Texto retirado do capítulo VI do livro Introdução aos Estudos Históricos, 4ª edição revista e ampliada, São Paulo: E.P.U.-EDUSP-Editora da Universidade de São Paulo, 1974, pp. 103-114.
§ 31. O PRESTÍGIO DA HISTÓRIA
Quase todas as civilizações de que temos conhecimento, buscaram nas lições do passado normas de agir, e exemplos inspiradores, ou então, motivos de consolo nos seus pesares. Com efeito, o prestígio da história foi sempre muito grande, apesar de não lhe faltarem, de vez em quando, adversários.
I. Na Antiguidade
Os gregos, em geral, estimavam bastante a história, confiando-a à proteção especial de uma das nove musas: Clio ¹. Apreciavam-na também vários filósofos. É verdade, para Platão o mundo histórico, sujeito que está à lei da eterna mudança, não podia ser o objeto de um conhecimento genuíno, e até o realista Aristóteles julgava a história menos filosófica e séria do que a poesia, porque esta é mais universal e aquela tem por objeto o singular ². Não obstante, aproveitava-se muitas vezes dos resultados da história, e não desdenhava fazer ele próprio pesquisas históricas ³. Entre os seus discípulos achavam-se historiadores ilustres ⁴. Cícero elogiou a história com estas palavras: testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis ⁵. Tornou-se célebre a sentença do príncipe da eloquência romana, principalmente a expressão feliz: magistra vitae. Os cristãos avaliavam bem o caráter histórico da Encarnação, já indicado por São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, é pois vã a nossa pregação, é também vã a nossa fé" ⁶, e serviam-se, desde os tempos primitivos da Igreja, de dados históricos para confirmar os acontecimentos da Bíblia e para refutar as objeções dos adversários ⁷.
II. Os ataques do Racionalismo
Foi só na época do Racionalismo nascente, nos fins do século XVII ⁸, que se manifestou uma desconfiança mais ou menos sistemática acerca do valor do conhecimento histórico. Nem é de estranhar: o conhecimento histórico está longe das idées claires et distinctes, apregoadas por Descartes como as únicas legítimas. Desde que se considera o espírito humano como tabula rasa, e se nega a unidade substancial da alma o corpo, o homem tende a ser um animal "a-histórico". Malebranche diz que os historiadores nos comunicam os pensamentos de outros sem eles próprios pensarem: Adão, no Paraíso Terrestre, possuía a ciência perfeita sem saber nada da história. Os racionalistas perseguiam os historiadores com os seus sarcasmos, dizendo que o maior especialista sabia menos da história romana do que a empregada de Cícero ⁹ e assinalando, com um deleite mal rebuçado, as numerosas incoerências da tradição, os contra-sensos, os absurdos. Só especulações metafísicas, aliás bem cedo abandonadas pelo Racionalismo, só demonstrações geométricas e experiências físicas são capazes de nos darem a verdadeira sabedoria.
Evolução paradoxal! O próprio Racionalismo, que começara por negar o valor ou até a possibilidade da história, acabou por consolidar-lhe as bases científicas. Nas suas lutas contra a tradição, que julgava arbitrária e tirânica, via-se obrigado a indagar e a examinar a mesma tradição. E, passados os primeiros combates, evidenciou-se que nela nem tudo era falso. Selecionando, criticando e ponderando, abriram caminho para uma tradição esclarecida e baseada em alicerces científicos. Desde os meados do século XVIII, a história começou novamente a exercer uma grande influência no pensamento das pessoas cultas, e o século passado foi a época áurea da historiografia. O "senso histórico" foi-se apoderando de todas as ciências.
III. Alguns protestos mais recentes
Em nome das forças vitais protestou Frederico Nietzsche contra a tirania da história, voltada que estava para o passado em vez de se dirigir para o futuro: “tudo o que possui vida, deixa de viver, logo que é submetido a uma operação histórica, por ser cortado em pedaços: um exame justiceiro de coisas vivas acaba por diluí-las em conhecimentos puros e abstratos” ¹⁰. Mas sua voz foi a de um solitário: a história seguiu constantemente o seu caminho. No século atual insurgiu-se Paul Valéry contra a ciência histórica, dizendo: “L' histoire est le produit le plus dangereux que la chimie de l'intellect ait élaboré... Il fait rêver, il énivre les peuples, leur engendre de faux souvenirs, exagère leurs réflexes, entretient leurs vieilles plaies, les tourmente dans leur repos, les conduit au délire des grandeurs ou à celui de la persécution, et rend les nations amères, superbes, insupportables et vaines. L' historie justifie ce que l'on veut. Elle n'enseigne rigoureusement rien, car elle contient tout, et donne exemples de tout” ¹¹.
Neste capítulo pretendemos examinar algumas das questões suscitadas por aqueles que elogiaram e censuraram a nossa ciência, procurando estabelecer a importância da história, e descrever os perigos que a põem em perigo.
§ 32. A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA
O estudo dos acontecimentos do passado parece-nos importante, porque:
I. As raízes do presente
A história faz-nos conhecer a nossa própria origem, revelando-nos assim uma parte considerável da nossa existência no tempo. O homem quer compreender-se a si mesmo: é o esforço constante do espírito humano. Quer saber quem é, de onde vem, e para onde vai. Ninguém pode escapar por completo a perguntas dessa natureza. Mas o homem culto tem a obrigação de aprofundar-lhes o conteúdo e de estudá-las metodicamente. Ora, a filosofia, guiada ou não pela teologia, dá a esse respeito a última resposta ao alcance do homem. A história, porém, encara o homem na sua situação concreta no tempo, num plano inferior, ainda que muito real, mostrando-nos as numerosas raízes que nos prendem ao passado, deixando-nos entrever o caráter próprio da nossa situação atual. Com efeito, o mundo em que vivemos é o resultado de vários fatores históricos. Pois não morreu o passado junto com os momentos fugitivos que o constituíam, mas continua a viver em nós, quer o aceitemos e veneremos, quer o combatamos e rejeitemos. E' uma força que não se deixa eliminar da nossa existência. Compreendeu-o muito bem a escola de todos os tempos: para formar cidadãos, para iniciar as crescentes gerações na tradição pátria, para integrá-las no conjunto social, político e religioso, tem-se valido, não só da literatura nacional, como também da história. “Le passé, le passé vivant, le passé tradition, le passé expérience, le passé qui engendre le présent, le passé patrimoine d'une nation, le passé racine du patriotisme et de l'unité, qui donc le transmet, sinon l'enseignement historique?” ¹² Evidentemente, são bem diferentes as preocupações das crianças e dos adultos, dos leigos e dos especialistas, ao se dirigirem à história: mas todos procuram nela melhor compreensão do presente, cada um de acordo com o seu grau de desenvolvimento. Talvez não haja outra ciência tão apropriada a popularizar, no sentido bom da palavra, os seus resultados.
II. O passado por causa do passado
Não estudamos a história com o fim exclusivo de melhor compreendermos o presente: dedicamo-nos ao passado também por causa do próprio passado. Interessa-nos aí, principalmente a nós, os adultos, não só o factum, mas igualmente o fieri. Os conhecimentos históricos possuem valor intrínseco, podendo-nos livrar, até certo ponto, de uma mentalidade egocêntrica. O homem "a-histórico", encarcerado que está na atualidade, tende a tornar absolutas as normas que encontra no seu ambiente. E' homem pouco "experimentado". Os melhores entre nós tentam, porém, escapar às limitações que lhes são impostas pelo espaço e pelo tempo. Já o sabia Homero: elogiava a Ulisses, porque este visitara muitas gentes, chegando a conhecer-lhes a mentalidade ¹³. A "esperteza" do herói homérico baseia-se na sua "experiência". Uma viagem por terras desconhecidas faz-nos perder certas prevenções e alarga-nos o horizonte intelectual, contanto que sejamos abertos e sinceros. Poderíamos qualificar o estudo da história de uma viagem vertical: o espírito humano, viajando através dos séculos, pode ter as mesmas consequências salutares. O próprio Descartes, de modo algum apreciador da história, observava: “c'est quasi le même de converser avec les livres des autres siècles que de voyager. Il est bon de savoir quelque chose des moeurs de divers peuples, afin de juger des nôtres plus sainement, et que nous ne pensions plus que tout ce qui est contre nos modes soit ridicule e contre raison, ainsi qu'ont coutume de faire ceux qui n'ont rien vu” ¹⁴. Com efeito, pelo fato de nos descortinar a vida humana em tempos remotos, a história nos pode curar de certas tendências egocêntricas, proporcionando-nos um certo relativismo salutar, um bom antídoto contra os dogmas e os preconceitos da atualidade.
III. E o futuro?
A história esclarece, pois, as raízes do presente no passado. Mas, conhecendo-se bem o presente, que contém os germes do futuro, não será possível predizer-se o futuro, pelo menos nas linhas gerais? Assim a história, por abranger as três partes do tempo, ganharia importância superior a todas as outras ciências. Mas exortam-nos à modéstia as palavras do Padre Vieira, apesar de ser ele autor de um livro que traz o título paradoxal: "História do Futuro", em que diz: “O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância: do presente sabe pouco, do passado menos, e do futuro nada” ¹⁵. E' uma verdade óbvia, entretanto, muitas vezes esquecida por aqueles historiadores e filósofos que sobrecarregam Clio com um ônus que lhe ultrapassa as forças. O político Bismarck, homem pragmático, motejava com as lucubrações dos historiadores-adivinhos, dizendo: “Querendo saber com certeza o que não acontecerá, faço-me informar pelo sr. Mommsen do que deve acontecer”. O historiador não pode predizer o que há de acontecer daqui a cinco minutos: não é profeta. Quando muito, é mais capacitado do que outros, — ceteris paribus, — para fazer um prognóstico, não categórico, mas hipotético ¹⁶. Conhece bem, suponhamos, as tendências vivas do tempo atual em busca de efetividade; conhece muito bem numerosas analogias históricas que lhe mostram soluções possíveis de problemas semelhantes; em suma, entende bem o rumo geral do tempo. Mas aí para irrevogavelmente a sua ciência do futuro. Pois das tendências atuais conhece forçosamente só uma parte mínima, sempre exposto a enganar-se na avaliação do seu valor existencial. Outrossim, o acaso e as livres decisões humanas, imprevistas e incalculáveis, podem sempre frustrar as tendências mais promissoras e fazer vencedoras as que neste momento se subtraem aos nossos olhos. A história é contrária a cálculos exatos sobre o futuro, porque não admite repetições mecânicas de casos idênticos, mas apenas conhece situações análogas, sempre suscetíveis de desfechos diferentes.
IV. A historiografia pragmática
Os laços, que prendem o historiador à moral, já datam da Antiguidade: lembremo-nos das palavras ciceronianas: magistra vitae. A historiografia "pragmática", inaugurada por Tucídides e prosseguida até nos tempos modernos, pretendia extrair dos fatos históricos exemplos inspiradores ou horrendos, para uso dos príncipes, estadistas, governadores e militares.
Os modernos já não acreditam, com os antigos, no caráter imperioso dos exemplos tirados da história, porque ela, como diz muito bem Paul Valéry, nos ensina de tudo; estão mesmo compenetrados de que a história, por relatar acontecimentos únicos do passado, é incapaz de nos proporcionar regras de conduta, diretamente aplicáveis às circunstâncias concretas do momento atual.
Mas a história faz muito melhor. Não nos torna prudentes para certa ocasião determinada, ensinando-nos a repetir um ato prudente do passado: nos torna sábios para sempre. A história é a experiência coletiva da humanidade: alarga-nos o terreno forçosamente limitado das experiências pessoais da vida e do homem. E' uma escola de humanismo; nada mais interessante para o homem do que o homem. E a história, no fundo, não fala senão das formas variadas de que se tem revestido o Homem Eterno através dos tempos. Faz-nos assistir às peripécias dramáticas do homem que luta e sofre, vence e sucumbe, mas que, apesar das suas derrotas e decepções, sempre se obstina em nutrir esperanças e construir seu futuro. Na história desenrola-se o drama do eterno Lutador e eterno Sofredor, ao qual não podemos assistir sem experimentar em nós sentimentos e emoções semelhantes àqueles que Aristóteles designou com a palavra" catarse", isto é, "purificação" ¹⁷. O júbilo e a miséria de outrora, as esperanças e os temores dos antepassados, as vitórias e as derrotas de gerações há muito falecidas, transformam-se para nós, observadores das vicissitudes humanas, em conhecimentos e reflexão. Reflexão sobre o quê? Sobre a riqueza e a pobreza da condição humana. Concluamos com uma palavra de Paul Hazard: “J'aime la belle rigueur d'un esprit mathématique; mais un esprit tourné vers l'hisloire me paraît, je I'avoue, plus humain” ¹⁸.
Se já não podemos aceitar a história como a pedante, tal como a imaginaram nossos antepassados, ela continua para nós "a mestra da vida", num sentido talvez mais sublime ainda; alarga as nossas experiências e ocasiona nossa reflexão sobre a condição humana. Mas, infelizmente, a magistra vitae, também na sua forma moderna, nem sempre tem alunos dóceis.
§ 33. VIRTUDES E VÍCIOS
A Crítica Histórica, nos séculos anteriores à Era das Luzes, resumia-se, por assim dizer, nestas palavras de Cícero ¹⁹: “Quem não sabe que a primeira coisa a exigir-se do historiador é que ele não tenha a coragem de falar mentiras e, depois, que tenha a coragem de falar sempre a verdade? e que não dê lugar a suspeitas de se deixar levar por sentimentos de simpatia ou antipatia?” Todos os autores — desde Cícero até Fénelon ²⁰ — concordam nestes pontos: o historiador não pode mentir, mas deve ousar dizer a verdade, por mais desagradável que ela seja, e deve ser imparcial na exposição dos fatos. Mas, depois de terem proclamado essas verdades ²¹, entram com um zelo geralmente bem maior em questões de natureza literária, dando regras mais ou menos pormenorizadas sobre a composição "oratória" da obra histórica ²². A historiografia daqueles tempos ainda não se emancipara da literatura, nem da moral. Apesar de se ter efetuado nos dois últimos séculos o processo de emancipação, continuam a ser requeridos ao historiador certas qualidades éticas e estéticas. É desses assuntos que pretendemos falar neste parágrafo final da primeira parte do nosso livro.
I. Coragem e honestidade
E' um fato inegável: tem-se mentido muito na historiografia. As paixões partidárias, o fanatismo religioso, o medo de melindrar os poderosos, a esperança de obter prêmios, o orgulho individual e coletivo, — tudo isso pode despistar o historiador, como o tem despistado na realidade. A essas mentiras propositadas e intencionais acresce uma série de mentiras, por assim dizer, quase inconscientes, originadas por preconceitos, que chegam a restringir a liberdade do historiador, impedindo-o de encarar as coisas com a devida abertura mental e serenidade.
O caráter concreto da matéria histórica não se compadece com uma atitude completamente objetiva do lado do historiador. A história não trata de abstrações, mas de fatos concretos e de pessoas concretas. Instituições religiosas e sociais, transformações políticas, movimentos revolucionários, guerras nacionais, ideologias encarnadas nas grandes figuras da história pátria, — tudo isso não deixa indiferente o historiador, porque não o deixa indiferente no presente. Suas convicções e sua visão de mundo, e também seus preconceitos, suas simpatias e antipatias refletem-se facilmente no seu estudo do passado. Tais coisas não acontecem ao estudioso da matemática, pois ela tem por objeto verdades abstratas, que se subtraem à "esfera existencial" do homem. Mas, quando um princípio abstrato, por assim dizer, desce dos céus para tomar corpo na realidade concreta, parece que se torna um tanto confuso o nosso espírito sob o impacto das nossas paixões, instintos e interesses. Segundo Leibniz, o mesmo se daria com as verdades geométricas, se chegassem a intervir na nossa existência: também elas seriam impugnadas e negadas ²³.
A objetividade absoluta no terreno da historiografia ²⁴ é uma ilusão racionalista, como o é também a ideia de uma "ciência sem pressuposições" ²⁵. Ninguém é capaz de raciocinar, e muito menos de sistematizar, sem partir de certos pressupostos: axiomas ou postulados. As "convicções pré-científicas" intervêm frequentemente, bem o sei, na interpretação dos fatos históricos (mais do que, por exemplo, na interpretação de um processo químico), mas a matéria histórica por si mesma não me obriga a livrar-me delas. Aliás, convicções são bem diversas de preconceitos. Preconceitos são pontos de vista, a que uma pessoa adere sem madura reflexão e sem exame crítico e ponderado; são muitas vezes devidos à existência de uma coação social ou de uma inibição psicológica. Mas uma convicção é uma adesão essencialmente livre, pela qual uma pessoa optou após ter refletido e inquirido. O historiador, sem perder o direito de ter suas convicções pessoais, tem a obrigação de ser "despreconcebido" na medida do possível. Luciano escreveu esta bela frase: “O historiador deve sacrificar a uma única deusa: a Verdade” ²⁶. Se não lhe foi dada a posse da verdade integral ou absoluta, jamais pode deixar de venerá-la como norma absoluta, tornando-se-lhe fatal o mínimo desvio consciente neste ponto.
Por outras palavras, a impossibilidade de haver uma atitude inteiramente objetiva não dispensa o historiador da grave obrigação de ser absolutamente honesto e sincero; em alguns casos pode ser que dele se exija uma coragem fora do comum. Ninguém insistirá em que o matemático encare honestamente o teorema de Pitágoras; ninguém exigirá que o físico seja sincero ou corajoso ao estudar a eletrodinâmica. É que os resultados dessas ciências são universais, abstratos, exatos e unívocos, ao passo que o historiador estuda os atos humanos, que são concretos, únicos, complexos e equívocos (no sentido de se prestarem a mais de uma interpretação). Está em jogo a nossa concepção do mundo, ao interpretarmos os fins que a humanidade se propôs, durante sua marcha através dos séculos.
Honestidade: jamais podemos desviar-nos de fatos bem averiguados. Serenidade: jamais podemos deixar-nos influenciar, conscientemente, por nossas simpatias ou antipatias. Sinceridade e coragem: jamais podemos deixar de externar a verdade, por mais embaraçosa ou incômoda que ela seja para nós próprios ou para o grupo social a que pertencemos.
II. Não é perigosa a abertura mental?
O historiador, empenhado em ter essa abertura mental e acostumado a reviver experiências alheias e a colocar-se mentalmente em outras situações históricas, não está exposto ao perigo de acabar por ser um relativista? Nossa resposta é: nem todo o relativismo é um perigo; existe também um relativismo salutar.
Sem dúvida, há várias espécies de relativismo pouco sadio. Existe o relativismo radical, talvez melhor denominado "ceticismo", que não admite certezas absolutas na vida intelectual nem normas absolutas na vida moral. Para o intelecto, tal ceticismo pode ser um esporte interessante ou uma sedução tentadora, mas, levado ao extremo, destrói-se a si próprio, tanto no plano teórico ²⁷como na vida prática ²⁸. Poderíamos chamar de "cético", numa forma mais mitigadas, ao imediatista, ao cínico, ao oportunista, ao profiteur: quando uma mente vem a ser repelida a si própria: segue o caminho do menor esforço, onde espera poder encontrar seus interesses egoístas sem se incomodar com os outros. Julgamos nós, com Huizinga e Marrou ²⁹, que o perigo de "ceticismo" desta natureza só existe para quem já anteriormente, por motivos alheios aos estudos históricos, perdeu a confiança na existência de normas absolutas.
No mais das vezes, porém, o "ceticismo" não passa de uma reação psicológica contra um complexo de preconceitos (durante muito tempo, identificados com "convicções" e de imposições — identificadas com normas morais), em que se perdeu a confiança; a uma fase de confiança absoluta e ingênua segue-se frequentemente uma fase de desconfiança radical ³⁰. Isso acontece na crise de puberdade de muitos adolescentes ³¹. É geralmente uma fase transitória, perigosa só no caso de se perpetuar. Sendo normal o desenvolvimento da pessoa em apreço, esta fase vem sucedida de uma fase característica do estado adulto: nem confiança absoluta (infância), nem desconfiança radical (puberdade), mas confiança crítica (maturidade).
Nesta fase se nos apresenta a possibilidade de um relativismo salutar. É um relativismo que se opõe ao falso absolutismo de outrora. Um relativismo isento de fanatismo e intransigência, mas não destituído de firmes convicções e do "senso normativo". Um relativismo que reconhece a existência da Verdade Absoluta, mas que sabe que ela não é deste mundo relativo, em que o homem tem que conquistar a sua verdade no tempo, ao longo da sua existência histórica, sucessivamente, progressivamente ³², relativamente. O homem não é dono da Verdade; como criatura, apropria-se dela em parcelas, e como animal histórico, através do tempo. Relativismo é uma espécie de realismo e um ato de humildade: o relativista reconhece as delimitações inerentes à condição humana e tem respeito pela parcela da verdade que se encontra em outras pessoas.
III. E a criação artística?
Quase todos os grandes historiadores dos séculos passados foram grandes literatos: Heródoto, Tucídides, Tácito, Fernão Lopes, Voltaire, Gibbon, etc. Também no século XIX, quando já nascera o novo conceito da história, vários historiadores mostraram-se grandes artistas: Macaulay, Guizot, Burckhardt, Renan, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, etc. Ao grande público esses autores são geralmente conhecidos não por causa das suas investigações históricas, também feitas por eles, mas como autores da literatura nacional ³³.
Não falamos aqui apenas nos méritos meramente estilísticos dos grandes historiadores; uma criação artística abrange muito mais: a composição, a dramatização, a faculdade evocatória, a intuição psicológica, a visão sintética de um conjunto, a mensagem humana de uma interpretação, etc. Apesar de se terem aperfeiçoado os métodos científicos da investigação histórica, todos esses fatores continuam a desempenhar um papel importante para uma obra histórica se tornar uma síntese de interesse verdadeiramente humano. A reconstrução técnica do passado pode ser interessante para alguns especialistas, uma visão pessoal do passado tem muito mais valor. Isso não quer dizer que a historiografia seja uma espécie de beletrística. Na literatura, o autor tem a liberdade de seguir o caminho da sua imaginação, limitada apenas pelas exigências da sua criação artística; na historiografia, a imaginação deve ser disciplinada por uma vontade incondicional de obedecer aos fatos. Na literatura, trata-se de criar uma nova realidade com a sua autonomia própria; na historiografia, trata-se de dar uma visão de dados objetivos e pré-existentes. Na literatura, a magia das palavras, por mais discreta que ela seja, é um fator essencial; na historiografia, é um elemento acessório, embora não sem importância.
Pode-se formar um investigador, mas é impossível formar um artista criador. A combinação dos dois seria o caso ideal. Mas a quem as Musas não concederam o voo aos cumes do Parnasso recomenda-se uma atitude de realismo: ele não deve tomar seu Rocinante por um Pégaso; se não puder voar, não deve tomar emprestadas asas postiças; como outro Ícaro, há de cair fatalmente no mar da mediocridade. Seria uma traição tanto à arte como à verdade, e também neste particular, exige-se honestidade da parte do historiador.
Ainda duas palavras sobre o estilo histórico, o qual, segundo os preceitos da retórica tradicional, deve ser simples, claro e natural ³⁴. Esta regra ainda hoje não perdeu nada do seu valor. O historiador, mesmo que não seja um estilista no sentido artístico da palavra, tem a obrigação de empregar sua língua com correção, — uma coisa que se pode aprender pela leitura de bons exemplos e mediante exercícios práticos. Não faz muito tempo que, na nossa cultura, o prestígio de uma formação literária (ou, talvez melhor: verbalista) era muito grande: naquele tempo era urgente advertir os historiadores dos perigos de declamações retóricas e de frases sonoras. Hoje nos ameaça o perigo de uma retórica "cientista", que consiste em estropiar a linguagem histórica com uma terminologia pedante, cheia de neologismos supérfluos, estrangeirismos de mau gosto e eruditismos ridículos. Falar "difícil" não é prova de cultura histórica, nem mesmo de erudição ou de alto saber. O historiador, como aliás todo e qualquer intelectual, tem uma grande responsabilidade para com a língua vernácula.
* Autor de livros em diferentes áreas: Estudos Clássicos, Língua Latina, Filologia, Linguística, História e Literatura. Suas principais publicações, quando de sua permanência no Brasil, foram Introdução aos estudos históricos (1958) e Propylaeum Latinum: sintaxe latina superior (1960). Entre outros assuntos pesquisados por ele, é notável seu grande interesse pela vida e obra do Padre Vieira, a quem dedicou um livro em dois volumes: António Vieira. História do futuro (Livro Anteprimeiro) (1976), publicados pela editora Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, de Münster, Westfalen, considerado seu opus Magnum. O segundo volume dessa obra consiste em uma edição do célebre livro de Vieira, acompanhada de uma bibliografia, uma introdução e um aparato crítico. Também, digno de nota é um de seus últimos livros sobre Vieira: Antônio Vieira: profecia e polêmica, foi publicado no Brasil pela Eduerj em 2002.
II. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Clio saeclo retro memorat sermone soluto, e Clio gesta canens transactis tempora reddit: assim começam dois poemetos, consagrados aos ofícios das nove Musas e muito populares na Idade Média: este, de um poeta anônimo, aquele, de Florus (século II d. C.) . — Cf. E. BAEHRENS, Poetae Latini Minores (Lipsiae 1871 e 1882), vol. III p. 243, e vol. IV p. 279. — Os nomes das nove Musas são enumeradas, pela primeira vez, por HESIODUS, Theogonia, pp. 77-79.
² ARISTÓTELES, Poetica, 9. — O moralista Sêneca observa (Quaestiones Naturales III Praef. 5): Consumpsere se quidam, dum acta regum externorum componunt quaeque passi invicem ausique sunt populi. Quanto satius est sua mala exstinguere quam aliena posteris tradere?
³ Por exemplo na sua obra histórica: De Republica Atheniensium.
⁴ Por exemplo Dicearco (± 300 a. C.) que escreveu a primeira história da civilização grega (Vida da Hélade), e Aristóxeno de Tarento (século III) que passa pelo pai da biografia literária.
⁵ Cícero, De Oratore, II 9, 36; De Divinatione, 24, 50: Plena exemplorum est historia; cf. PLUTARCHUS (§ 24, I) e Titus Livius (§4, III); SICULUS, Diodorus, Bibliotheca, I 2, 2: "Se a mitologia relativa ao Hades, por mais fictícia que seja, muito contribui para que os homens sejam piedosos e justos, quanto mais devemos estimar a história, a sacerdotisa da verdade, a fonte de toda a filosofia: ela, deveras, educa os homens para uma vida honesta e decente". E POLÍBIO (Historiae I 1, 1): "Os homens não possuem corretivo melhor do que o conhecimento dos fatos do passado". Cf. o opúsculo interessante de A. J. TOYNBEE, Greek Historical Thought, New York, in "Mentor Books", 1952.
⁶ I Cor 15, 14
⁷ Mencionamos apenas S. Augustinus, De Doctrina Christiana, II 28, 42-44, e De Vera Religione VII 13: "Em nossa religião, o ponto essencial que se deve admitir, é a história e a profecia para se ver como a Divina Providência efetua, no tempo, a salvação do gênero humano".
⁸ Já Francis Bacon (1561-1626) depreciara a história, dizendo que ela pertence ao "reino da memória". - Cf. R. G. COLLINGWOOD, The Idea of History, Oxford, 1951.
⁹ Com efeito, a empregada de Cícero sabia infinitamente mais coisas concretas da vida romana do que o historiador mais erudito dos tempos modernos; mas tinha ela uma ideia das conexões e da sua situação no tempo, ou tinha ela uma visão panorâmica e uma experiência refletida das coisas?
¹⁰Paráfrase de um texto de Nietzsche: Reflexões intempestivas, II 7 (em alemão: "Unzeitgemãsse Betrachtungen"), de 1873-1876. - Para a. tomada de posição de Nietzsche ante a história, cf. M.-A. Bloch, apud L'Homme et l'Histoire, pp. 165-169.
¹¹ P. VALÉRY, Regards sur le Monde actuel (Paris, Gallimard), 1945, p. 44. -
Cf. do mesmo autor, Variété IV (Paris, Gallimard), 1939, pp. 129-142. - As palavras de Valéry provocaram protestos violentos de vários lados, cf. La Via Intellectuelle LXIV (1936) e Revue des deux Mondes CIII (1933).
¹² F. CHARMOT, S. J., La Teste bien faicte, Paris, 1945, p. 177.
¹³ HOMERUS, Odyssea, I 3. — O texto já foi citado por Diodorus SICULUS, Bibliotheca, I 1, 2.
¹⁴ R. DESCARTES, Discours de la Méthode (Paris, Flammarion), 1935, p. 6.
¹⁵ Pe. António VIEIRA, História do Futuro, Ed. e Publ. Brasil, São Paulo, 1937, p. 32.
¹⁶Em alguns países europeus e americanos, fala-se hoje muito na "futurologia", a qual, acompanhando minuciosamente as tendências existentes na atualidade, procura formular prognósticos cientificamente fundamentados, sobretudo com o fim de "planejar" o futuro.
¹⁷ ARISTÓTELES, Poetica, 6. — Lembremos a palavra sublime de Virgílio: Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt (Aen. 1 462).
¹⁸ P. HAZARD (Revue des deux Mondes, CIII, 1933, 15 sept., p. 189).
¹⁹Cf. CÍCERO, De Oratore, II 15, 62: "Nam quis nescit primam esse historiae legem ne quid falsi dicere audeat?
deinde ne quid veri non audeat? ne qua suspicio gratiae sit in
scribendo? ne qua simultatis?"
²⁰Fénelon escreveu em 1714 Lettre sur les Occupations de l'Académie française (publicada em 1716), cujo capítulo VIII é intitulado: Projet d'un Traité sur l'Histoire. O autor adere, como é muito natural no seu tempo, à história "pragmática". Cf. logo no início: "L'Histoire est néanmoins très importante: c'est elle qui nous montre les grands exemples, qui fait servir les vices mêmes des méchants à l'instruction des bons, qui débrouille les origines et qui explique par quel chemin les peuples ont passés d'une forme de gouvernement à une autre".
²¹ Muitas vezes frisam também a necessidade de ser erudito o historiador (conhecimentos da vida militar e política, da geografia, e da cronologia, etc.)
²² Cf. CÍCERO, De Legibus, I 2, 5: "... quippe cum sit opus (historicum) unum hoc oratorium maxime; cf. De Oratore, II 12, 51: historicum scribere... summi (oratoris est)"; PLINIUS, Epistulae, V 8; etc.
²³ G. W. LEIBNIZ, Nouveaux Essais, etc., I, cap. 2: "Si la géométrie s'opposait autant à nos passions et à nos interêts présents que la morale, nous ne la contesterions et nous ne la violerions guère moins, malgré toutes les démonstrations d'Euclides et d'Archimèdes, qu'on traiterait de rêveries et croirait pleines de paralogismes."
²⁴ Aliás, evidencia-se, cada vez mais, que a objetividade absoluta também não existe nas ciências naturais.
²⁵ Em alemão: "voraussetzungslose Wissenschaft", termo introduzido pelo historiador H. von Treitschke (1834-1896) e tornado conhecido por seu "correligionário" Th. Mommsen, que em 1901, numa carta pública, protestava contra a nomeação de um professor católico na Universidade de Estrasburgo.
²⁶LUCIANUS, Quomodo historia conscribenda, 39; cf. § 3, VI g.
²⁷O relativismo "absoluto" é uma contradição in adjecto: o relativista, por não admitir verdades absolutas e considerar tudo como absoluto, chega a contradizer-se: sustenta como uma verdade absoluta o seu relativismo. Com ele não é possível discutir: não se discute com uma planta, como diz Aristóteles (Metaphysica, III 4, 24).
²⁸Muitos relativistas pretensamente radicais são incoerentes: não se cansam de refutar velhos erros e de apresentar verdades novas. É o caso de um Spengler e tantos outros relativistas.
²⁹J. HUIZINGA, Sobre el estado actual de la Ciencia Histórica, Tucuman, s.d., cap. III, p. 137.
H.-I. MARROU, De la connaissance historique, Paris, Aux Éditions du Seuil, 1954, p. 265.
³⁰Sócrates, no diálogo Phaedon (89D) de Platão, já falou na reviravolta de uma excessiva "philo-logia" e "phil-anthropia" no sentido de uma "miso-logia" e "mi-anthropia" radical.
³¹ Papai Noel não existe; consequentemente, também Deus não existe! Essas "extrapolações" ocorrem não apenas na vida de adolescentes, mas também na de adultos, quando se vêem, de repente, desiludidos.
³² Isto não quer dizer que o progresso na apropriação da verdade seja uma linha ascendente sem interrupções: há períodos não só de estagnação, mas também de retrocesso.
³³ Cf. Fidelino de FIGUEIREDO, em Revista de História, nº 20 (1954).
³⁴Assim falam Aristóteles, Cícero, Quintiliano e muitos outros.
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BESSELAAR, José van den: Introdução aos Estudos Históricos, 4ª edição revista e ampliada, São Paulo: E.P.U.-EDUSP-Editora da Universidade de São Paulo, 1974, 340 p.
FREIRE, José Geraldes: In memoriam de José van den Besselaar (1916-1991), Universidade de Coimbra: revista Humanitas (1991), no boletim de Notícias e Comentários (pp. 225-9).
WIKIPEDIA: Joseph Jacobus van den Besselaar