Por GENTIL PALHARES
Acompanhei o cortejo fúnebre de DONA SINHÁ NEVES ¹ — o maior que já vi nesta cidade — com o pensamento no passado. Um passado de 48 anos, quando estaria a veneranda extinta com 39 anos. No atropêlo daquela enorme multidão que seguia o corpo querido, eu fazia, pois, um retrospecto no Tempo. Senti que os insondáveis desígnios do CRIADOR modificaram, lentamente, a contextura da tradicional família, em todos os ângulos da vida, desde quando, meninos, unidos pelos nossos folguedos infantis, abrigávamos sonhos e ideais. Indiscutivelmente todos se projetaram tangidos pela força da inteligência, para que pudessem ser úteis à sociedade, servindo à Pátria.
Durante a marcha fúnebre eu meditava sobre tudo isso e revi, num relance, o antigo sobrado da rua Direita com suas janelas laterais muito altas, em número de dôze. E dôze seriam os filhos de DONA SINHÁ, daí uma versão, lenda inocente, segundo a qual cada uma daquelas janelas representava um filho. ²
Solar dos Neves contendo 12 janelas e 3 portas |
Mas um dia a JOSINA também partiu para a verdadeira vida e aquela mocidade tôda chorou.
Eu ia pensando em tudo isso, enquanto o enterro prosseguia a sua marcha, levando naquele caixão muito prêto um coração tão alvo, que passou pelo Mundo serenamente, mansamente, o qual teve alegrias e tristezas, risos e lágrimas, que a vida é mesmo assim...
Como os pássaros que se emplumam e voam para regiões distantes, os filhos de DONA SINHÁ, na sua totalidade, na luta pela vida, foram deixando, um a um, o seu BERÇO, que fôra, em tempos recuados, um NINHO ruidoso, referto de alegria, de paz e de bênçãos.
Já o esposo, o chefe da casa, partira desta existência. Já um rebento querido e sempre chorado atingira em cheio o coração materno naquele trágico mergulho para a eternidade ³, que a ampulheta do Tempo já consigna 31 anos! Já um dos filhos, todos ilustres, todos prestantes, fôra destinado por Deus para dirigir o País. Já uma filha, na flor da idade, deixara as tentações do século e se fizera religiosa, fervorosa na sua fé.
As famílias numerosas, como essa da nossa estima e do nosso acatamento, têm sempre, no LIVRO DA VIDA, página mais longa, formando como que uma perpetuação. E foi assim que, se os filhos partiram para o desempenho digno de seus misteres, na engenharia, na medicina, na cátedra, no Exército, na advocacia, e na vida do claustro, Deus, todavia, enviou a DONA SINHÁ NEVES uma doce consolação: os netos, que vieram enfeitar com a sua mocidade e o perfume de sua alegria uma existência que, por isso, nunca ficou inteiramente vazia.
Dos galhos, dos ramos, surgiram, pois, as flôres e algumas com os mesmos nomes: Francisco, Tancredo, Roberto e até — bela homenagem — uma JOSINA a nos lembrar, numa evocação das mais gratas, a saudosa governanta!
O enterro seguia a sua marcha e nós conduzíamos aquela que passou pela Terra 87 anos numa existência exemplar, porque isenta de sentimentos negativos, desprezando as ostentações, as vaidades, as divergências, alheia às contendas. Recebendo de Deus a grande graça de ver um filho CHEFE DE ESTADO, preferiu o anonimato, como que se ocultando, como que fugindo às exteriorizações, aos aparatos naturais da situação. Dentro de uma vida faustosa, foi DONA SINHÁ NEVES uma contemplativa, chegando à humildade!
À sombra da GRANDE ÁRVORE que plantara, adotara uma norma de vida tôda sua, plasmando uma filosofia de conduta digna de ser imitada, nessa sublime missão de ser espôsa e mãe. Riu e chorou, amou e foi amada.
O entêrro se abeirava do Campo Santo, depois de tocante cerimônia do Templo Franciscano. Era o final da marcha!
A noite já vinha descendo, triste, negra, formando um paradoxo das coisas, porque havia, de fato, tristeza nos corações, mas o coração que baixava à garganta de terra era belo e alvo!
Fonte: jornal Ponte da Cadeia, São João del-Rei, Ano II, 25 de agosto de 1968, nº 64, p. 3
I. NOTAS EXPLICATIVAS POR FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA
¹ São João del-Rei, a cidade natal de Antonina de Almeida Neves, conhecida por "Dona Sinhá Neves", homenageia a memória de sua filha ilustre dando seu nome a duas instituições: a) uma Escola de Educação Básica e Profissional, inaugurada em 03/03/1985 e localizada no bairro da Cohab; b) uma Clínica Infantil que faz parte do complexo da Santa Casa da Misericórdia, inaugurada em 1961 e localizada na rua Maria Teresa.
² Tancredo de Almeida Neves era o quinto dos 12 filhos do comerciante Francisco de Paula Neves (✰ 1878 ✞ 1922), apelidado "Seu Chiquito", e de Antonina de Almeida Neves (✰ 1881 ✞ 1968), conhecida por "Dona Sinhá". Seus 11 irmãos eram: Octávio, Roberto, Francisco, Maria Josina Neves Resende, Esther, Gastão, Mariana, Paulo, Jorge, Antônio e José.
17 comentários:
Tenho o prazer de publicar no Blog de São João del-Rei mais uma crônica do ilustre autor formiguense GENTIL PALHARES, que escolheu a terra são-joanense como sua mãe adotiva, certamente por ter-lhe oferecido a hospitalidade que tanto procurava e garantido espaço e oportunidade para sua rica produção literária e intelectual.
Colaboro com o cronista, redigindo três notas explicativas para esclarecimento dos leitores da peça literária.
Como não cabia estender-me demais, pois temia que minhas notas excedessem a própria crônica, evitei fazer maiores comentários sobre a origem da Clínica Infantil Sinhá Neves. Gostaria, nesta oportunidade, de mencionar que, devido aos estreitos laços de amizade com a família Garcia de Lima, TANCREDO DE ALMEIDA NEVES, então Primeiro-Ministro do Brasil, preocupado com os altos índices de mortalidade infantil em nossa região, em 1960 convidou o Dr. Euclides Garcia de Lima Filho, então recém-formado pela Faculdade Nacional de Medicina, para retornar à nossa cidade para implantar a Clínica Infantil Sinhá Neves. O jovem pediatra, repleto de ideais, de amor por sua terra natal e à causa dos menos favorecidos, não vacilou e trocou a sua futura e com certeza brilhante carreira de professor universitário no Rio de Janeiro pelo desafio de implantar em nossa cidade um trabalho que se iniciou nos anos sessenta e que continua até os dias de hoje.
Dr. Euclides, meu confrade na Academia de Letras são-joanense, foi sem dúvida alguma o pioneiro da moderna pediatria em nossa região. Trouxe do Rio de Janeiro novas técnicas de hidratação venosa, de cuidados com os recém-nascidos, ações estas que reduziram em muito as taxas de mortalidade infantil.
Dentre outros que exerceram também a especialidade de pediatria em nossa cidade e na Clínica Infantil Sinhá Neves, permito-me mencionar pelo menos um que, formado na UFJF, se encantou pela pediatria, não só seguindo o exemplo de seus mestres, mas também devido à convivência familiar com seu quase irmão, Dr. Euclides: meu ex-colega dos tempos do Ginásio Santo Antônio, Dr. Luiz Antônio Neves de Resende, o qual optou por fazer a sua residência médica na Unidade de Saúde de Sobradinho, em Brasília, sob a tutela do Dr. Antônio Márcio Junqueira Lisboa, que iniciava no Brasil os mais modernos estudos na área de neonatologia. Tendo trabalhado de 1975 a 1980 na UTI Pediátrica do Hospital de Base do DF, ao retornar a São João del-Rei, Dr. Luiz Neves encontrou o clima propício para, juntamente com os outros colegas pediatras da Santa Casa, inaugurar a "nova" Clínica Infantil Sinhá Neves, que hoje conta com 25 leitos de pediatria.
Em curtas palavras, é o que me competia acrescentar para não desviar-me da verdade dos fatos e dar o devido crédito aos que realizaram um trabalho imorredouro em prol de São João del-Rei e região.
CRÔNICA DE GENTIL PALHARES
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/01/dona-sinha-neves-uma-vida-para-exemplo.html
BREVE BIOGRAFIA DO CRONISTA
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2014/02/colaborador-gentil-palhares-1909-1994.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Amei. Agradecida.
Por favor, parabenize o Francisco por mim. Sempre bom lembrar ou conhecer tais histórias da cidade.
Abs.
Parabéns pelo trabalho. Muito bom!
🙏🙏🙏🙏 Obrigado amigo, um belo testemunho sobre meu pai pelo saudoso Gentil Palhares.
Abs
Rogério
Olá, Francisco e Rute, Quão preciosas são todas as pessoas que se dedicam à saúde pública e ao tratamento das doenças! É um serviço divino! Desejo-lhes muita boa sorte neste novo ano de 2021 !! f. Joel.
Parabéns, confrade Braga, por juntar duas histórias muito bonitas que perpassam a própria história de SJDR. Como seus textos me enchem de ideias, fiquei com a sensação que deveríamos iniciar a Galeria Virtual sobre "Personalidades que fazem a história de SJDR", com uma entrevista com o Dr. Tidinho. Já encaminhei esta ideia aos confrades da Presidência e comentei com o Dr. Rogério Medeiros. Gostaria de participar? A ideia é que de cada personalidade a gente tenha um vídeo de apresentação; uma entrevista pessoal e um vídeo com comentários sobre a vida e obra dele (tipo curricular...).
Abraços fraternos,
Paulo Sousa Lima
Caro professor Braga;
Comovente e já histórica crônica. Parabéns pela iniciativa de sua publicação!
Grato.
Cupertino
Muito agradecido, caro Braga, pelo texto enviado. Pax et bonum.
Fernando Teixeira
Caro Francisco,
Obrigado pelas referências à minha saudosa avó Sinhá Neves, assim como
a toda nossa família. Foi um tempo de saudades e de muito amor e carinho entre as pessoas. Éramos muito felizes. Vovó Sinhá era o ponto de apoio de toda a vizinhança, qualidade esta que passou para minha mãe, que acolhia a todos que chegavam lá em casa. Era comum a porta ficar sempre aberta sem que nunca tivesse um contratempo com pessoas estranhas.
Infelizmente o mundo mudou muito e hoje impera a desconfiança e o medo.
Com relação às referências à minha pessoa, pode estar certo de que os
alicerces que nos sustentam foram forjados no antigo e saudoso Ginásio
Santo Antônio.
Um grande e afetuoso abraço.
Luiz Neves.
Prezado Francisco Braga
Saudações da Diretoria da Casa de Cultura- Academia Marianense de Letras, Ciências e Artes.
A Casa de Cultura tem um grupo no Whatsapp/ de acadêmicos do Sodalício, para socialização e divulgação de produção literária e cultural.
Temos presença e participação da grande maioria.
Caso aceite interagir com a plêiade de escritores, gentileza enviar o número de seu WhatsApp.
Atenciosamente,
Andreia Donadon Leal
Membro efetivo da Academia Marianense de Letras - Tesoureira
Meu amigo, mais um trabalho exemplar visando esclarecer como nascem e vivem médicos que fizeram de sua profissão um sacerdócio!
Parabéns!
Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza do envio e felicitamos ao Ilustre amigo pela excelente divulgação sobre Dona Sinhá Neves.
Abraços de Mario e Beth
Parabéns Braga pelas lembranças da saudosa Dona Sinhá Neves, bem lembradas pelo saudoso Tenente Gentil Palhares.
Postado por José Claudio HENRIQUES.
Parabéns por colocar em evidência relevantes fatos da nossa história e referência a pessoas ilustres de nossa sociedade.
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