quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A QUINTA ESTAÇÃO DO ANO


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
Os contrastes do outono, na Beira Alta e o dia de São Martinho acentuam-se na paisagem geográfica e humana, nos itinerários da serra, na profundidade dos vales, no curso dos rios, em todos os elementos que definem a região e as suas populações. (Publicado originalmente na revista Tempo Livre da INATEL, edição de nov/dez 2023, p. 8)
 

Aquilino Ribeiro numa interpretação de Álvaro Carrilho
 

O outono surgiu, pontualmente, no dia do equinócio, a 23 de setembro e vai prolongar-se até 22 de dezembro, o dia do solstício de inverno. Anoitece mais cedo. A atmosfera permanece carregada de melancolia e de angústia. Tempo de frio intenso, de chuva forte e de neve. Mais perto ou mais longe os lobos têm as guelas ávidas de sangue. Mas, por alguns dias, assistimos ao regresso das manhãs luminosas e das tardes claras e repousantes. 

O dia de São Martinho, celebrado em quase todas as regiões do País, coincide com a opulência dos castanheiros e a variedade das castanhas. É um espetáculo que nos transmite a energia cósmica da terra. Costumo chamar a quinta estação do ano. Os contrastes do outono, na Beira Alta, acentuam-se nos itinerários da serra, na profundidade dos vales, no curso dos rios, em tudo o que define a região e as suas populações. Aquilino retratou esta paisagem geográfica e humana, logo no início da sua carreira literária, na Via Sinuosa, nas Terras do Demo e na Estrada de Santiago. Manteve, na reta final, essa pujança inicial na crónica romanceada da Casa Grande de Romarigães e no protesto vigoroso contra a situação política nas páginas escaldantes de Quando os Lobos Uivam

A Beira Alta foi para Aquilino um manancial. A retrospetiva da infância e da adolescência ficou em Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe. É a memória dos olhos que olham e que sonham, dos ouvidos que escutam as vozes e os rumores, de todos os sentidos despertos para o que o rodeava. Na série de «ensaios ocasionais» (dixit António Sérgio) – para mim é o «Quinteto da Beira» – reuniu artigos dispersos em jornais e revistas, em livros que nos surpreendem ainda. Tais como Aldeia, Avós dos Nossos Avós, Geografia Sentimental, O Homem da Nave, Arcas Encoiradas: a natureza na sua diversidade, o património edificado, o perfil granítico das ruas e do casario, o dia a dia mergulhado na continuidade da rotina. 

Alberto Correia, mestre em estudos aquilinianos, procedeu ao reencontro do «Aquilino total», destacando o prazer da mesa e a excelência da gastronomia da região: «Comeram-lhe à tripa forra» – escreveu Aquilino – «carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. O arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho do sal, até fazia cócegas no céu-da-boca». 

Trancreveu a entrevista de Aquilino concedida a Igrejas Caeiro para a rádio onde se orgulha da terra onde nasceu: «Sernancelhe, terra de pergaminhos», situada no meio dos castanheiros, «árvore bonita, árvore cheia de força e de beleza». (...) «Um castanheiro é uma cidade. É uma cidade para os pássaros. (...) Referiu, ainda, «as pastoras, com os seus tamanquinhos, britar o ouriço, com os britadores especiais, com a sua capuchinha para apanhar as castanhas, todas as manhãs, quando vem um bafo de vento.» 

Nos Cinco Réis de Gente, com a minúcia dos mestres da pintura flamenga, Aquilino já descrevera a configuração das castanhas «tão bonitas com sua oval fantasiosa, seu sépia de veludo, tão ternas quando espreitam juntinhas às duas, às três e até às quatro, inclusa a boneca, do ouriço arreganhado, tão bonitas até mesmo no chão, uma das faces plana, outra convexa à semelhança da broa no açafate». 

Também Paulo Pinto investigou o São Martinho na Beira Alta. A tradição de «abrir os pipos» – conforme salientou – «já não está presente na cultura sernancelhense como na década de 80 e 90 do século XX». Sobreviveu, contudo, o ritual dos magustos. A jeropiga ganhou especial relevância. Composta por duas partes de mosto de uva – observou Paulo Pinto – «uma parte de aguardente e outra de açúcar, a mistura resulta numa bebida com o equilíbrio perfeito entre a doçura e um aroma persistente a frutos secos. Nada melhor para acompanhar as deliciosas castanhas assadas ou cozidas». 

O modo de ser e de estar do beirão – na opinião de Aquilino – consiste na «brutalidade e melancolia, rijeza e desespero, perspetivas abstratas e um sentido da vida muito concreto». Todavia a «cediça estagnação» interrompe-se com a balbúrdia das feiras, a algazarra das romarias, as brigas com o varapau e a navalha. Regala-se com volúpia das comidas e bebidas, a vitela, o cabrito, as trutas e com o vinho da região. A existência decorre – advertiu Aquilino – «rindo, lutando, matando, mesmo se apertados pela necessidade ou pela raiva». Em suma: «capazes de grandes rasgos de bravura e de inesperada bondade.» 

Ontem, como hoje, esta Quinta Estação do Ano, apesar das mudanças radicais, perdura nas reminiscências que Aquilino evocou na sua linguagem feita de heranças vernáculas, de epicurismo e rebeldia. As narrativas e as derivas da imaginação refletem o inconformismo militante para exaltar a terra, caracterizar os homens, enaltecer os bichos e louvar os pássaros. É um testemunho de Aquilino para se opor a todas as formas de sujeição e de intervir na defesa dos valores fundamentais da liberdade. 

* Jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências. 

 

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto utilizada neste ensaio.

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Nesta crônica sobre AQUILINO RIBEIRO (1885-1963), António Valdemar deixa claro que seu biografado é um dos mais prolíficos autores portugueses. Mostra que ele, nos seus mais de 60 volumes, transita do romance ao conto, à novela, aos estudos etnográficos e históricos; também perpassa a crítica literária, a biografia, a literatura infanto-juvenil, a tradução e o jornalismo polemizado.
Em sua extensa obra faz emprego de um vasto leque de vocábulos regionais. Tal é a densidade do uso de vocabulário regional que o Centro de Estudos Aquilinianos editou, em 1988, um “Glossário Aquiliniano”.
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de hospedar mais essa contribuição do colaborador açoriano para a compreensão do autêntico espírito lusitano.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/12/a-quinta-estacao-do-ano.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Que prolífica a obra de Aquilino Ribeiro, caro Francisco Braga!
Obrigada por enviar.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Obrigado.
Aquilino Ribeiro é mesmo um grande escritor português. Cheguei a Lisboa em 1965 e pude perceber a sua importância na lcultura de Portugal.

Abraço do Gilberto Mendonça Teles

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Mais um excelente apanhado sobre o grande Aquilino Ribeiro que conseguiu tornar universais o sentimento e a beleza do regionalismo português.
Grato pela oportunidade da leitura.
Saudações

Cupertino

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

O que mais gostamos em Portugal foi da culinária, tão bem descrita pelo autor.