De forma explícita e direta será tratado um subtema que foi apenas esboçado na matéria anterior intitulada A PALAVRA “JUDEU”, por Rosetta Loy. Refiro-me ao poema "Abel e Caim", do capítulo Revolta, extraído de As Flores do Mal, por Baudelaire. O texto que aqui será reproduzido pode ser considerado uma recensão crítica (publicada originalmente na Folha de São Paulo, Caderno Especial, edição de 4/9/1995) do livro OS FILHOS DE CAIM: Vagabundos e miseráveis na literatura europeia 1400-1700 por Bronisław Geremek (Tradução: Henryk Siewierski), São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 372 p. Portanto, hoje damos continuidade à discussão iniciada no texto imediatamente anterior.
O pequeno mendigo, de Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682), óleo sobre painel, acervo do Museu do Louvre, Paris |
No poema "Abel e Caim", do capítulo "Revolta" de "As Flores do Mal", Baudelaire expõe em dísticos, alternadamente, os destinos opostos das gerações de Abel e Caim. A raça abençoada de Abel goza de todos os benefícios materiais e morais da vida: dorme, come, bebe, tem as oferendas bem recebidas pelos anjos, é fecunda, produz e reproduz como os percevejos dos bosques, inclusive seu ouro, se aquece no lar patriarcal e até seus cadáveres são úteis, adubando o solo quente. A raça deserdada de Caim sofre todos os martírios dos malditos: chafurda no lodo, suas entranhas uivam de fome como um cachorro velho, treme de frio nas cavernas como o chacal, o coração queima de um amor perigoso e sua família se arrasta arquejada pelas estradas, condenada a um esforço infinito.
Nos dois últimos dísticos, o poeta para de descrever as situações contrastantes e passa a fazer projeções. Para a vergonha da raça de Abel, "Le fer est vaincu par l'épieu!", o ferro do arado da sua geração laboriosa é vencido pelo da espada dos nômades de Caim, invertendo a situação de ambos, como aparecem no "Gênese", Caim agricultor e Abel pastor. E a raça de Caim sobe ao céu "et sur la terre jette Dieu!".
Seja nas exposições seja nos anseios, toda a simpatia e a solidariedade do poeta está com os deserdados de Caim, o que o aproxima dos românticos hugoanos, que enxergavam neles mais humanidade. Porém não é aí também que encontra identidade, os valores que lhe permitam a transcendência "d'un monde où l'action n'est pas la soeur du rêve". O poeta agora está só, o que o distancia deles.
Ao lado da dimensão simbólica dessa divisão dos homens, podemos enxergar também uma histórico-social, vendo na geração de Abel o burguês, o homem integrado e satisfeito: prolífico, virtuoso, honesto e, até possivelmente, belo; qualidades garantidas porém pela mesa farta e renda segura, tendo a posse como a base de sustentação das virtudes. A raça de Caim não se limita ao pobre destituído e explorado pelo novo sistema fabril, e a sua vitória final "o anúncio da vitória do proletariado revoltado", como interpreta o crítico ¹. Seus deserdados são também prostitutas, criminosos, vagabundos e mendigos, mais próximos do lumpesinato * e da boêmia (os pobres "indignos" e "não-respeitáveis") do que do mundo do trabalho.
Para o poeta, a riqueza nas suas manifestações exteriores e morais divide e separa os homens, e o que o comove é o olhar da pobreza diante dela. Olhar inquietante e revelador, capaz de surpreender uma humanidade composta de seres tão diferentes e iguais ao mesmo tempo, como podemos observar em "Le Joujou du Pauvre", "Les Yeux des pauvres", "Assommons les Pauvres!" e outros, nos "Pequenos Poemas em Prosa". Seus "filhos de Caim" são aqueles que ficam de fora, à margem, na contramão da vida social corrente e não participam da festa e da hipocrisia comum do mundo burguês. Pertencer ou não ao universo do trabalho não é tão importante quanto afrontar e negar com seu modo de vida os termos da convivência postos pela modernidade. Nesse sentido, o dândi e o "flâneur" equivalem aos vagabundos e miseráveis. A atitude do poeta de solidarizar-se, colocar-se ao lado deles e acompanhá-los na recusa só foi possível no século 19, com as profundas repercussões que conhecemos para a poesia.
No período estudado por Geremek, de 1400 a 1700, o termo "filhos de Caim" não tem o sentido positivo, subjetivamente dado pelo poeta, invertendo-o segundo seus próprios critérios e a partir de uma visão muito pessoal do mundo (porém global, pois todos os homens participam de uma ou de outra categoria). "Filhos de Caim" é o nome que a tradição deu a um grupo relativamente definido de pessoas: vagabundos, mendigos, vigaristas, ladrões e bandidos, e o traço comum é o de não participarem de uma das duas pontas do processo de trabalho, a dos esforços da produção, embora sejam quase todos ávidos pela posse dos resultados e benefícios.
Não é à toa que se recorra muitas vezes aos ratos para a sua representação, não tanto pelo aspecto asqueroso dos bichinhos, como pelo lugar muito singular que ocupam no mundo animal. Nem permaneceram selvagens, mantendo-se afastados dos campos cultivados e cidades, nem se deixaram domesticar como cachorros e gatos, firmando um contrato de troca e convivência com o homem. Os ratos concentraram-se nas margens dos espaços ocupados, nem fora nem dentro, nos interstícios fronteiriços e subterrâneos, onde podiam se esconder e de onde podiam aproveitar os dejetos e os descuidos da civilização que os repelia. Desse modo, "o marginal" (sem o sentido pejorativo que a palavra tem para nós) não é aquele que se coloca fora de uma sociedade que recusa, mas o que se mantém nas bordas, numa posição que lhe permite participar da melhor maneira do que ela produz, contanto que não pelo trabalho.
O objeto de estudo de Geremek não é portanto o pobre: o camponês, o servo, o artesão ou as camadas ditas populares das sociedades tradicionais europeias, aqueles que representam as raízes de sustentação da sociedade, como aparecem no admirável sonho alegórico de Simplex, no "Simplicius Simplicissimus", do século 17, de Grimmelshausen: “A raiz da árvore era feita do povo miúdo, artesãos, mecânicos, camponeses sobretudo e outras pessoas negligenciáveis. E entretanto eram eles que comunicavam à árvore a força e a vida, e rejuvenesciam sua seiva, à medida que ela se consumia...” ². O “marginal” de que trata o autor é também muito distinto dos excluídos da ordem atual. Enquanto estes são resultantes de um desenvolvimento econômico e tecnológico perversos, que, ao invés de criar novos postos de trabalho permitindo a integração, reduzem e expelem para as periferias sociais cada vez mais pessoas, nas sociedades tradicionais estudadas por Geremek dá-se justamente o contrário: as determinações dos poderes estão sempre voltadas para a assistência caritativa e a coação ao trabalho; as legislações, como as Poor Laws inglesas, e as ações, como a marcação a ferro e a fustigação, têm sempre em vista reprimir “a vadiagem” do pobre e forçá-lo ao trabalho. São formações com orientações e dinâmicas opostas que criam deserdados de naturezas muito distintas: uma que desqualifica e desemprega, e outra que obriga e sujeita. Não tem sentido perguntar qual a pior.
Mas a preocupação do livro não é com a história social. Ele está mais voltado para uma história das representações, um estudo das imagens que produziram determinados grupos capazes de expressão de outros, que não gozaram das mesmas condições: aqueles que não tiveram voz nem meios na história. É esta perspectiva que leva o autor a se utilizar da literatura para o estudo da história, entendendo-se bem que sua preocupação não é com o fato social ou a verdade do fato, mas com a refração do objeto na representação e expressão de um sujeito pertencente a um outro campo social. De outro modo, como os filhos de Abel viram e representaram os filhos de Caim, ou, nas palavras do autor: “...tais representações integravam a cultura e a literatura da elite, e que foram absorvidas pelas elites sociais como produtos das elites intelectuais” ³. Segundo a representação feita por alguém estranho, quando não hostil, ao objeto representado, o preconceito contamina o meio onde a imagem se refrata, o que a deforma num alto grau.
A escolha do objeto e a orientação da pesquisa — as imagens literárias dos vagabundos e miseráveis — mereceriam uma discussão quanto a sua produção de sentido e ao resgate de valores (como o foi para Bakhtin estudar a cultura popular da Idade Média e do Renascimento, o sistema de imagens do baixo e do grotesco, na literatura de Rabelais, um dos trabalhos-guia do autor). Em “Os Filhos de Caim”, o leitor com frequência sente-se olhando para um vazio axiológico e fica se perguntando sobre suas motivações e o que extrair dali, já que Geremek trabalha apenas na reconstituição das imagens, sem revelar outra dimensão que pudesse alterar a visão a respeito do sujeito estudado.
Ele ainda enfrenta duas dificuldades que mereceriam ser discutidas, mas que só poderemos enunciar aqui. A primeira é quanto às fontes, que incluíam obras efetivamente literárias, como poemas, novelas e romances, e outras que só tinham algum valor literário, como crônicas e narrativas de observação ⁴, ou eram simples relatórios, panfletos, documentos judiciais, éditos etc. São fontes onde a convenção e a observação, o preconceito e a informação nova se combinam de modos e com pesos muito distintos e dão às imagens naturezas também diversas.
Geremek porém tem o devido cuidado e mantém sempre muito discernimento nas interpretações e análises. É um dos melhores méritos do autor, para a satisfação do leitor alheio à área historiográfica, que espera sempre pegar o historiador na curva. A segunda, ligada à anterior, é quanto à relação e combinação dos estudos históricos com os literários, aproximação ao mesmo tempo fecunda e perigosa. É o modo de reunião desses dois campos no livro que parece mais problemático, gerando muitas vezes um sentimento de indefinição (e insatisfação): por um lado, é muito reduzido o seu olhar sobre o objeto histórico-social na realidade empírica, o que faz com que o referente perca em densidade ⁵ e não se mostre com outras facetas que foram obscurecidas pelos contemporâneos; e, por outro, ao procurá-lo na literatura, “excelente espelho da consciência social” (pág. 10), “como num espelho côncavo” (pág. 8), não tem como não reduzir agora a literatura a essa função de espelhamento, na sua procura pela imagem — “spectrum”, dando muitas vezes a impressão do autor estar caçando fantasmas —, sem compreendê-la integrada ao todo da forma literária. Dificuldades e perigos porém de que Geremek tem clareza e que o faz atravessar com habilidade os riscos das fronteiras.
II. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Baudelaire, Charles. “Oeuvres Complètes”, Paris, Robert Laffont, 1980, pág. 957, nota à pág. 91
* Nota do gerente do blog: Para uma exposição do lumpesinato, o leitor pode servir-se da Wikipedia, por exemplo: Link: https://www.soescola.com/glossario/lumpesinato-o-que-e-significado 👈
Além disso, há um trecho muito elucidativo na Introdução de Os Filhos de Caim..., por Geremek, que merece ser reproduzido aqui por sua importância (pp. 8 e 9):
“Quando a Ópera dos mendigos, de John Gay, foi apresentada nos palcos de Londres no século XVIII decifraram-se esses dois planos (o do pobre, por um lado, e o do marginal, por outro) e evidenciaram-se claras alusões aos governantes da Inglaterra. Em 1927, quando a peça voltou aos palcos de Londres, as alusões haviam perdido todo o seu peso mas os dois planos continuavam funcionando: além do exótico, da brincadeira e dos dramas de amor reduzidos a uma dimensão caricatural e anã, o público captou também a imagem das forças ameaçadoras que cresciam nas classes sociais baixas, forças que rejeitavam os princípios da ética e anunciavam a queda da ordem social dominante. Nas vésperas da ascensão do nazismo ao poder, em 1928, Bertolt Brecht retomou a obra de Gay e a sua Ópera dos três vinténs começou a triunfar nos palcos alemães (depois o dramaturgo alemão fez uma adaptação romanceada e atualizada da peça). De acordo com a concepção de Brecht, Macheath na peça de John Gay (Mack the Knife em inglês, Mackie Messer em alemão ou Mackie, o Punhal em português) devia ser uma personagem burguesa. A obra tinha por objetivo atacar a complacência, para não dizer a simpatia, dos burgueses em relação aos bandidos, provando a falsidade da opinião de que estes nada têm a ver com aqueles e de que o burguês não pode ser bandido. Mas quando no final do segundo ato são pronunciadas as palavras de Mackie (abreviado para Mac):
Finalmente, observe que “o texto da Ópera do Malandro (1978) de Chico Buarque é baseado na Ópera dos Mendigos (1728), de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weil. (...)”, conforme Nota (em que o próprio autor referencia a fonte do texto) no livro “Ópera do malandro” por Chico Buarque de Holanda, São Paulo: Círculo do Livro, 1978, p. 17.
² Grimmelshausen, Johann Jacob. “Les Aventures de Simplicius Simplicissimus”, Alençon, Aubier, 1988, col. bilíngue, págs. 116 e 117 (t. do a.). Ou os círculos externos de cor preta, na alegoria da mesma família, de Gonçalves Dias, que representa a sociedade brasileira como as circunferências concêntricas provocadas por uma pedra lançada no lago, no diálogo “Meditação”, ficando no centro, como os círculos menores, “um punhado de homens” de cor branca
³ Geremek, Bronisław, op. cit., pág. 302. Sobre a relatividade desses pressupostos, ver a “Introdução” do livro de Gertrude Himmelfarb, “La Idea de La Pobreza: Inglaterra a Principios de La Era Industrial”, México, FCE, 1988, em especial pág. 25
⁴ Entre estes, para um estudo equivalente da mendicância e marginalidade no Brasil, é uma fonte interessante, não pelo que contém de observação, mas como visão “ilustre” do preconceito, que combina com piedade gosto pelo pitoresco e medidas repressivas, o livro de Mello Moraes Filho, “Factos e Memórias - A Mendicidade do Rio de Janeiro. Ladrões de Rua. Quadrilhas de Ciganos...”, Rio de Janeiro, H. Garnier, 1904
⁵ Ver o livro notável de Gertrud Himmelfarb, acima citado, onde ela articula de modo exemplar a história social com a história das ideias no estudo do tema
III. BIBLIOGRAFIA
BUARQUE, Chico: Ópera do malandro, São Paulo: Círculo do Livro, 1978, 248 p.
GEREMEK, Bronisław: OS FILHOS DE CAIM: Vagabundos e miseráveis na literatura europeia 1400-1700 (Tradução: Henryk Siewierski), São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 372 p.
2 comentários:
Prezad@,
LUIZ RONCARI, professor, escritor e crítico literário, escreveu uma recensão crítica (publicada originalmente na Folha de São Paulo, Caderno Especial, edição de 4/9/1995) do livro OS FILHOS DE CAIM: Vagabundos e miseráveis na literatura europeia 1400-1700 por Bronisław Geremek (Tradução: Henryk Siewierski).
Pela sua profunda abordagem de determinado subtema do livro — o poema de Baudelaire —, o gerente do Blog do Braga acha por bem complementar o primeiro capítulo do livro “A palavra "judeu"” de Rosetta Loy com a leitura de recensão crítica do livro de Geremek.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/02/os-filhos-de-caim.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caro professor Braga
Interessante tema bíblico cujo sentido é social e afeta sentidos éticos. Excelentes abordagens! Nesse campo, lembremo-nos também das polêmicas análises de E. Hobsbawn e seu conceito de "bandido social ".
Saudações,
Cupertino
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