sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

A GUERRA E A LITERATURA


Por TEMÍSTOCLES LINHARES *
 
Crônica de 1941 extraída do livro Interrogações , Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959, pp. 258-63.
Tapeçaria de "GUERNICA" de Pablo Picasso (1955), réplica da pintura a óleo de 1937, pendurada do lado de fora da Câmara do Conselho das Nações Unidas - Link: https://www.cbsnews.com/news/guernica-tapestry-returns-united-nations/  👈

 

Teremos nova literatura de guerra, uma vez cessada a atroz aventura em que se empenha a velha Europa? 

A pergunta pode parecer prematura, mas não é preciso aplicar-lhe aquela faculdade bovina de que falava Nietzsche. A faculdade de ruminar, hoje muito esquecida, certamente nos faria ver mais claro e nos levaria a responder com mais facilidade. Mas fiquemos com os recursos que ainda nos restam, bastante minguados, do primado grego da inteligência, que colocava a dignidade da pessoa humana no magistério da razão e da disciplina da alma, recursos que estão longe de alcançar o esforço contínuo, tenaz, ousado, subterrâneo, preconizado pelo filósofo e reservado a muito poucos. A guerra, já se disse, mecanizou o homem. Tornou-o um autômato. O Estado totalitário, exclusivo e ciumento, arrastou-o à guerra, pela política da força, para conduzi-lo a um ideal de comunidade organizada e niveladora. A vida antiga de sociabilidade, de ilustração, de glória, vida de fórum, de teatro, que fazia nascer a curiosidade de saber, esse espanto diante das coisas em que Aristóteles via o começo da sabedoria, perde terreno e tende a ser substituído por outra coisa que sirva às necessidades inelutáveis dos dias que correm e reclamam sangue, ondas de sangue, para impor os seus novos modelos padronizados. 
 
Ao que se passa no mundo os homens de letras não poderão permanecer indiferentes. Terão de tomar partido, estudando as razões intelectuais, sociais, políticas e econômicas que tornam esta fase angustiosa em que vivemos inassimilável aos espíritos de alta linhagem. Muitos deles fatalmente se deixarão sugestionar pela nova e aparatosa mitologia. 
 
Mas, apesar de tudo, da influência que sobre o escritor possam exercer a vitória da força, a soberania do espírito militar, a valorização da máquina, há muito que esperar dele. 
 
A despeito de suas falhas, a profissão do homem de letras é que reúne ainda a maioria dos espíritos independentes. Ele possui o sentimento do seu lugar na sociedade e de sua independência, muito mais desenvolvido do que o médico, por exemplo. Quem o diz é a autoridade incontestável de Léon Daudet, doublé de médico e escritor. O médico é colhido por uma trama de circunstâncias, professorado, faculdade, concursos, etc. E em dado momento ele só julga segundo as palavras dos mestres que o fazem ir perdendo pouco a pouco a personalidade. 
 
O homem de letras  é claro que se fala daquele que tem alguma coisa a dizer  não perde a sua originalidade ou se a perde, é muito mais tarde que outro qualquer. 
 
Muitos escritores  é a sorte que podemos desejar-lhes, exclama o mesmo Daudet  morrem, sobretudo se se tratar de polemistas, combatendo de pena na mão. O homem de letras não tolera os mandarins, mormente na profissão. O espírito de justiça literário, o próprio espírito de justiça simplesmente, está mais severamente desenvolvido, em geral, no escritor digno desse nome, no poeta e no prosador, do que no comum dos mortais. Ele, mais do que ninguém, sente a necessidade instintiva de se aventurar em todas as direções do espírito e associar os poderes mais contrários, objetivando em si mesmo a justiça, a beleza subsistente e a inteligência essencial. Quem melhor do que ele para nos levar aos exames peremptórios de consciência, despertando os nossos escrúpulos, as nossas exigências, as nossas linhas de conduta, as nossas particularidades irredutíveis? 
 
A serviço, pois, da realidade e da história, com as qualidades que o distinguem, o homem de letras tem imensa tarefa a cumprir. Por seu intermédio é que o homem pode defender algumas de suas mais dignas prerrogativas. 
 
Entre os escritores, sem dúvida, é que o espírito, em fuga diante da pressão cada vez mais urgente das forças utilitárias, se refugia, conservando a parte de não conformismo e de inadequação a elas. 
 
Está visto que a literatura de guerra por vir ou que já está chegando não poderá se preocupar com o homem. A imagem deste surge da implacável tenacidade dos acontecimentos muito diluída. A mecânica social fá-lo receber as ideias do tempo, os sentimentos do grupo e realizar os gestos de sua função, sem nada que lhe lembre a existência passada, a realidade profunda encarnada nele. 
 
Que poderá então revelar essa literatura nova? Se até o dom da compreensão, próprio do homem, está obliterado pelo mais cruel antipersonalismo? 
 
Até aqui a Literatura era um dos meios mais puros para nos aproximar de nós mesmos. Em suas relações com o homem é que estava o seu poder de sedução. A próxima literatura de guerra que nova ordem procurará então? Que horizontes novos ela desvendará? 
 
Da guerra nada é lícito esperar, sendo dor e ruína. Aproveitam-se dela os falsos profetas da violência, para dar satisfação aos seus sonhos de hegemonia mundial. As dificuldades do dia seguinte à vitória, porém, demonstrarão, como o têm demonstrado no decurso da história, que dias mais negros se sucederão, aumentando os desequilíbrios e a gravidade dos problemas entre os povos. As impurezas dos ressentimentos da luta, as tendências contrárias dos estilos políticos, acirrados então, fomentarão um estado de guerra permanente. No momento da paz, na sua lua de mel, um só ganho positivo se perceberá  a libertação do indivíduo, em consequência da destruição do principal foco real e doutrinário do despotismo. Mas mesmo essa áurea conquista durará pouco, porque a perduração dos males restabelecerá o estatismo e o homem voltará a ser cativo. Serão dificuldades insuperáveis, pois, com que o mundo de novo se defrontará: o desarmamento moral dos adversários, a supressão da mentalidade de represália, o encerramento da conta-corrente dos ódios e das vinganças. O poder do Estado, por maior que seja o círculo que abarque, tem quando muito ação sobre os gestos, os atos, as palavras, mas não sobre os estados de consciência, de pensamento, de sentimento da humanidade. 
 
A Literatura, em face da guerra, pode ter uma sucessão de dramas e tragédias a analisar. Tem-no por certo, não podendo fugir à influência dos acontecimentos, mas a sua posição se restringirá aos quadros geográficos e sociais da guerra. Estes, é claro, não deixarão de lhe oferecer margem para testemunhos, impressões, retratos do que aconteceu. O campo mais vasto, porém, sobre o qual ela estenderá a sua curiosidade e o seu interesse, será evidentemente o do pós-guerra, quando terão maior relevo os motivos de inquietação, de dúvida e negação espirituais, quando o revisionismo terá invadido as inteligências, para dar corpo a novos mitos. 
 
Do gênio da guerra nada há a esperar para as letras. O próprio pós-guerra, enquanto perdurar a influência desta, será antes uma época de inquietação, de depressão, do que de reconstrução. A reconstrução só virá quando se esquecer a guerra, essa guerra que dissolve e elimina os sentimentos humanos, reduzindo à impotência e ao espanto o trabalho intelectual. 
 
O exemplo vem da guerra passada e está patente no colapso que está sofrendo no mundo inteiro a produção literária. Há pouco se comentou o fenômeno em França, antes de sua derrota: a Grande Guerra o melhor que produziu foram os depoimentos, os retratos, a visão arguta e sóbria do que sucedeu, isso porque é preciso levar em conta que a literatura se dirigia a um público que havia tomado parte na luta, que a havia sentido, a uma multidão de atores portanto. É o caso de La Croix de Bois, de Roland Dorgelès
 
Dorgelès, como Morand, como Giraudoux, como Duhamel, porém, não encontraram na guerra senão um ponto de partida. O tom heróico, a consciência épica provocaram neles pouco eco. A guerra não deu um contista como Maupassant, nem um grande poeta como Baudelaire. A geração do pós-guerra preferiu ler Proust, Valéry ou Gide, em cujos livros a passagem da tormenta é pouco perceptível. Tivemos de Barbusse Le Feu e L'enfer, é certo, mas para dar a interpretação da guerra a cada momento, para assinalar todo o seu horror e violência, para demonstrar que ela não foi mais do que uma etapa do processo histórico com assento no maquinismo, transformado em instrumento assassino, gerando o pessimismo derrotista do século XX, dentro dos próprios países que alcançaram a vitória. 
 
Pela sua falta de conteúdo humano, a guerra atual está fadada a não ocupar espaço na Literatura. 
 
À Literatura, todavia, cabe o importante papel de nos ajudar a ter conhecimento mais extenso e profundo da guerra, de suas determinantes, de suas realidades, de que apenas distinguimos confusamente pequeno número de aspectos. 
 
O gosto das coisas "atuais" ou "modernas" precisa ser combatido. Os nossos hábitos de espírito não podem virar as costas ao universal e ao eterno, para permanecer no transitório, aceitando realidades confusas como essa chamada de racismo. 
 
Só a Literatura, só os escritores é que nos farão volver às preocupações essenciais, não porque estejam eles imbuídos de tendências moralizadoras. Aos escritores não devemos pedir moralismos ou profecias, mas cremos, com Marcel Arland, que podemos exigir-lhes, se a intenção deles for pintar os homens, que essa pintura seja exata, que eles apareçam tais quais são, que não sejam silenciadas nem as suas taras, nem as suas aspirações e, ao estudá-los, sejam impulsionados os seus sentimentos, não por simples curiosidade, mas por clarividente ternura. Se a intenção for produzir sínteses histórico-filosóficas, que o façam, quando se referirem à guerra, fixando a esterilidade da violência, interessando-se pelos valores mais estreitamente ligados às necessidades da vida, à procura da unidade humana, entre passado e presente, repelindo os atrozes conflitos entre classes e nacionalidades, conflitos de ódio e animosidade, que nada têm a ver com o sentimento nacional e a vocação de cada qual, ou com a unidade concreta da humanidade. 
 
Não podemos mais desprezar a Literatura. Já passou o tempo em que era de bom-tom fazê-lo. O gênio maravilhoso que existe nela está, como bem acentua o romancista de L'Ordre, em consideração-la mais como meio do que como fim. Não queremos ver nela simples passatempo, por mais nobre, por mais sutil que seja, passatempo de palavras e criação. O que primeiramente procuramos na Literatura é um maior conhecimento e uma maior realização de nós mesmos. É a ela que cada um de nós vai buscar inspiração para resolver o seu destino, abrindo os olhos diante da vida. 
 
Os homens de letras se clarificam nela, obedecendo a essa grande necessidade que impele os homens a confessar os seus sofrimentos e as suas alegrias, transportando para o mundo ideal problemas que poderiam ser perturbados ou falseados pelas contingências cotidianas. 
 
E por isso é que, repetindo palavras já usadas, a Literatura não deixa de ser ainda grande esforço para a verdade. 
1941

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Procurei um texto que trouxesse uma reflexão sobre o efeito da guerra sobre a literatura; preocupava-me a dúvida se em tempo de guerra era possível vicejar uma literatura pujante e florescente. Minha busca recaiu num texto de TEMÍSTOCLES LINHARES, crítico literário, historiador, professor brasileiro e colaborador com diversos jornais e revistas, nascido em Curitiba.
Encontrei o que buscava no seu livro INTERROGAÇÕES (1ª série), publicado pela Livraria José Olympio Editora em 1959, ciente de que ele foi autor de 3 séries (ou 3 tomos) de Interrogações.
Seu texto é de 1941, em plena segunda Guerra Mundial, portanto em um momento muito propício para a referida reflexão.
TEXTO
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/01/a-guerra-e-literatura.html 👈

BREVE BIOBIBLIOGRAFIA
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/01/colaborador-temistocles-linhares.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Obrigado!
Preciosas reflexões sobre a literatura e guerra.

Anônimo disse...

A "guerra" do STF trouxe censura ...
Abs

Lourenço Cazarré (jornalista e escritor, repórter, redator, editor, teatrólogo e crítico literário, publicou mais de 40 livros e obteve mais de 20 prêmios literários) disse...

Prezado Braga, tenho com interesse seus belos artigos. Quero remeter para você um exemplar de um livro que lancei recentemente. Me mande seu endereço, por favor. Parabéns pelo seu trabalho de divulgação de arte e cultura. Abraço Lourenço Cazarré

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Ah, Guernica...Ampliei-a e... Que dizer?!

GENIALIDADE!!!

Mais uma vez, recebo seu BLOG.

Grata, amigo.

Hilma

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Relendo o texto. Excelente!

O tema escolhido: A GUERRA E A L ITERATRA.

E texto para guardar e passar adiante.

Bom final de semana.

Hilma

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Bem lembrado e selecionado o autor para as reflexões sobre um tema tão interessante. Talvez, ante a dimensão que o conflito tomava em 1941, o âmbito do autor tenha se restringido às circunstâncias de uma Guerra Mundial, exceto por parte de alguma repercussão literária da imediatamente anterior (1914-18).
Saudações !
Cupertino