Maurizio Pollini que faleceu em 23/03/2024 aos 82 anos de idade. De 1958 ao seu último recital em Fevereiro de 2023, Pollini fez 168 performances naquele teatro.
Um comentário:
Prezad@,
MAURIZIO POLLINI (1942-2024) passou a ser chamado, por antonomásia, de "uma lenda viva" depois de ter passado por Portugal, onde atuou no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em três momentos: em 2002, interpretando Chopin e Debussy; em 2007, no âmbito do "Ciclo de piano", colocando em diálogo compositores frequentes na sua trajetória como Stockhausen, Schumann e Beethoven; e, finalmente, em 2009.
A jornalista ISABEL SALEMA, do jornal PÚBLICO, expressa bem o sentimento português da saudade e de reconhecimento àquele músico a quem os outros músicos prestavam atenção, como apontou The Washington Post, conforme ela destacou no Obituário de PÚBLICO, edição de 24/03/2024.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/04/maurizio-pollini-1942-2024-lenda-do.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Postar um comentário