sábado, 6 de janeiro de 2024

A DURA VIDA DO AFINADOR: manter o piano perfeito para o artista


Por JOÃO MARCOS COELHO *
 
Profissionais como José Luiz da Silva executam um fino trabalho de ourivesaria para atender as estrelas do instrumento. (Artigo publicado por O Estado de S. Paulo, edição de 6 de janeiro de 2024, na coluna Cultura & Comportamento e categoria Música Clássica)
TABA BENEDICTO/ESTADÃO
Silva tra­ba­lhou no antigo Tea­tro Cul­tura Artís­tica e, entre 1999 e o ano pas­sado, foi o afi­na­dor ofi­cial dos pia­nos da Sala São Paulo: “O maior pro­blema do afi­na­dor é aten­der 100% ao pedido de cada pia­nista: um quer sono­ri­dade mais doce; o outro, mais bri­lhante.”
“O ins­tru­mento não suporta modi­fi­ca­ções radi­cais de um dia para o outro. Resu­mindo: o afinador precisa ter jogo de cin­tura, mas de uma forma que não comprometa o pianista seguinte.”
José Luiz da Silva-
Afinador-
 
 
O pia­nista é, entre os músi­cos, o que mais sofre com seu ins­tru­mento. Estuda em casa no seu piano amado, mas só toca em público em pia­nos que é obri­gado a “domar” pou­cas horas antes do con­certo. A ques­tão é tão espi­nhosa que Franz Liszt, na década de 1840, via­java com o pró­prio piano. Existe, porém, um per­so­na­gem que sofre ainda mais que os pia­nis­tas. É, sem dúvida, o afi­na­dor de pia­nos, prin­ci­pal­mente os que tra­ba­lham fixo em salas de con­certo. Eles têm de aten­der aos pedi­dos mui­tas vezes con­fli­tan­tes dos pia­nis­tas con­vi­da­dos. José Luiz da Silva, de 63 anos, foi o res­pon­sá­vel pela afi­na­ção dos pia­nos Stein­way de con­certo da Osesp de 1999, quando a Sala São Paulo foi inau­gu­rada, até 2022. Ele é figu­ri­nha carim­bada: suas afi­na­ções fre­quen­tam os Fes­ti­vais de Inverno de Cam­pos do Jor­dão e as tem­po­ra­das da Socie­dade de Cul­tura Artís­tica (desde o antigo tea­tro da Rua Nes­tor Pes­tana), o Mozar­teum, os tea­tros do Sesc. 
 
Resu­mindo: seu nome é sinô­nimo de afi­na­ção de alto nível, que atende as gran­des estre­las do piano inter­na­ci­o­nal. Nomes como os do russo Evgeni Kis­sin, do hún­garo Andras Schiff e de duas estre­las chi­ne­sas, Yuja Wang e Lang Lang, entre cen­te­nas de astros do teclado clás­sico e tam­bém popu­lar, como Egberto Gis­monti. 
 
For­mado em com­po­si­ção e regên­cia pela Unesp, ele diz que só fez um curso de afi­na­ção na vida: “Um mês, pro­mo­vido pelo fabri­cante bra­si­leiro Fritz Dob­bert”. Pen­sei bas­tante nele ao ler o recém-lan­çado Flo­resta de Lã e Aço, de Natsu Miyashita, que cap­tura o lado poé­tico do tra­ba­lho de afi­na­ção, alçando-o à con­di­ção de voca­ção artís­tica. Conta a his­tó­ria do estu­dante Tomura, que no ensino médio ouve o som de um piano sendo afi­nado por Ita­dori na escola.
“Senti cheiro de flo­resta. Mas não havia flo­resta por perto. (...) Eu era o aluno soli­tá­rio que acom­pa­nhava o visi­tante. (...) Quando pres­si­o­nou algu­mas teclas, senti ema­nar, da flo­resta que havia no inte­rior daquele ins­tru­mento, o cheiro das árvo­res a balan­çar”,

diz o livro. Resu­mindo: o afi­na­dor “tra­ba­lha em silên­cio para garan­tir que o ins­tru­mento ressoe com o mundo”.

NELSON FREIRE. Essas fra­ses me lem­bra­ram Nel­son Freire na Sala São Paulo, olhando des­con­fi­ado para o relu­zente Stein­way à sua frente e mur­mu­rando:
“Este piano não gosta de mim”
(no anto­ló­gico docu­men­tá­rio de 2003 de Wal­ter Sal­les). José Luiz conta um caso que viveu com Nel­son: 
“Toda sala tem o ins­tru­mento que inte­gra a orques­tra. Na Sala São Paulo, é o piano da Olga Kopy­lova. Acon­tece que o Nel­son che­gou para ensaiar, viu esse piano e tocou nele a tarde inteira. Só no final é que soube que aquele não seria o piano do con­certo”, recorda rindo. 
 
A rela­ção dos pia­nis­tas com seus ins­tru­men­tos oscila entre amor e ódio. Um dos mai­o­res pia­nis­tas do século 20, o cana­dense Glenn Gould (1932-1982) tocou ainda cri­ança, nos anos 1940, num Stein­way modelo D cata­lo­gado como CD318. Pas­sou déca­das ten­tando reen­con­trá-lo, o que só acon­te­ceu em 1960.
“Por trás de todo grande pia­nista sem­pre há um grande afi­na­dor”,
escreve a jor­na­lista Katie Haf­ner no livro de 2008 A Romance on Three Legs (Um Romance Sobre Três Per­nas). Sua lei­tura mos­tra a comu­nhão de sen­si­bi­li­da­des entre Gould e o afi­na­dor cego Verne Edquist. Só para cons­tar: um afi­na­dor da Stein­way certa vez colo­cou a mão no ombro de Gould na loja da Stein­way; o pia­nista o pro­ces­sou e à Stein­way, ale­gando que tinha sido agre­dido. Idios­sin­cra­sia em último grau, pato­ló­gica.
 
FÓRMULA 1. Ima­gine um des­ses bóli­dos da Fór­mula 1. Você já assis­tiu ao séquito de mecâ­ni­cos “tra­ba­lhando” pre­pa­rando o carro para o grande momento da lar­gada. O afi­na­dor de piano dos tea­tros é o téc­nico que “pre­para” o bólido, no caso um Stein­way modelo D de con­certo, ou um Bosen­dor­fer e, em mui­tos espa­ços sele­tos, o Yamaha de con­certo. 
 
Munido de uma chave de fenda, ele isola com cunha e fel­tro duas das três cor­das que com­põem o som de uma nota cen­tral no teclado com­posto de 88 teclas. Ten­si­ona a afi­na­ção até che­gar ao padrão con­tem­po­râ­neo de 440 hertz nas 250 cor­das do piano. 
 
É um fino tra­ba­lho de ouri­ve­sa­ria. Os pia­nos ver­ti­cais, de armá­rio, devem ser afi­na­dos uma vez por ano, segundo a Fritz Dob­bert, e os das salas de con­certo e de cauda inteira, várias vezes por semana, sem­pre no dia do con­certo. Por isso duram, em média, cinco anos. 
 
“O maior pro­blema do afi­na­dor é aten­der 100% ao pedido de cada pia­nista: um quer sono­ri­dade mais doce; o outro, mais bri­lhante”, avisa. “O ins­tru­mento não suporta modi­fi­ca­ções radi­cais de um dia para o outro. Resu­mindo: o afi­na­dor pre­cisa ter jogo de cin­tura, mas de uma forma que não com­pro­meta o pia­nista segu­inte.” “O maior pro­blema do afi­na­dor é aten­der 100% ao pedido de cada pia­nista: um quer sono­ri­dade mais doce; o outro, mais bri­lhante”, avisa. 
 
Última per­gunta, para des­fa­zer um mito, segundo o afi­na­dor: “O piano fica melhor quanto mais é tocado?”. “É ver­dade, mas ele vai sofrendo com o tempo. Um piano de con­certo na Sala São Paulo, por exem­plo, dura cinco anos. Os pia­nis­tas sacam isso e não que­rem cor­rer risco de que­bra de cor­das. Outro mito: piano antigo, do começo do século, em geral não é tão mara­vi­lhoso como dizem, afi­nal enve­lhe­ceu, tem 100 anos. Vale lem­brar que piano afi­nado em 440 hertz suporta 20 mil qui­los de com­pres­são de corda.” •  
 
HISTÓRIAS 
 
Evgeni Kis­sin 
“Ficou uma semana ensai­ando na Sala, no Stein­way, mas o ele­va­dor que sobe o piano ao palco que­brou. Que fazer? O Yamaha estava lá em cima. Ele não toca, disse a pro­du­ção. Mas não tinha outro jeito.” 
 
 • Lang Lang 
 “Quando veio em 2012 à Sala São Paulo, Lang pare­cia um mole­que. Não deu dor de cabeça nenhuma. Tam­bém se apre­sen­tou no Tomie Ohtake, loquei o Stein­way. Tocou sem expe­ri­mentá-lo pre­vi­a­mente.”
 
Egberto Gis­monti 
 “Foi no Sesc. Ele tocou um acorde e per­gun­tou pelo afi­na­dor. Fiz 15 minu­tos de faz-de -conta, ele tocou, tinha uma coi­si­nha de nada, fácil de ajus­tar. Tem um lado psi­co­ló­gico para o qual é pre­ciso aten­tar.” 
 
Artur Pizarro 
“O pia­nista por­tu­guês não gos­tou de nenhum Stein­way na Sala São Paulo. Que­ria o piano que fica no segundo andar, a sala do coro. Era um reci­tal. Isso des­mis­ti­fica o pre­con­ceito em rela­ção à Yamaha.” 
 
Yuja Wang 
 "Na primeira vez que veio ao Brasil, ela escolheu o piano. Na segunda, em 2018, perguntei se queria escolher  sempre deixo dois preparados. Mas ela me disse: "Não, o que você escolher está bom."
 
* Jornalista, atualmente crítico de “O Estado de S. Paulo” e colunista da revista “Concerto”. Passou pelas redações de “Veja” e “Folha de S. Paulo”, nas quais foi crítico musical. Seu livro “No Calor da Hora – música e cultura nos anos de chumbo” (Editora Algol, 2008),  composto de  uma seleção das entrevistas e artigos escritos entre 1977 e 2008 que refletem o lado político da música erudita, além de oferecer um panorama mais social desta que é considerada a mais elitizada das artes,  foi finalista do Prêmio Jabuti de 2009.  Editou o volume coletivo “Cem anos de música no Brasil – 1912/2012” (Editora Andreato, 2014). Autor de “Pensando as músicas no século XXI – Invenção e Utopia nos Trópicos” (Editora Perspectiva, 2017).

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
JOÃO MARCOS COELHO nos brinda com saborosa crônica sobre a personalidade excêntrica do afinador oficial dos pianos da Sala São Paulo, no caso, de José Luiz da Silva, formado em composição e regência pela Unesp. Passando por Franz Liszt até Glenn Gould — que possuía seu próprio afinador cego Verne Edquist —, o leitor chega à conclusão de que o afinador de piano é o "alter ego" dos grandes pianistas clássicos em todos os tempos, já que desempenha um fino e indispensável trabalho de ourivesaria.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/01/a-dura-vida-do-afinador-manter-o-piano.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Uma realidade inusitada para nós, leigos apreciadores da arte pianística! Saborosa crônica !
Grato pela oportunidade de sua leitura.
Saudações,
Cupertino

Dr. Paulo Milagre (escritor e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Interessante.

Eudóxia de Barros (insigne pianista e grande concertista) disse...

Também apreciei demais! O que seria de nós sem os bons afinadores?

Cordialmente, 👏👏👏

Eudóxia.

Rafael dos Santos Braga (pesquisador graduado em Filosofia pela UFSJ) disse...

Obrigado ! Muito interessante !

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, diplomado em Direito, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Membro da Academia Valenciana de Letras . Membro Correspondente do IHG e da Academia de Letras e do Insgtituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, entre outras instituições. disse...

Caro amigo Braga
Foi um prazer para mim e Beth, lermos o artigo de autoria de João Marcos Coelho, sobre “A dura vida do afinador”, assunto que me remeteu à minha juventude. Agradeço pelo envio.
Isso porque, lembro-me bem, de tempos em tempos vinha à Valença um “afinador e pianos”, para atender a compromissos de vários pianistas, que disputavam o seu atendimento: era um senhor cego, vindo de Juiz de Fora e muito requisitado.
Certamente não se trata do Sr. José Luiz da Silva mas, de qualquer forma, associei o fato à minha lembrança de quando jovem, pela admiração que eu tinha por uma pessoa com deficiência de visão para um trabalho tão minucioso, embora sabendo que o seu maior empecilho não era a visão, já que ele possuía o privilégio de uma refinada audição.
Receba o meu abraço e o de Beth.
Mario Cupello.

Anônimo disse...

Parabéns a João Marcos Coelho. Mais do que uma crônica, é um trabalho com informações precisas e necessárias sobre o complicada relação do afinador de pianos, com o instrumento, consigo mesmo e com o artista que vai exibir. Quanto aos pianos que envelhecem, vou a António Boto, como remate... é como se o piano antigo dissesse: “sou como as velas do altar / que dão luz e vão morrendo “. (Geraldo Reis Poeta (blog: O Ser Sensível)

Anônimo disse...

Faltou um abraço poético para José Luiz da Silva, esse afinador -mor da alma invisível de todos os pianos do mundo. (Geraldo Reis Poeta - O Ser Senível)

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (réporter, correspondente no exterior, coordenador de 2 Ministérios e assessor de imprensa de outro, professor adjunto da UCB desde 1998, autor de vários livros e artigos sobre comunicação e história) disse...

Braga,
Gostei muito do artigo sobre o José Luiz da Silva. Entendo mesmo que o afinador é quase um herói no campo da música. Sem um bom afinador nossos concertistas não teriam, certamente, a fama que desfrutam. O afinador lê os concertistas, e adequa a sonoridade ao estilo de cada um.
O artigo faz justiça a essa figura fantástica da qual ninguém se lembra.
Parabéns ao João Marcos, pela iniciativa; a você por divulgá-lo; e aos grandes e desconhecidos afinadores brasileiros.
Abraços e um ano de 2024 cheio de realizações.
Aylê-Salassié

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Pura arte
Abs