Por JOÃO MARCOS COELHO *
Profissionais como José Luiz da Silva executam um fino trabalho de ourivesaria para atender as estrelas do instrumento. (Artigo publicado por O Estado de S. Paulo, edição de 6 de janeiro de 2024, na coluna Cultura & Comportamento e categoria Música Clássica)
O pianista é, entre os músicos, o que mais sofre com seu instrumento. Estuda em casa no seu piano amado, mas só toca em público em pianos que é obrigado a “domar” poucas horas antes do concerto. A questão é tão espinhosa que Franz Liszt, na década de 1840, viajava com o próprio piano. Existe, porém, um personagem que sofre ainda mais que os pianistas. É, sem dúvida, o afinador de pianos, principalmente os que trabalham fixo em salas de concerto. Eles têm de atender aos pedidos muitas vezes conflitantes dos pianistas convidados.
José Luiz da Silva, de 63 anos, foi o responsável pela afinação dos pianos Steinway de concerto da Osesp de 1999, quando a
Sala São Paulo foi inaugurada, até 2022. Ele é figurinha carimbada: suas afinações frequentam os Festivais de Inverno de Campos do Jordão e as temporadas da Sociedade de Cultura Artística (desde o antigo teatro da Rua Nestor Pestana), o Mozarteum, os teatros do Sesc.
Resumindo: seu nome é sinônimo de afinação de alto nível, que atende as grandes estrelas do piano internacional. Nomes como os do russo Evgeni Kissin, do húngaro Andras Schiff e de duas estrelas chinesas, Yuja Wang e Lang Lang, entre centenas de astros do teclado clássico e também popular, como Egberto Gismonti.
Formado em composição e regência pela Unesp, ele diz que só fez um curso de afinação na vida: “Um mês, promovido pelo fabricante brasileiro Fritz Dobbert”. Pensei bastante nele ao ler o recém-lançado Floresta de Lã e Aço, de Natsu Miyashita, que captura o lado poético do trabalho de afinação, alçando-o à condição de vocação artística. Conta a história do estudante Tomura, que no ensino médio ouve o som de um piano sendo afinado por Itadori na escola.
“Senti cheiro de floresta. Mas não havia floresta por perto. (...) Eu era o aluno solitário que acompanhava o visitante. (...) Quando pressionou algumas teclas, senti emanar, da floresta que havia no interior daquele instrumento, o cheiro das árvores a balançar”,
diz o livro. Resumindo: o afinador “trabalha em silêncio para garantir que o instrumento ressoe com o mundo”.
NELSON FREIRE.
Essas frases me lembraram Nelson Freire na Sala São Paulo, olhando desconfiado para o reluzente Steinway à sua frente e murmurando:
“Este piano não gosta de mim”
(no antológico documentário de 2003 de Walter Salles). José Luiz conta um caso que viveu com Nelson:
“Toda sala tem o instrumento que integra a orquestra. Na Sala São Paulo, é o piano da Olga Kopylova. Acontece que o Nelson chegou para ensaiar, viu esse piano e tocou nele a tarde inteira. Só no final é que soube que aquele não seria o piano do concerto”, recorda rindo.
A relação dos pianistas com seus instrumentos oscila entre amor e ódio. Um dos maiores pianistas do século 20, o canadense Glenn Gould (1932-1982) tocou ainda criança, nos anos 1940, num Steinway modelo D catalogado como CD318. Passou décadas tentando reencontrá-lo, o que só aconteceu em 1960.
“Por trás de todo grande pianista sempre há um grande afinador”,
escreve a jornalista Katie Hafner no livro de 2008 A Romance on Three Legs (Um Romance Sobre Três Pernas). Sua leitura mostra a comunhão de sensibilidades entre Gould e o afinador cego Verne Edquist. Só para constar: um afinador da Steinway certa vez colocou a mão no ombro de Gould na loja da Steinway; o pianista o processou e à Steinway, alegando que tinha sido agredido. Idiossincrasia em último grau, patológica.
FÓRMULA 1. Imagine um desses bólidos da Fórmula 1. Você já assistiu ao séquito de mecânicos “trabalhando” preparando o carro para o grande momento da largada. O afinador de piano dos teatros é o técnico que “prepara” o bólido, no caso um Steinway modelo D de concerto, ou um Bosendorfer e, em muitos espaços seletos, o Yamaha de concerto.
Munido de uma chave de fenda, ele isola com cunha e feltro duas das três cordas que compõem o som de uma nota central no teclado composto de 88 teclas. Tensiona a afinação até chegar ao padrão contemporâneo de 440 hertz nas 250 cordas do piano.
É um fino trabalho de ourivesaria. Os pianos verticais, de armário, devem ser afinados uma vez por ano, segundo a Fritz Dobbert, e os das salas de concerto e de cauda inteira, várias vezes por semana, sempre no dia do concerto. Por isso duram, em média, cinco anos.
“O maior problema do afinador é atender 100% ao pedido de cada pianista: um quer sonoridade mais doce; o outro, mais brilhante”, avisa. “O instrumento não suporta modificações radicais de um dia para o outro. Resumindo: o afinador precisa ter jogo de cintura, mas de uma forma que não comprometa o pianista seguinte.”
“O maior problema do afinador é atender 100% ao pedido de cada pianista: um quer sonoridade mais doce; o outro, mais brilhante”, avisa.
Última pergunta, para desfazer um mito, segundo o afinador: “O piano fica melhor quanto mais é tocado?”. “É verdade, mas ele vai sofrendo com o tempo. Um piano de concerto na Sala São Paulo, por exemplo, dura cinco anos. Os pianistas sacam isso e não querem correr risco de quebra de cordas. Outro mito: piano antigo, do começo do século, em geral não é tão maravilhoso como dizem, afinal envelheceu, tem 100 anos. Vale lembrar que piano afinado em 440 hertz suporta 20 mil quilos de compressão de corda.” •
HISTÓRIAS
• Evgeni Kissin
“Ficou uma semana ensaiando na Sala, no Steinway, mas o elevador que sobe o piano ao palco quebrou. Que fazer? O Yamaha estava lá em cima. Ele não toca, disse a produção. Mas não tinha outro jeito.”
• Lang Lang
“Quando veio em 2012 à Sala São Paulo, Lang parecia um moleque. Não deu dor de cabeça nenhuma. Também se apresentou no Tomie Ohtake, loquei o Steinway. Tocou sem experimentá-lo previamente.”
• Egberto Gismonti
“Foi no Sesc. Ele tocou um acorde e perguntou pelo afinador. Fiz 15 minutos de faz-de -conta, ele tocou, tinha uma coisinha de nada, fácil de ajustar. Tem um lado psicológico para o qual é preciso atentar.”
• Artur Pizarro
“O pianista português não gostou de nenhum Steinway na Sala São Paulo. Queria o piano que fica no segundo andar, a sala do coro. Era um recital. Isso desmistifica o preconceito em relação à Yamaha.”
• Yuja Wang
"Na primeira vez que veio ao Brasil, ela escolheu o piano. Na segunda, em 2018, perguntei se queria escolher — sempre deixo dois preparados. Mas ela me disse: "Não, o que você escolher está bom."
* Jornalista, atualmente crítico de “O Estado de S. Paulo” e colunista da revista “Concerto”. Passou pelas redações de “Veja” e “Folha de S. Paulo”, nas quais foi crítico musical. Seu livro “No Calor da Hora – música e cultura nos anos de chumbo” (Editora Algol, 2008), — composto de uma seleção das entrevistas e artigos escritos entre 1977 e 2008 que refletem o lado político da música erudita, além de oferecer um panorama mais social desta que é considerada a mais elitizada das artes, — foi finalista do Prêmio Jabuti de 2009. Editou o volume coletivo “Cem anos de música no Brasil – 1912/2012” (Editora Andreato, 2014). Autor de “Pensando as músicas no século XXI – Invenção e Utopia nos Trópicos” (Editora Perspectiva, 2017).
10 comentários:
Prezad@,
JOÃO MARCOS COELHO nos brinda com saborosa crônica sobre a personalidade excêntrica do afinador oficial dos pianos da Sala São Paulo, no caso, de José Luiz da Silva, formado em composição e regência pela Unesp. Passando por Franz Liszt até Glenn Gould — que possuía seu próprio afinador cego Verne Edquist —, o leitor chega à conclusão de que o afinador de piano é o "alter ego" dos grandes pianistas clássicos em todos os tempos, já que desempenha um fino e indispensável trabalho de ourivesaria.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/01/a-dura-vida-do-afinador-manter-o-piano.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Uma realidade inusitada para nós, leigos apreciadores da arte pianística! Saborosa crônica !
Grato pela oportunidade de sua leitura.
Saudações,
Cupertino
Interessante.
Também apreciei demais! O que seria de nós sem os bons afinadores?
Cordialmente, 👏👏👏
Eudóxia.
Obrigado ! Muito interessante !
Caro amigo Braga
Foi um prazer para mim e Beth, lermos o artigo de autoria de João Marcos Coelho, sobre “A dura vida do afinador”, assunto que me remeteu à minha juventude. Agradeço pelo envio.
Isso porque, lembro-me bem, de tempos em tempos vinha à Valença um “afinador e pianos”, para atender a compromissos de vários pianistas, que disputavam o seu atendimento: era um senhor cego, vindo de Juiz de Fora e muito requisitado.
Certamente não se trata do Sr. José Luiz da Silva mas, de qualquer forma, associei o fato à minha lembrança de quando jovem, pela admiração que eu tinha por uma pessoa com deficiência de visão para um trabalho tão minucioso, embora sabendo que o seu maior empecilho não era a visão, já que ele possuía o privilégio de uma refinada audição.
Receba o meu abraço e o de Beth.
Mario Cupello.
Parabéns a João Marcos Coelho. Mais do que uma crônica, é um trabalho com informações precisas e necessárias sobre o complicada relação do afinador de pianos, com o instrumento, consigo mesmo e com o artista que vai exibir. Quanto aos pianos que envelhecem, vou a António Boto, como remate... é como se o piano antigo dissesse: “sou como as velas do altar / que dão luz e vão morrendo “. (Geraldo Reis Poeta (blog: O Ser Sensível)
Faltou um abraço poético para José Luiz da Silva, esse afinador -mor da alma invisível de todos os pianos do mundo. (Geraldo Reis Poeta - O Ser Senível)
Braga,
Gostei muito do artigo sobre o José Luiz da Silva. Entendo mesmo que o afinador é quase um herói no campo da música. Sem um bom afinador nossos concertistas não teriam, certamente, a fama que desfrutam. O afinador lê os concertistas, e adequa a sonoridade ao estilo de cada um.
O artigo faz justiça a essa figura fantástica da qual ninguém se lembra.
Parabéns ao João Marcos, pela iniciativa; a você por divulgá-lo; e aos grandes e desconhecidos afinadores brasileiros.
Abraços e um ano de 2024 cheio de realizações.
Aylê-Salassié
Pura arte
Abs
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