segunda-feira, 15 de abril de 2024

A VIDA TROPICAL DE JOSEF MENGELE, o “Anjo da Morte” de Auschwitz


Por António Araújo *
 
Transcrevemos com a devida vênia do suplemento de artes ÍPSILON do jornal PÚBLICO, edição da sexta-feira, de 12/04/2024, p. 12.
Baviera Tropical, da jornalista brasileira Betina Anton, conta a história do médico nazi mais procurado do mundo, que viveu quase duas décadas no Brasil sem ser capturado.

 
 “Posso afirmar categoricamente que este homem está bem morto”, disse o delegado Romeu Tuma, com gélida ironia, aos jornalistas que, naquela quinta-feira, 6 de Junho de 1985, o acompanharam ao Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, a 25 quilómetros do centro de São Paulo. 
 
Ao seu lado, na vala aberta, um esqueleto desfeito em pedaços, que os coveiros iam retirando osso a osso, começando pelo crânio, logo entregue ao dr. José António de Mello, vice-director do Instituto Médico-Legal de São Paulo, que o exibiu triunfalmente aos repórteres, como se fosse um troféu de caça, que em parte o era. Por perto, uma mulher de ascendência alemã, Liselotte Bossert, que durante anos dera guarida ao criminoso nazi mais procurado do mundo, Josef Rudolf Mengele, apelidado “Anjo da Morte” pelos prisioneiros de Auschwitz. 
 
Ao contrário do que frequentemente se diz, Mengele não era o médico-chefe de Auschwitz-Birkenau, cabendo esse título sinistro a Eduard Wirths, que se suicidou por enforcamento em Setembro de 1945, após ter sido capturado pelos Aliados. Contudo, é Mengele que sempre se recorda como símbolo maior das atrocidades perpetradas pelos médicos que trabalhavam nos campos de concentração e que, à chegada dos comboios, seleccionavam os que deveriam ir de imediato para as câmaras de gás e os que viam a morte adiada, enquanto eram sujeitos a abomináveis experiências pseudocientíficas que ora os matavam em lenta agonia, ora lhes deixavam marcas e traumas para o resto dos dias. 
 
Não sendo uma biografia de Josef Mengele, até porque esse trabalho já foi feito por vários autores, com destaque para Gerald Posner e John Ware (Mengele: The Complete Story, 2000), mas também, na esteira destes, por Anna Revell (Josef Mengele: Angel of Death, 2018) ou por David Marwell (Mengele: Unmasking the “Angel of Death”, 2020), Baviera Tropical, da jornalista brasileira Betina Anton, é uma trepidante narrativa da fuga e da estada do criminoso nazi no Brasil, onde pôde esconder-se e sobreviver incólume durante duas décadas, até morrer afogado, em 7 de Fevereiro de 1979, após ter sido vítima de um AVC enquanto se banhava nas águas cálidas da praia da Enseada, em Bertioga, no litoral de São Paulo. 
 
Uma sorte dos diabos 
 
A ida para a América do Sul não se deveu ao apoio da mítica Odessa, organização que nunca terá existido, segundo a autora, mas das famosas ratlines, as redes de fuga que, por vezes com a cumplicidade do Vaticano, permitiram que muitos nazis escapassem à acção da justiça terrena. Mengele e tantos outros beneficiaram do amparo das ditaduras sul-americanas da época — a de Stroessner no Paraguai, a de Perón na Argentina, a do Brasil dos militares — e tiveram o discreto auxílio, anos a fio, dos familiares que ficaram na Alemanha ou na Áustria (o que, no caso de Mengele, vindo de gente de posses, donos de uma empresa de máquinas agrícolas, foi um apoio precioso). Mais decisivamente ainda, contaram com as comunidades de língua alemã radicadas nos trópicos ou, melhor dizendo, com alguns membros dessas comunidades, como Wolfram Bossert e sua mulher, Liselotte. 
 
Foi esta, fiel até ao fim, que os jornalistas surpreenderam no Cemitério do Rosário. E, por incrível que pareça, uma das mais remotas memórias de infância de Betina Anton, a autora de Baviera Tropical, é a de “Tante Liselotte” (“Tia Liselotte”), sua querida professora numa escola em Santo Amaro, São Paulo. Betina, também ela uma mulher de ascendência germânica, só soube muito mais tarde, como é evidente, que, durante dez anos, a sua ex-professora protegeu Josef Mengele contra tudo e todos, recebeu-o em sua casa, levou-o a passear à praia aos fins-de-semana. Depois, quando ele morreu, foi Liselotte que o enterrou — e como ele queria, com os braços colocados ao longo do tronco, como um guerreiro em sentido. Mesmo correndo riscos sérios, nunca o denunciou à polícia e, mais ainda, resistiu às ofertas milionárias que as organizações mundiais judaicas e os “caçadores de nazis”, com Simon Wiesenthal à cabeça, faziam em troca de informações sobre o paradeiro de um dos fugitivos mais procurados do planeta. 
 
Mengele teve também uma sorte dos diabos — e a astúcia que faltou a outros, como Adolf Eichmann, cuja captura num subúrbio de Buenos Aires, em Maio de 1960, e subsequente julgamento em Jerusalém, em muito perturbaram o “Anjo da Morte”, que passou a segunda metade da sua existência em permanente sobressalto. O livro mostra também — e esse é um dos seus pontos mais interessantes — que o médico nazi acabou por beneficiar da indecisão dos seus captores e, em especial, da oscilação da política de Israel em matéria de ex-criminosos de guerra, cuja captura ora foi assumida como prioridade número um dos serviços secretos, ora foi relegada para segundo plano em face de outras e mais urgentes ameaças, como as da guerra do Yom Kippur (curiosamente, depois de terem descurado a sua descoberta, os israelitas insistiriam, contra o parecer dos investigadores brasileiros, alemães e norte-americanos, que Mengele não só não morrera no Brasil como continuava a residir tranquilamente no Paraguai). A Alemanha, outro actor decisivo nesta trama, só despertou tardiamente para o imperativo de capturar e julgar os criminosos do III Reich; em bom rigor, as autoridades alemãs mobilizaram-se apenas em 1963, com os “julgamentos de Frankfurt-Auschwitz”, e, mesmo assim, nem sempre com especial empenho, como o mostrara o exemplo de Fritz Bauer, o procurador de Frankfurt que, em meados dos anos 50, e ante a passividade dos magistrados e das polícias do seu país, acabou por transmitir ao director da Mossad, Isser Harel, informações cruciais que permitiram a localização de Adolf Eichmann e o seu sequestro pelos israelitas. 
 
Não só nada disto é novo como tem sido abundantemente tratado em livros e documentários, filmes e séries de televisão, inclusive em obras romanceadas, como O Desaparecimento de Josef Mengele, de Oliver Guez (Planeta, 2018). Entre nós, e sobre a caça aos nazis, dispúnhamos já, entre outros, de Eu Persegui Eichmann, de 1972 (Círculo de Leitores), e Os Assassinos Entre Nós, de 1974 (Editores Associados), ambos da autoria de Simon Wiesenthal, um homem que acabou por ter um papel negativo nas buscas por Josef Mengele, ao insistir vezes sem conta que ele se encontrava no Paraguai, e não no Brasil (infelizmente, não foi traduzida entre nós a sua biografia da autoria de Tom Segev, Simon Wiesenthal: The Life and Legends, de 2010, nem sequer The Wiesenthal File, de 1993, da autoria de Alan Levy, igualmente interessante). Além de livros sobre ex-nazis, os horrores da medicina nazi foram tratados em Os Médicos da Morte, de Philipe Aziz, de 2019 (Livros do Desassossego), havendo também uma obra, Quando a Medicina Enlouqueceu — A Bioética e o Holocausto, de Arthur L. Caplan (Instituto Piaget, 1997), que discute a questão de saber se será ético utilizar, nos nossos dias, os dados recolhidos nos campos de morte e o produto das experiências aí realizadas. Infelizmente, permanecem por traduzir as duas grandes obras sobre a medicina nazi, o clássico de Robert Jay Lifton, The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide, de 1986, e Murderous Science: Elimination by Scientific Selection of Jews, Gypsies, and Others, Germany 1933-1945, de Benno Muller-Hill, 1988 (citamos a edição inglesa, mas há tradução brasileira). Menção ainda, como é evidente, para a investigação de José Pedro Castanheira sobre o médico português Ayres de Azevedo, primeiro saída no Expresso e, mais tarde, em livro: Um Português no Coração da Alemanha Nazi, de 2010. 
 

 
Em face desta esmagadora bibliografia, Baviera Tropical consegue surpreender, trazendo factos novos e desconhecidos, fruto do notável labor de Betina Anton, que percorreu arquivos de todo o mundo e conseguiu entrevistar alguns dos protagonistas-chave desta saga, como Liselotte Bossert, o já falecido Rafi Eitan, chefe do comando israelita que raptou Eichmann, Yigal Haychuk, o agente brasileiro da Mossad que participou nas frustradas operações de captura de Mengele, diversas vítimas deste, com destaque para Eva Mozes Kor, também já falecida, polícias, médicos, investigadores e vários membros da comunidade alemã de São Paulo, que falaram sob anonimato. O seu trabalho de muitos anos permitiu-lhe ainda, e entre outras descobertas, aceder a quase uma centena de cartas escritas por e para Josef Mengele, cujas transcrições não deixam de nos arrepiar, ao revelarem o quotidiano do monstro, mas também a sua enorme capacidade de ardil e dissimulação, deixando entrever o que já adivinhávamos: uma personalidade transviada, incapaz de empatia com os outros, recheada de tiques autoritários, barbaramente racista e desumana. 
 
No fundo, e em síntese, Betina Anton teve uma intuição certeira, ao perceber que seria inútil escrever mais uma biografia de Josef Mengele, sendo muito mais inteligente — e produtivo — explorar os seus três grandes trunfos: a ascendência germânica, o acesso à comunidade alemã de São Paulo, onde cresceu, e o facto de ter nascido e de viver no país que Josef Mengele escolheu para sua última morada (aliás, a dois passos de Mengele, o qual, a convite de Liselotte Bossert, chegou a visitar a escola que Betina frequentava...) 
 
O resultado é um livro apaixonante, escrito como um thriller, segundo a sua autora. Terminada a leitura, a sensação que fica, porém, é de desapontamento e injustiça. Condenado eternamente pelo juízo da História, Josef Rudolf Mengele conseguiu furtar-se ao julgamento dos homens; e, pior ainda, o rasto de horror e trevas que deixou parece estar hoje esquecido, tantos são os que reclamam o seu macabro legado, ou que o relativizam e menorizam. Por isso, até por isso, um livro muito importante.
 
* António Araújo é historiador, crítico literário, responsável pela escolha dos autores da colecção retratos da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Também é conselheiro do presidente da República. É licenciado e mestre em Direito e doutor em História. Publicou já vários livros sobre direito e história contemporânea, recebendo destaque: Da direita à Esquerda-Cultura e sociedade em Portugal, dos anos 80 à actualidade.

 
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OBS. do Gerente do Blog de São João del-Rei
À maravilhosa bibliografia fornecida pela resenha de António Araújo, convém adicionar pelo menos mais dois livros de grande utilidade para pesquisadores da vida tropical de Josef Mengele ou de sua biografia. O primeiro consiste num livro pelo dramaturgo e escritor norte-americano Ira Levin (1929-2007), que escreveu um romance de ficção científica intitulado The Boys from Brazil, transportado para as telas de cinema por Franklin J. Schaffner em um thriller de ficção científica de título homônimo, em 1978. O papel de Josef Mengele coube a Gregory Peck, enquanto o caçador de nazistas Ezra Lieberman ficou com o ator Sir Laurence Olivier, e o de Esther Lieberman, com Lili Palmer. Nesse filme que entre nós recebeu o nome de Os Meninos do Brasil e, em Portugal, o de Os Comandos da Morte, o caçador de nazistas Ezra Lieberman segue a pista de criminosos de guerra até a América do Sul, onde descobre e tenta impedir que o plano diabólico do cientista do III Reich Josef Mengele planeja o nascimento do IV Reich através de 94 clones de Adolf Hitler quando este ainda era garoto, utilizando para tal fim várias mães de aluguel em uma clínica brasileira, e enviá-los para serem adotados em diversos países. Claro que só isso não basta, pois era preciso ainda serem criadas diversas variáveis para traçar o perfil psicológico de Hitler. Isso se passa, enquanto Josef Mengele vivia anônimo no Paraguai. 
 
Editora Círculo do Livro, 1985
 
 
O resumo do livro abaixo foi feito pela jornalista Márcia Lira em 24/04/2010 para Menos1naestante, a saber: 
No Brasil da década de 70, um médico nazista reúne um grupo de ex-oficiais de Hitler para cumprirem a missão de matar 94 homens de 65 anos em vários países da Europa. É a primeira fase de um plano para instaurar o IV Reich. Pistas dele chegam ao judeu “caçador de nazistas” Liebermann, que é o Sherlock Holmes da história. Se não quer saber o final do livro, pare por aqui. 
Descobre-se, depois de muitas páginas, que a conspiração envolvia avançada tecnologia molecular: o médico Josef Mengele conseguiu criar crianças-clones e espalhá-las para adoção por famílias “perfeitas” da Europa. Bebês com as características da “raça ariana”, mais especificamente clones de Hitler. Os assassinatos eram mais um cuidado dos conspiradores para reproduzir o ambiente social em que o líder nazista, que perdera o pai quando era adolescente, vivera. 
O mais bizarro foi constatar que o médico Josef Mengele (fotos abaixo), mais conhecido como “O Anjo da Morte”, existiu e realmente executou inúmeras e hediondas experiências com gêmeos judeus prisioneiros de Auschwitz. 
Registros indicam que ele se refugiou no Brasil, mais especificamente no Rio Grande do Sul. No ano passado, o jornalista argentino Jorge Camarasa lançou o polêmico livro O Anjo da Morte na América do Sul, onde explora a passagem do alemão por aqui. O escritor aborda os rumores de que o médico teria, usando nome falso, continuado suas experiências no País, e assim influenciado o alto índice de gêmeos na pequena cidade de Cândido Godói (RS), por volta de 1963. Em vez da média nacional de um parto de gêmeos em 80, na época, o lugar teria um desses para cada cinco partos. 
 
Uma de cada cinco gestações em Cândido Godói resultou em gêmeos - Crédito: The Telegraph

 
Muitos cientistas negam a possibilidade, mas ela é super intrigante. Saiba mais aqui e aqui.
A única coisa que dá para concluir é que esses rumores inspiraram o romance de Ira Levin, o dramaturgo e escritor que faleceu em 2007. A história foi transformada em filme, em 1978. Ele explorou bastante o suspense, sendo inclusive lisonjeado com comparações com Hitchcock. O filme O Bebê de Rosemary é adaptação do livro dele chamado A Semente do Diabo.
 
 
BIBLIOGRAFIA


LIRA, Márcia: "Os Meninos do Brasil", ficção científica nazista de Ira Levin, publicado em 24/04/2010 pelo portal Menos1naestante
Link: https://menos1naestante.com/quando-uma-ficcao-cientifica-nazista-nao-e-bem-uma-ficcao/  👈

THE TELEGRAPH: Nazi angel of death Josef Mengele 'created twin town in Brazil' por Nick Evans em Buenos Aires, em 21/01/2009 


WIKIPEDIA: verbete "The Boys from Brazil"
Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Boys_from_Brazil  👈

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O Blog de São João del-Rei hospeda uma resenha crítica do historiador ANTÓNIO ARAÚJO intitulada A vida tropical de JOSEF MENGELE, o Anjo da Morte de Auschwitz, feita para o livro BAVIERA TROPICAL, por Betina Anton. Araújo nasceu em Lisboa em 1966, com larga experiência no Direito e na Política.
Além disso, o trabalho do historiador português ultrapassa os limites de uma resenha para ilustrá-la com uma extensa bibliografia sobre o personagem nazista, à qual me permiti adicionar dois livros: Os Meninos do Brasil de Ira Levin e O Anjo da Morte na América do Sul do jornalista argentino Jorge Camarasa.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/04/a-vida-tropical-de-josef-mengele-o-anjo.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Importante referência ao glorioso trabalho de Betina Anton ! Um assunto horripilante pela sua amplitude e também pelo fato de que, como bem o afirmou o historiador nesse artigo, está esquecido e relativizado.
Cumprimentos ! Grato pela oportunidade de sua leitura.
Cupertino

Diogo Abreu disse...

ok.

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Interessantes informações. E sobretudo, necessárias, nesse tempo em que a história mais ou menos recente deve ser conhecida e, criticamente, colocada em pauta. Muito obrigado por compartilhar.

Fernando de Oliveira Teixeira (poeta e professor universitário, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Mengele: a história e a repulsa, mais nada. Abraço.