domingo, 14 de novembro de 2021

OS SAPATOS DO PROFESSOR


Por Ernane Reis Gonçalves 
 


Eu engraxei sapatos quando criança, durante um bom tempo. Já contei isso em algumas histórias publicadas e em outras inéditas. 
Sempre que me encontro com o Pedro Cubu, normalmente nas missas na igreja, nós nos lembramos do nosso tempo de engraxate. E comentamos: 
“Engraxei o meu ontem. Engraxei hoje, antes de sair. Escovo o meu, todo dia, para tirar a poeira. Engraxo o meu todo fim de semana.”
 
Recentemente, numa reunião da Academia Divinopolitana de Letras, da qual eu faço parte, recebemos duas visitas: a Rute Pardini, esposa do nosso confrade Francisco José e um rapaz, o Paulo, filho da nossa confreira Aparecida Camargos. 
A Rute é velha conhecida nossa. Grande cantora lírica, já nos encantou várias vezes em reuniões festivas quando canta acompanhada pelo marido, ao piano, em apresentações divinas. 
Terminada a reunião, estávamos no cafezinho, quando o rapaz me pergunta pelo meu nome e se eu fora professor no antigo Colégio Estadual do Porto Velho. 
Antes que eu respondesse, a Rute entra na história: 
– Ô, Paulo ele é o Ernane, que foi nosso professor de Português, no colegial. 
Meu Deus! Eles foram meus alunos entre 1981 e 1989, quando lecionei no antigo Estadual do Porto Velho, hoje a Escola Santo Tomaz de Aquino. Eu fui aluno daquela Casa e, ao me formar professor, lecionei lá, por nove deliciosos anos. 
Meu computador interno buscou dados na minha velha memória. Do rapaz eu não me lembrei. Da Rute eu me lembrava, embora sem muita nitidez, quem sabe por ter-se destacado de alguma forma – capacidade intelectual, esperteza, bagunça na aula, beleza – coisas que destacam alunos e que marcam a nós professores e muito me marcaram nos meus quase quarenta anos de escola, e nos quase sempre quarenta alunos em cada sala de aula. 
Em relação à Rute, ainda acrescia o sobrenome. Pardini. Os donos dos cinemas que nos encantavam, embora eu tenha ido muito pouco a Divinópolis, para assistir a filmes no Popular e no Arte, que eram dos Pardini. 
Eles ainda comentaram: 
– Você ia sempre muito elegante, camisa e calças bem passadas, limpas, bem ajustadas ao corpo.
(Parênteses para lembrar que isso sempre foi façanha da minha mulher. Se não ando mais bem vestido é por desleixo meu, o que a deixa muito contrariada. Ela sempre diz, admoestando: “Você é professor. Precisa se vestir e se portar como professor. Tem de ter postura de professor. Não pode sair esbangoelado por aí.”) 
Paulo ainda acrescentou: 
– Chamavam atenção os seus sapatos. Sempre pretos, sempre brilhantes. Nunca o vimos de sapato sujo, mal engraxado. Podia ser um sapato já bem usado. Mas estava sempre polido. 
Meu Deus! O hábito faz o monge? 
Ainda me lembrei de uma servente escolar, também lá do antigo Estadual, que comentara sobre os meus sapatos. A mesma observação: 
“Podem ser já bem usados, mas estão sempre limpos.” 
Eu fora engraxate e gostava do que fazia. Eu mantinha – e mantenho, em casa – graxa e escova e, sempre que posso, limpo os sapatos. Raramente uso tênis e só com muito calor, sandálias. Chinelo, só em casa. 
Engraxando sapatos...
 
Fiquei muito feliz de ter reencontrado dois ex-alunos, trinta anos depois. Fiquei lisonjeado pela observação deles, em relação à minha postura como professor. 
E rapidamente me olhei. Eu estava medianamente bem vestido. Camisa de malha, de mangas curtas, bem fresca; calças pretas de tergal, claro, limpas. 
Lamentavelmente, naquele dia, naquela reunião na sede da Academia Divinopolitana de Letras, em Divinópolis, por causa do calor intenso, eu estava de sandálias, que eu nunca tinha usado nas reuniões que reputo pomposas e sérias. 
Por alguma razão minha esposa Fátima não me vira sair de casa, ou não me teria deixado ir de sandálias. 
E minhas sandálias eram velhas e estavam sujas. 
É claro que a Rute e o Paulo devem ter olhado meus pés mal calçados. 
O pavão é uma das aves mais lindas. 
O pavão tem os pés muito feios. 
Guardadas as proporções, entendi o que deve sentir um pavão. 
 
Ernane Reis Gonçalves
Da Academia Divinopolitana de Letras
Cadeira nº 31 - Patrono: João Dornas Filho

13 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O Blog de São João del-Rei tem a honra de acolher um novo colaborador, Prof. ERNANE REIS GONÇALVES, natural de Carmo do Cajuru-MG e membro efetivo da ADL-Academia Divinopolitana de Letras.
Autor de livros de contos muito apreciados, deliciosas crônicas e inspirados poemas, em 1998 venceu o Concurso de Contos do prestigiado Instituto Camões, em Lisboa, com seu livro Bisavô e outras histórias, numa disputa acirrada de diversos países da lusofonia.

Breve biografia do novo colaborador
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/11/colaborador-ernane-reis-goncalves.html

Texto de "Os sapatos do professor"
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2021/11/os-sapatos-do-professor.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Rute Pardini (cantora lírica e escritora) disse...
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Rute Pardini (cantora lírica e escritora) disse...
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Cláudio Guadalupe disse...

Esta bela crônica tem um significado especial para nós professores, que constantemente encontramos nossos ex-alunos e as histórias carregadas de significados...Parabéns Ernane, ainda mais por ser colaborador do blog de São João Del Rei, terra das artes, minha terra de nascimento - Cláudio Guadalupe.

Rute Pardini (cantora lírica e escritora) disse...

Que legal, Francisco, você ter publicado a crônica passada pelo nosso querido amigo Ernane.
É mesmo! tempo bom aquele em que homens e mulheres se vestiam com o maior zelo.
Mas olha! A reunião da querida ADL é precedida de um almoço fraternal, naquele calorão do cão, onde até rolou uma cervejinha gelada, todos muito relaxados, achei que Prof. Ernane sentiu confiança em arriscar usando um traje mais leve. Por que não uma sandalinha???
Gostei demais também foi da reação espontânea que você, meu amado Francisco, teve em apoio à leitura emocionada da crônica por Prof. Ernane: "Não importa se as sandálias estejam velhas ou novas; o importante é que elas eram franciscanas."
Rsrsrs... adorei.
O incrível foi que, no fim de semana passado, observei uns três Acadêmicos de sandálias no almoço anterior à reunião.
Será que a moda pega?
Adorei.
Ô calorão, sô!
Deixemos para a noite o glamour, né?
Muito bom!
Parabéns ao nosso querido amigo Prof. Ernane pela sua memória privilegiada e finíssimo humor!

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga.

Surpreendente crônica! Aliás, minha mãe me alertava para o fato de que nada adiantaria eu estar vestindo a melhor roupa que houvesse se os meus sapatos estivessem sujos.
Parabéns ao professor Ernane e a você pela publicação .

Cumprimentos

Cupertino

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muito bom!

Dr. José Afrânio Vilela (desembargador, palestrante no Judiciário brasileiro, confrade e colaborador do Programa "IHG-SJDR Virtual" do Instituto Histórico e Geográfico de SJDR) disse...

Bom dia, caro professor Francisco!
Grande aquisição para o Blog. 👏

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Grato pelo texto do Ernane. Saudações para você e Rute.

Dr. Paulo Milagre (corretor de imóveis, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Tanto o Ernane como você, Francisco, são muito queridos e respeitados, mesmo com pés descalços.

Zélia Leão Terrell (poetisa são-joanense e presidente da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Parabéns ao "Blog de São João del-Rei" por esta aquisição belíssima. Que seja bem-vindo o distinto professor ERNANI REIS GONÇALVES.
DEUS o abençoe!

anne disse...
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Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (professor, escritor e editor da Revista Saberes Interdisciplinares da UNIPTAN e membro da Academia de Letras de SJDR) disse...

Gratidão, Francisco, pela remessa dos links
Abraço,
Pe. Sílvio