Enquanto houver o que padece
e o que esquece do padecer;
enquanto a mão que iça o açoite
se permitir o açoitar;
enquanto a noite do desamor
trouxer a dor e a solidão;
enquanto a crença na impunidade
levar valores e o bem de nós;
enquanto a vida se ameaçar
no puro entrave da desvalia;
enquanto tudo se esvair
no só vazio do menosprezo;
enquanto o sexo se resumir
no desafogo de uma tensão;
enquanto a flor despetalada
se fizer murcha e infecunda;
enquanto o pólen voar sem rumo
sem encontrar inseto que o faça mel;
enquanto a fome matar a cria
ante o descaso dos que dominam;
enquanto a mão que empurra o arado,
cheia de calos, não tocar o pão;
enquanto o meu e o teu destino
seguir o rumo do estabelecido,
rabiscarás em versos,
poeta insone.
* Escritora com vários livros publicados, poeta, cronista, ensaísta e jornalista, membro da ABRAFIL-Academia Brasileira de Filologia, biógrafa do filólogo Sílvio Elia.
II. Análise literária de "Sina" por Francisco José dos Santos Braga
O eu feminino se faz presente no poema "Sina", mas não só, da mesma forma como vislumbrei na minha análise do poema "Descompasso" da mesma autora.
Sua perspectiva abarca desde a tortura psicológica e assédio moral até a agressão nas relações interpessoais dentro do trabalho. Mas não só: desde a violência psicológica (art. 7º da Lei Maria da Penha) contra a mulher na relação doméstica e familiar até a violência social principalmente no descaso dos poderosos diante a fome; desde o horror da intimidação feminina até a conquista de um espaço para reivindicação de direitos das mulheres; desde a violência urbana que se agrava dia a dia sem solução até a guerra civil fratricida; desde a impunidade dos que se dizem zeladores da lei até a perda de valores por parte dos que buscam em vão a justiça.
Embora a autora não se refira especificamente à violência masculina contra a mulher, que tem recrudescido ultimamente no Brasil de maneira assustadora, não obstante, no seu texto está velada a relação complexa entre homem e mulher.
Subentende-se
que ela esteja falando também de todas as espécies de violência, já que a autora não pugna por
defesa no sentido literal, mas sim extrapolando o sentido original
através de metáforas.
Analisando o funcionamento das relações pessoais e interpessoais, formais e informais, [RANAURO, 2023, 29] afirma em um de seus ensaios:
“O componente ideológico é uma dimensão significante de qualquer discurso. A comunicação implica a existência do emissor e receptor, é uma estrutura complexa de manipulação, na qual e pela qual o emissor (falante ou escritor) exerce um fazer persuasivo, e o receptor (ouvinte ou leitor), um fazer interpretativo.”
Entre as pérolas contidas no seu ensaio supracitado, destaca-se o trecho referente à censura (prévia ou não), alertando para os
“malefícios da censura nos meios de comunicação e informação. Sob a censura, o discurso do poder se impõe como único e verdadeiro. Tem-se que lutar pela liberdade de expressão, por uma imprensa livre, mas também por uma imprensa séria, responsável, de qualidade, que prime pela ética.”
O que importa à autora é que todos tenham direito de expressão, sugerindo que todos os dísticos iniciados pela conjunção temporal "enquanto" são denúncias pelo incômodo que causam ao eu lírico. Observe que são doze enunciados iniciados por "enquanto"; o complemento a todos eles ocorrerá no último dístico.
O último dístico, em forma de "coda", traz o inconformismo dele – i.é, do eu lírico – perante o "poeta insone", como se este viajasse num "magic carpet ride" (viagem num tapete mágico), alheio à realidade, embora bafejado por seus versos.
A última palavra do poema, "insone", é a chave para a interpretação mais intimista do poema e para as observações que vêm a seguir.
Num estudo intitulado "O poeta insone", em que analisa o poema "Campo, chinês e sono" de Drummond, [ALVES, 2018, 193] registrou que um dos primeiros interlocutores de Drummond foi o poeta João Cabral de Melo Neto, cuja obra de estreia foi Pedra do sono (1942). Sobre essa obra tece o seguinte comentário:
“Muitas das composições do primeiro livro de Cabral desenvolvem poeticamente aquilo que o próprio autor teorizara em 1941, no Congresso de Poesia do Recife. Em “Considerações sobre o poeta dormindo”, ele defendia a tese do “sono” como um estágio de predisposição à poesia, porque caracterizado por uma situação marginal do eu, na qual ele poderia contemplar-se como objeto (MELO NETO, 1994, p. 686-687). Esse eu marginal daria o tom dos poemas da Pedra do sono, os quais se valem de justaposições inesperadas e de imagens insólitas como objetos que, vistos com distanciamento, refratam, no entanto, o mundo psíquico do eu lírico.”
Acredito que essas ideias sejam válidas não só para Pedra do sono, mas para qualquer produção poética, fruto daquela sonolência ou estado letárgico enquanto se mantém a consciência.
Em seu célebre, mas pouco lido, ensaio Considerações Sobre o Poeta Dormindo, Cabral faz uma diferenciação entre sono e sonho, mostrando como o primeiro predispõe à poesia:
“Diversas pessoas têm falado no sono como trampolim para o sonho, essa fuga efetiva do homem às dimensões comuns do seu mundo. Eu tentarei falar aqui do sono em suas relações com a poesia (relações secretas, porém não apenas: suspeitas), do sono como fonte do poema.”
Ressalte-se o esclarecimento que faz [CASTELLO, 2014] para a compreensão do termo "dormindo":
“Não é só "dormindo" que o poeta se aproxima da poesia. Ele faz isso, sobretudo, quando tenta falar dessa experiência que para sempre lhe escapa. Pois a poesia é isso: a perseguição de alguma coisa que nos fugirá. Derrota antecipada que não desestimula, ao contrário estimula a escrita. O poeta não quer demonstrar tese alguma. Quer, apenas, perseguir.”
Assim sendo e para concluir nossa análise, observo que, no dístico final, é possível que o eu lírico esteja sugerindo que o poema está estruturado na forma de um monólogo nos dísticos iniciados por "enquanto", ao passo que, no último dístico, interpela um(a) poeta (substantivo comum de dois gêneros), real ou fictício(a), incluindo-se aqui a própria autora.
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ALVES, Fabio Cesar: O poeta insone, revista Gragoatá, Niterói, v. 23, nº 45, pp. 190-207, jan-abr 2018
CASTELLO, José: Poesia e sono, jornal Gazeta do Povo, edição de 18/10/2014
COSTA, Cristina Henrique da: Imaginando João Cabral Imaginando, Campinas: Editora Unicamp, 2014, 456 p. 👈
MELO NETO, João Cabral de: Pedra de sono, Recife: Oficinas Gráficas de Dreschsler & Cia, 1942, 20 p.
RANAURO, Hilma: Comunicação, informação e manipulação: o componente ideológico, revista Confluência. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, nº 65, jul-dez 2023, pp. 21-37
______________: Descompasso, post publicado pelo Blog de São João del-Rei em 10/10/2023
7 comentários:
Prezad@,
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de hospedar novamente a colaboradora poetisa HILMA RANAURO, desta vez com o poema SINA, dando oportunidade ao gerente do blog de analisar a peça poética.
Para isso, o analista dividiu o poema em duas partes distintas, servindo-se de uma fortuna crítica considerável, incluindo um ensaio da própria autora do poema.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/12/sina.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Conheço a poetisa. Vale a pena hospedá-la no Blog.
Abraço afetuoso do Gilberto Mendonça Teles
Força à Poesia, Braga. Poesia, afinal é vida.
Parabéns a ambos, autora e crítico.
Um abraço poético e barro.
E votos de feliz natal!
Ô amigo, mais este presente!
Hilma
Belo poema que mereceu um profundo ensaio, caro Francisco Braga.
E o poeta continua insone em noites brancas.
Abraço grande,
Raquel Naveira
Caro professor Braga
Uma análise que elucida o sentido último da poesia e destaca o inconformismo existencial como o "leitmotiv" da própria expressão poética.
Grato pela oportunidade das leituras.
Saudações
Cupertino
Caro amigo Braga
Parabéns pelo refinamento de sua análise literária sobre o belíssimo Poema “Sina”, de autoria da Poetisa Hilma Ranauro, a quem felicitamos pela grandeza de sua inspiração poética e a profundidade de sua mensagem, que abarca com rara maestria o comportamento humano.
Receba o meu abraço saudoso e o de Beth.
O amigo Mario P. Cupello
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