Por José Gameiro *
Transcrevemos com a devida vênia da Revista do Expresso, da coluna Diário de um Psiquiatra por José Gameiro, edição 2.684 de 05/04/2024, p. 80.
A regra é risco zero. Não praticar isto é ser complacente.
Cabina de piloto de avião |
Há poucas profissões tão rigorosamente reguladas como a aviação.
O treino sistemático ao longo da vida profissional, com controlos semestrais em simuladores, cópias exatas dos aviões em que voam,
postos em situações muito difíceis, que raramente acontecem, faz com que
os pilotos profissionais fiquem sempre sujeitos a julgamentos de proficiência de grande exigência. Paralelamente são obrigados a exames médicos, também semestrais, em que à menor dúvida sobre a sua saúde deixam de voar. A saúde mental passou a ser uma componente importante depois do suicídio/homicídio do voo da German Wings. Não sendo, felizmente, um evento frequente, apesar de ter acontecido mais vezes do que as companhias reconhecem, obrigou os meus colegas da medicina aeronáutica a terem maior atenção aos sinais depressivos ou psicóticos.
Apesar de todo este cuidado com a segurança, cerca de 70% dos acidentes acontecem por erro humano e não por falha mecânica. Mesmo que esta esteja presente, os relatórios de acidentes mostram que o voo poderia ter um final feliz. É na análise dos incidentes e acidentes que tem sido feito um percurso de cada vez maior segurança. Para a maior parte dos passageiros que entra num avião, mesmo aqueles que voam frequentemente, não é o mesmo que entrarem no carro e controlarem o que se está a passar. Há uma diferença entre sabermos que o transporte aéreo é muito seguro — a taxa de mortalidade é na Europa muito inferior à dos acidentes de automóvel — e confiarmos na capacidade e na qualificação de duas pessoas que não conhecemos. O que nos dá calma é sabermos que quem está lá à frente, seja numa companhia de bandeira seja numa low cost, tem o mesmo treino e o mesmo nível de avaliação.
Não é por acaso que tudo aquilo que se controla, antes, durante e depois
de um voo, é feito por checklist, mesmo que ao fim de anos já se saiba de memória. A regra é risco zero para qualquer esquecimento. Não praticar isto
é ser complacente, uma das causas de acidentes. Já fiz milhares de horas
neste avião, não vou estar a ler estes cartões...
Os pilotos têm limites de horas de voo seguidas que não podem exceder. A que se seguem horas de repouso obrigatório, até poderem voltar a voar. A fadiga é uma das causas de acidentes, porque obviamente interfere com a capacidade de discernimento e de decisão. Num inquérito recente 76% dos pilotos reconheceram já ter adormecido
no cockpit. Recentemente, na Indonésia, um voo esteve 30 minutos a não responder ao controlo: os dois tinham adormecido. À fadiga está ligado o stresse, num céu cada vez mais congestionado, com aeroportos, como o da Portela, com grandes limitações e atrasos.
A conjugação destas duas variáveis leva a perturbações cognitivas e irracionais. Há uns anos vivi uma situação na Madeira que me mostrou como
a irracionalidade, provocada pelo stresse, pode levar ao limite. Após três tentativas falhadas de aterrar, o avião alternou para o Porto Santo. Depois de algum tempo dentro do avião, foi explicado aos passageiros que não podiam sair para a aerogare. Quem o quisesse fazer, não voltaria a entrar e teria de ir de barco. Passado pouco, já nem água havia no avião e muitas crianças estavam
a chorar. A tripulação de cabina, incomodada, desculpava-se como podia.
Era óbvio que estava à espera de uma aberta para voltar a tentar aterrar. O comandante, quando foi confrontado, afirmou: “quem manda aqui sou eu”.
O piloto tinha-se transformado num ser autoritário, irracional. Temi pela aterragem na Madeira, mas correu muito bem. A fadiga e o stresse tinham tomado conta do homem.
Mas esta história é uma muito pequena exceção de uma profissão em que se pode confiar inteiramente e que é, por vezes, injustamente criticada pelos privilégios que, supostamente, tem. Experimentem serem avaliados de seis em seis meses e serem “trucidados” durante duas horas num simulador de voo.
* Psiquiatra português, tem doutorado em Psicologia e Saúde Mental pela Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, trabalha atualmente no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, e ensina Psicologia da Família no Instituto Superior de Ciências da Saúde. É membro fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar (SPTF), constituída em 1979, e também fundador do Instituto de Terapia Familiar.
6 comentários:
Prezad@,
Quem nunca sonhou tornar-se um piloto de avião?
O psiquiatra JOSÉ GAMEIRO, na sua crônica intitulada PILOTOS, faz uma abordagem das dificuldades da carreira de piloto, um profissional que é avaliado periodicamente através de exames médicos semestrais e que precisa estar saudável física e psicologicamente para ter condições de se sentar num cockpit para pilotar um Boeing ou um Airbus com segurança, devendo se sujeitar ainda a exigentes julgamentos de proficiência da sua atividade profissional.
Para chegar a tirar da pista dezenas de toneladas, há todo um roteiro passo a passo a ser observado para credenciamento de alguém que sonha pilotar um avião. Nem pensar em queimar etapas na formação, que é complexa, requerendo do candidato a piloto muito estudo e dedicação, além do investimento financeiro alto principalmente no início da formação.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/04/pilotos.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Prezado, bom dia!
Interessantíssimo. Sou um grande admirador da aviação, que nos causa, ao mesmo tempo, grande espanto.
Forte abraço!
Leo.
Caríssimo Braga.
Aos dezoito anos frequentava o Aeroclube de Canoas em companhia dos colegas Harry Statlander e Coelho de Souza., que terminaram o curso. Receberam o brevet e em seu voo solo foram "agraciados" com o tradicional banho de óleo diesel.
Eu era um menino pobre. Não conseguia pagar as mensalidades do curso, então ministrado pelo professor Segura.
O instrutor Segura, apiedado, certo domingo, embarcou-me num "Paulistinha". Foi a glória juvenil... Um sonho!
Caro professor Braga
Tudo parece se resumir à valorização dos(as) profissionais, tanto mais decisivas e sujeitas a pressões constantes sejam suas atividades. Interessantíssimo artigo.
Cumprimentos.
Cupertino
Quando penso em piloto me vem à mente o Pequeno Príncipe e Saint-Éxupery que desapareceu com seu avião no deserto durante a Segunda Guerra Mundial, caro Francisco Braga.
Acompanhando seu trabalho sempre.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Obrigado pelo envio. Abraço amigo e saudoso.
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