terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Outros Céus, outras Terras


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
“A imaginação mergulhou no passado e procurou avançar para o futuro: «Vejo raiar na grande noite a Estrela que anuncia eternamente o nascimento do Menino; vejo o estábulo sem conforto onde a vaca rumina e o burro sonha; e vejo os Pais que se debruçam com ternura sobre o filho que vai remir a Humanidade. A criação do Homem e a sua redenção sobre o Amor continuam».”(artigo publicado originalmente no Diário dos Açores, na edição de 24/12/2023)
Estes dias tão íntimos acordam fantasmas reais ou estrelas imaginárias. Um rosto de inquietação ou de esperança, aproxima-nos dos laços mais profundos que nos prendem às raízes familiares.

Tempo repleto de memórias e que faz evocar na intimidade do lar e em redor da mesa da família os nomes de todos os que já passaram pelas nossas vidas, os amigos de longe e os amigos de perto. Os amigos das horas difíceis e os amigos das horas alegres. 

Jaime Cortesão voltara do exílio, no Brasil, em 1957 e faleceu em 1960. O regresso a Portugal e com residência em Lisboa, permitiu-lhe completar investigações em arquivos nacionais e percorrer o País de norte a sul, detendo-se em tudo quanto lhe interessava. Entretanto, teve horas de tribulação política ao ser preso, com mais de 70 anos, em Caxias, (juntamente com António Sérgio, Vieira de Almeida e Mário de Azevedo Gomes) por estarem a organizar uma conferência sobre Democracia, a proferir por um deputado trabalhista britânico. 

Mesmo assim, Jaime Cortesão manteve a atividade intelectual até quase aos últimos dias e fez, no seu último Natal (1959), uma divagação entre o humano e o simbólico. Estávamos numa época já assinalada pelas aventuras espaciais, cujos primórdios Jaime Cortesão acompanhou com interesse. O lançamento do primeiro Sputnik ocorreu a 4 de Outubro de 1957 e, pouco depois, a 31 de Janeiro de 1958, surgiu o primeiro satélite, o Explorer. O mundo inteiro, apesar da desconfiança e o ceticismo de muitos perante estas e outras audaciosas inovações, viria a assistir à chegada à lua. Foi a 21 de Julho de 1969, com a nave Apollo 11. Neil Armstrong protagonizou este acontecimento que ficou na história universal. 

O Natal de Jaime Cortesão convocou os valores e ensinamentos tradicionais. Aprofundou as raízes de Ançã, terra onde nasceu e da qual nunca se desligou. Ele próprio confessa a emoção que sentia das suas origens, de «uma terra de dunas e lagunas, de bairrada e de pinhais, gândaras e pedreiras e de tão pródigas entranhas que a sua pedra, o calcário macio de Ançã de Outil e de Portunhos, serviu para construir retábulos, púlpitos e imagens distribuídas através de meio Portugal». 

Nascemos todos – escreveu – no mesmo estábulo. O melhor tesouro de cada um será o riso das crianças, as lágrimas de ternura, a alegria sem palavras, a bondade que brota, espontânea e gratuita como as flores na primavera». 

A imaginação mergulhou no passado e procurou avançar para o futuro: “Vejo raiar na grande noite a Estrela que anuncia eternamente o nascimento do Menino; vejo o estábulo sem conforto onde a vaca rumina e o burro sonha; e vejo os Pais que se debruçam com ternura sobre o filho que vai remir a Humanidade. A criação do Homem e a sua redenção sobre o Amor continuam». 

Mas Jaime Cortesão distinguiu-se de todos os seus contemporâneos, da Águia e da Renascença Portuguesa de Pascoaes a Afonso Duarte e da Seara Nova, de Aquilino a Raúl Brandão, sem esquecer Santiago Prezado, do Auto dos Pastores Brutos, em poesias e prosas com a marca que singulariza cada um. Cortesão associou a era espacial aos momentos alegóricos da comemoração do Natal: «O ser terrestre conhecerá em breve outros seres. Outros Céus. Outras Terras. Outras manhãs e ocasos múltiplos de sóis. Quando sobre nós raiarem todos os sóis dos Céus, então os homens – ao mesmo tempo vermes da Terra e águias do Universo – terão forças para realizar todas as promessas do Natal e ouvidos para escutar o coro dos Anjos e a música das estrelas”. As prodigiosas aventuras que se realizavam para além do planeta levaram o homem – interrogava ainda – a sentir-se «desterrado do seu próprio mundo onde viveu milénios». 

A chegada à Lua constituiu uma etapa de uma exploração espacial que tem prosseguido, nos últimos 70 anos, que não se sabe quando virá a ser concluída, que abre ampla reflexão acerca da cultura humanista e a cultura científica, entre as dimensões culturais, políticas e mediáticas. Confronta-nos com dinâmicas de conflito que caracterizam a contemporaneidade. 

Todas as situações da natureza humana, neste tempo de Natal, vêm à superfície nos dias tão íntimos, em que fantasmas reais ou imaginários andam dentro de nós e caminham dentro de nós. Ganham um rosto de inquietação ou de esperança, que aproxima ou separa os laços que nos prendem à terra. 

 

* Jornalista, carteira profissional número UM; sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.  

 

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto utilizada nesta crônica.

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Nesta época natalina, ANTÓNIO VALDEMAR tece inúmeras considerações sobre a vida de Jaime Cortesão, especialmente após sua volta do exílio no Brasil (1957-1960), o que lhe permitiu completar pesquisas em arquivos nacionais e percorrer Portugal de norte a sul.
À maneira lusitana, o autor trata do último Natal (1959), "uma divagação entre o humano e o simbólico".
Valdemar identifica que há um espaço para a imaginação do homenageado: "a sua imaginação mergulhou no passado e procurou avançar para o futuro", onde convida o leitor do Blog a vislumbrar outros Céus, outras Terras.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/12/outros-ceus-outras-terras.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Amigo mestre Francisco Braga, gostei muito do texto do ilustre jornalista, escritor e acadêmico António Valdemar sobre o inesquecível Jaime Cortesão, eminente historiador, pai de Maria da Saudade e sogro de Murilo Mendes, se me não falha a memória. Muito grato!
Feliz Ano Novo de 2024 para você e os seus! Abraço do Danilo Gomes, marianense de quatro ou cinco costados...

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Belo texto de António Valdemar, caro Francisco Braga.
Que tempo de memórias familiares é o Natal!
Todos, do passado e do presente, convivem no mesmo espaço da celebração.
E céus e terras se aproximam a todo instante.
Desejo ao senhor um 2024 de Saúde, Alegrias e Realizações, junto aos seus amigos e familiares.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

Luiz Solano (jornalista paraense, conhecido por "repórter do Planalto", membro da Academia de Letras e Artes do Planalto e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Obrigado pela sua atenção e postagens.nDesejo a você e sua família um Feliz Ano Novo. Em Brasília me tenha como amigo e parceiro. Abraços do Jornalista luiz Solano.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Uma apropriada lembrança para a reflexão e sensibilidade existencial natalina nos textos e nota biográfica do grande bairradino Jaime Cortesão, através de mais uma excelente matéria de A. Valdemar.
Saudações !
Cupertino

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (professor, escritor e editor da Revista Saberes Interdisciplinares da UNIPTAN e membro da Academia de Letras de SJDR) disse...

Caro Confrade da ALSJDR, Francisco Braga
Gratidão pela remessa contínua das novidades publicadas no Blog de São João del-Rei.

Com votos de Abençoado e feliz ano novo

Pe. Sílvio

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Conheci António Valdemar em Lisboa, apresentado daquipor Joaquim Inojosa.

Abraço cordial do

Gilberto Mendonça Teles

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Obrigado, Braga,
por divulgar
A jóia rara
do Valdemar.

Eis a lembrança
Que pinta e borda
Coisas e cores
Do coração...

Que muito sabe
E que se recorda
E renova a saudade
Do Jaime Cortesão.

Com os cumprimentos do marianense Geraldo Reis.

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Sempre bom ler seu Blog, amigo.

Hilma Ranauro