quinta-feira, 11 de abril de 2024

O PROFETA


Por SAMUEL RAWET *
 
Extraído de Contos do Imigrante, de Samuel Rawet, livro de estreia do autor, publicado em 1956. Trata-se de uma coletânea de contos cujo tema principal é a figura do imigrante, aquele que abandona sua terra e ruma para outra fronteira, país ou continente, em geral por motivos políticos de guerra ou em busca de melhores condições de vida, e se vê diante de outra cultura e outra língua.
“A guerra o despojara de todas as ilusões anteriores e afirmara-lhe a precariedade do que antes era sólido. Só ficara intacta sua fé em Deus e na religião, tão arraigada, que mesmo nos transes mais amargos não conseguira expulsar. (Já o tentara, reconhecia, em vão.)”

Samuel Rawet (✰ Klimontów, Polônia, 1929- ✞ Brasília, 1984)
 

Todas as ilusões perdidas, só lhe restara mesmo aquele gesto. Suspenso já o passadiço, e tendo soado o último apito, o vapor levantaria a âncora. Olhou de novo os guindastes meneando fardos, os montes de minérios. Lá embaixo correrias e línguas estranhas. Pescoços estirados em gritos para os que o rodeavam no parapeito do convés. Lenços. De longe o buzinar de automóveis a denunciar a vida que continuava na cidade que estava agora abandonando. Pouco lhe importavam os olhares zombeteiros de alguns. Em outra ocasião sentir-se-ia magoado. Compreendera que a barba branca e o capotão além do joelho compunham uma figura estranha para eles. Acostumara-se. Agora mesmo ririam da magra figura toda negra, exceto o rosto, a barba e as mãos mais brancas ainda. Ninguém ousava, entretanto, o desafio com os olhos que impunham respeito e confiavam um certo ar majestoso ao conjunto. Relutou com os punhos trançados nas têmporas à fuga de seu interior da serenidade que até ali o trouxera. Ao apito surdo teve consciência plena da solidão em que mergulhava. O retorno, única saída que encontrara, afigurava-se-lhe vazio e inconseqüente. Pensou, no momento de hesitação, ter agido como criança. A idéia que se fora agigantando nos últimos tempos e que culminara com a sua presença no convés, tinha receio de vê-la esboroada no instante de dúvida. O medo da solidão aterrava-o mais pela experiência adquirida no contato diário com a morte. Em tempo ainda.

Desçam o passadiço, por favor, desçam!... 
 
A figura gorda da mulher a seu lado girou ao ouvir, ou ao julgar ouvir, as palavras do velho.
 
O senhor falou comigo?
 
Inútil. A barreira da língua, sabia-o, não lhe permitiria mais nada. O rosto da mulher desfigurou-se com a negativa e os olhos de súplica do velho. Com exceções, o recurso mesmo seria a mímica e isso lhe acentuaria a infantilidade que o dominava. Só então percebeu que murmurara a frase, e envergonhado fechou os olhos.
 
Minha mulher, meus filhos, meu genro. 
 
Aturdido mirava o grupo que ia abraçando e beijando, grupo estranho (mesmo o irmão e os primos, não fossem as fotografias remetidas antes ser-lhe-iam estranhos, também), e as lágrimas que então rolaram não eram de ternura, mas gratidão. Os mais velhos conhecera-os quando crianças. O próprio irmão havia trinta anos era pouco mais que um adolescente. Aqui se casara, tivera filhos e filhas, e casara a filha também. Nem recolhido às molas macias do carro que o genro guiava cessaram de correr as lágrimas. Às perguntas em assalto respondia com gestos, meias-palavras, ou então com o silêncio. O corpo magro, mas rijo, que apesar da idade produzira trabalho, e garantira sua vida, oscilava com as hesitações do tráfego, e a vista nenhuma vez procurou a paisagem. Mais parecia concentrar-se como que respondendo à avalanche de ternura. O que lhe ia por dentro seria impossível transmitir no contato superficial que iniciava agora. Deduziu que seus silêncios eram constrangedores. Os silêncios que se sucediam ao questionário sobre si mesmo, sobre o que de mais terrível experimentara. Esquecer o acontecido, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe a essência do horror ante uma mesa bem posta, ou um chá tomado entre finas almofadas e macias poltronas? Os olhos ávidos e inquiridores que o rodeavam não teriam ouvido e visto o bastante para também se horrorizarem e com ele participar dos silêncios? Um mundo só. Supunha encontrar aquém-mar o conforto dos que como ele haviam sofrido, mas que o acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. E consciente disso partilhariam com ele em humildade o encontro. Vislumbrou, porém, um ligeiro engano. 
 
O apartamento ocupado pelo irmão ficava no último andar do prédio. A varanda aberta para o mar recebia à noite o choque das ondas com mais furor que de dia. Ali gostava de sentar-se (voltando da sinagoga após a prece noturna) com o sobrinho-neto no colo a balbuciarem ambos coisas não sabidas. Os dedos da criança embaraçavam-se na barba e às vezes tenteavam com força uma ou outra mecha. Esfregava então seu nariz duro ao arredondado e cartilaginoso e riam ambos um riso solto e sem intenções. Entretinham-se até a hora em que o irmão voltava e iam jantar.
 
Nas primeiras semanas houve alvoroço e muitas casas a percorrer, muitas mesas em que comer, e em todas revoltava-o o aspecto de coisa curiosa que assumia. Com o tempo, arrefecidos os entusiasmos e a curiosidade, ficara só com o irmão. Falar mesmo só com este ou a mulher. Os outros quase não o entendiam, nem os sobrinhos, muito menos o genro, por quem principiava a nutrir antipatia. 
 
Aí vem o "Profeta"!
 
Mal abrira a porta, a frase e o riso debochado do genro surpreenderam-no. Fez como se não tivesse notado o constrangimento dos outros. Atrasara-se no caminho da sinagoga e eles já o esperavam à mesa. De relance, percebeu o olhar de censura do irmão e o riso cortado de um dos pequenos. Só Paulo (assim batizaram o neto, que em realidade se chamava Pinkos) agitou as mãos num blá-blá como a reclamar a brincadeira perdida. Mudo, depositou o chapéu no cabide, ficando só com a boina preta de seda. Da língua nada havia ainda aprendido. Mas, observador, se bem que não arriscasse, conseguiu por associação gravar alguma coisa. E o "profeta" que o riso moleque lhe pespegara à entrada, ia-se tornando familiar. Seu significado não o atingia. Pouco importava, no entanto. A palavra nunca andava sem um olhar irônico, uma ruga de riso. No banheiro (lavava as mãos) recordou as inúmeras vezes em que os mesmos sons foram pronunciados à sua frente. E ligou cenas. Do fundo boiou a lembrança de coisa análoga no templo.
 
O engano esboçado no primeiro dia acentuava-se. A sensação de que o mundo deles era bem outro, de que não participaram em nada do que fora (para ele) a noite horrível, ia se transformando lentamente em objeto consciente. Eram-lhe enfadonhos os jantares reunidos nos quais ficava à margem. Quando as crianças dormiam e outros casais vinham conversar, apalermava-se com o tom da palestra, as piadas concupiscentes, as cifras sempre jogadas, a propósito de tudo, e, às vezes, sem nenhum. A guerra o despojara de todas as ilusões anteriores e afirmara-lhe a precariedade do que antes era sólido. Só ficara intacta sua fé em Deus e na religião, tão arraigada, que mesmo nos transes mais amargos não conseguira expulsar. (Já o tentara, reconhecia, em vão.) Nem bem se passara um ano e tinha à sua frente numa monótona repetição o que julgava terminado. A situação parasitária do genro despertou-lhe ódio, e a muito custo, dominou-o. Vira outras mãos em outros acenos. E as unhas tratadas e os anéis, e o corpo roliço e o riso estúpido e a inutilidade concentravam a revolta que era geral. Quantas vezes (meia-noite ia longe) deixava-se esquecer na varanda com o cigarro aceso a ouvir numa fala bilíngüe risadas canalhas (para ele) entre um cartear e outro. 
 
Então é isso?
 
Os outros julgariam caduquice. Ele bem sabia que não. O monólogo fora-lhe útil quando pensava endoidar. Hoje era hábito. Quando só, descarregava a tensão com uma que outra frase sem nexo senão para ele. Recordava-se que um dia (no início, logo) esboçara em meio a alguma conversa um tênue protesto, dera um sinal fraco de revolta, e talvez seu indicador cortasse o ar em acenos carregados de intenções. O mesmo na sinagoga quando a displicência da maioria tumultuara uma prece.
 
Esses gordos senhores da vida e da fartura nada têm a fazer aqui  murmurara algum dia para si mesmo. 
 
Talvez daí o profeta. (Descobrira, depois, o significado.)
 
Pensou em alterar um pouco aquela ordem e principiou a narrar o que havia negado antes. Mas agora não parecia interessar-lhes. Por condescendência (não compreendiam o que de sacrifício isso representava para ele) ouviram-no das primeiras vezes e não faltaram lágrimas nos olhos das mulheres. Depois, notou-lhes aborrecimento, enfaro, pensou descobrir censuras em alguns olhares e adivinhou frases como estas: "Que quer com tudo isso? Por que nos atormenta com coisas que não nos dizem respeito?" Havia rugas de remorso quando recordavam alguém que lhes dizia respeito, sim. Mas eram rápidas. Sumiam como um vinco em boneco de borracha. Não tardou que as manifestações se tornassem abertas, se bem que mascaradas.
 
O senhor sofre com isso. Por que insiste tanto? 
 
Calou. E mais que isso, emudeceu. Poucas vezes lhe ouviram a palavra, e não repararam que se ia colocando numa situação marginal. Só Pinkos (ele assim o chamava) continuava a trançar sua barba, esfregar o nariz, e contar histórias intermináveis com seus olhos redondos. Inutilidade. 
 
O mar trazia lembranças tristes e lançava incógnitas. Solidão sobre solidão. Interrogava-se, às vezes, sobre sua capacidade de resistir a um meio que não era mais o seu. Chiados de ondas. Um dedo pequeno mergulhado em sua boca e um riso ao choque. Riso sacudido. Poderia condenar? Não, se fosse gozo após a tormenta. Não, não poderia nem condenar a si mesmo se por qualquer motivo aderisse, apesar da idade. Mas os outros? Cegos e surdos na insensibilidade e auto-suficência! Erguia-se então. Caminhava pelos cômodos, perscrutando no conforto um contraste que sabia de antemão não existir. Aliciava argumentos contra si mesmo, inutilmente. E do fundo um gosto amargo, decepcionante. Os dias se acumulavam na rotina e lhe era penosa a estada aos sábados na sinagoga. O livro de orações aberto (desnecessário, de cor murmurava todas as preces), fechava os olhos às intrigas e se punha de lado, sempre de lado. No caminho admirava as cores vistosas das vitrinas, os arranha-céus se perdendo na volta do pescoço, e o incessante arrastar de automóveis. E nisso tudo pesava-lhe a solidão, o estado de espírito que não encontrara afinidade. 
 
Soube ser recente a fortuna do irmão. Numa pausa contara-lhe os anos de luta e subúrbio, e triunfante, em gestos largos, concluía pela segurança atual. Mais que as outras sensações essa ecoou fundo. Concluiu ser impossível a afinidade, pois as experiências eram opostas. A sua, amarga. A outra, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempo!? Deus, meu Deus! As noites de insônia sucederam-se. Tentou concluir que um sentimento de inveja carregava-lhe o ódio. Impossível. Honesto consigo mesmo entreviu sem forças essa conclusão. E suportou o oposto, mais difícil. As formas na penumbra do quarto (dormia com o neto) compunham cenas que não esperava rever. Madrugadas horríveis e ossadas. Rostos de angústia e preces evolando das cinzas humanas. As feições da mulher apertando o xale no último instante. Onde os olhos, onde os olhos que mudos traíram o grito animal? Risada canalha. Carteado. Cifras. Olha o "profeta" aí! E caras de gozo gargalhando do capote suspenso na cadeira. Impossível.
 
Gritos amontoados deram-lhe a notícia da saída. Olhou o cais. Lentamente a faixa d'água aumentava aos acenos finais. Retesou todas as fibras do corpo. Quando voltassem da estação de águas encontrariam a carta sobre a mesa. E seriam inúteis os protestos, porque tardios. Aproveitara as duas semanas de ausência. O passaporte de turista (depois pensavam em torná-lo permanente) facilitara-lhe o plano. O dinheiro que possuía esgotou-se à compra da passagem. Regresso. A empregada estranhou um pouco ao vê-lo sair com a mala. Mas juntou o fato à figura excêntrica que no início lhe infundira um pouco de medo. Planos? Não os tinha. Ia apenas em busca da companhia de semelhantes, semelhantes, sim. Talvez do fim. As energias que o gesto exigiu esgotaram-no, e a fraqueza trouxera hesitações. E ante o irremediável os olhos frustrados dilataram-se na ânsia de travar o pranto. Miúdas, já, as figuras acenando. O fundo montanhoso, azulando num céu de meio-dia. Blocos verdes de ilhotas e espumas nos sulcos dos lanchões. (Há sempre gaivotas. Mas não conseguiu vê-las.) Novamente os punhos cerrando e trançando, as têmporas apoiadas nos braços, e a figura negra, em forma de gancho, trepidando em lágrimas.
 
* Nascido em família judaica, veio para o Brasil em 1936, trazido por seus pais. Passou o restante de sua infância e adolescência nos subúrbios do Rio de Janeiro, nos bairros de Ramos e Olaria. Tendo se formado em engenharia na década de 1950 participou, como calculista, das obras de construção de Brasília, onde fixou residência. Sua obra literária publicada inicia-se com Contos do Imigrante, de 1956, e encerra-se com Que os Mortos Enterrem Seus Mortos, de 1981. Seu estilo é considerado único, fundador de uma nova forma para o conto brasileiro. Após sua morte, porém, sua obra passou a ser buscada mais intensamente pelo público leitor e a receber estudos acadêmicos e críticos, dentre os quais se destacam o trabalho biográfico desenvolvido por Natalia Klidzio e a coletânea crítica em dois volumes organizada por André Seffrin. A obra rawetiana é marcada por temas como alienação, urbanidade e deslocamento. Muitas de suas personagens pertencem a segmentos sociais marginalizados, como imigrantes judeus, moradores do subúrbio e homossexuais.

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de hospedar no Blog de São João del-Rei o conto de SAMUEL RAWET intitulado O PROFETA, que foi publicado numa coletânea de contos em 1956. Nascido em família judaica, veio para o Brasil em 1936, trazido por seus pais. Passou o restante de sua infância e adolescência nos subúrbios do Rio de Janeiro, nos bairros de Ramos e Olaria. Tendo se formado em engenharia , participou, como calculista, das obras de construção de Brasília, onde fixou residência.
Sua obra literária publicada inicia-se com Contos do Imigrante, de 1956, e encerra-se com Que os Mortos Enterrem Seus Mortos, de 1981. Seu estilo é considerado único, fundador de uma nova forma para o conto brasileiro.
Rawet diz em entrevista chamada Andanças e mudanças de S. Rawet: “Sou fundamentalmente suburbano. O subúrbio está muito ligado a mim. Aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado e acho essa a melhor pedagogia. Eu aprendi tudo nas ruas”.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/04/o-profeta.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Ivan Alves Filho (historiador, documentarista, jornalista e autor de 20 livros, com destaque para O Caminho do Alferes Tiradentes, de 2018) disse...

Parabéns pela escolha.
Abraços,
Ivan.

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Diplomado em Direito, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, Membro Correspondente do IHG de Minas Gerais, entre outras importantes instituições culturais de Minas. Membro Efetivo da Academia Valencia de Letras, onde participou da diretoria por mais de 12 anos sucessivos. Disse: disse...

Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza de mais este envio.
A leitura atenta, que fizemos com prazer, revela o estilo literário do autor Samuel Rawet, em “O Profeta”.
Em sua interessante narrativa, ao transcender ao tema principal da figura do imigrante, mostra com riqueza de detalhes o entorno de uma estória, fato que revela o refinamento do autor, ao situá-la no tempo e no espaço com grande clareza. Isso prende o leitor desde o início até ao final do conto.
Apreciamos a leitura. Parabéns por mais esta postagem.
Cordial e saudoso abraço,
Dos amigos Mario e Beth Cupello

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Impressionante conto aprofundado na densa personalidade do personagem e na constrangedora realidade à qual retornou.
Parabéns por mais esta publicação do autor !
Saudações,

Cupertino

Fernando de Oliveira Teixeira (poeta e professor universitário, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Um texto excelente, Braga.