sábado, 12 de dezembro de 2020

NO ALBAMAR, OUTRORA

 Por Danilo Gomes

         A Fabio de Sousa Coutinho, escritor, carioca e tricolor.

A maior fascinação das ilhas sedutoras é serem desabitadas. Lá só moram as gaivotas, os trinta-réis, as aves limpas do mar. E quem ali aportar respira com a liberdade aliviada de um Robinson, prova a bem-aventurança da solidão. (…) Céu azul, brisa mansa, o mar está chamando.” (Vivaldo Coaracy, na crônica “Jurubahybas”.)

Numa de minhas inúmeras viagens à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro fui duas ou três vezes almoçar no velho restaurante Albamar, bastante conhecido e até famoso. Mas isso foi há muito tempo, quando eu fazia pesquisas para meus livros “Uma rua chamada Ouvidor” (1980) e “Antigos cafés do Rio de Janeiro” (1989). 

Situado na Praça Marechal Âncora, 184, no Centro histórico, próximo à Praça XV, o Albamar parece uma larga torre, com sua cúpula abobadada. O restaurante propriamente dito é quase centenário, pois funciona desde 1933. Na verdade, é a última construção que sobrou do antigo Mercado Municipal do Rio de Janeiro. 

A torre em que está instalado o Albamar é uma das quatro que guardavam o imponente Mercado. Com a central, mais alta, eram cinco torres. Mais de 20 mil metros quadrados davam guarida a 16 ruas internas e centenas de lojas, sob uma estrutura de ferro importada da Europa e demolida na década de 1950. A torre do Albamar escapou à fúria da demolição (para dar lugar ao Viaduto da Perimetral). E só escapou graças à influência política do proprietário e fundador do restaurante, o poderoso empresário Rodolfo Souza Dantas. É o tal negócio: quem tem padrinho não morre pagão; nem paga o pato… 

Pois bem, pois muito que bem. Devo acrescentar que o salão do restaurante ganhou uma repaginada nos últimos anos. No “meu tempo” o restaurante era um tanto rústico, posto que distinto. Estava atravessando uma temporada de baixa. Mas o torreão continuava firme, como na época áurea, em que alguns fregueses da casa eram Getúlio Vargas, Carmen Miranda, Carlos Lacerda, Mário Lago, Juscelino Kubitschek, o poeta e memorialista Augusto Frederico Schmidt, o cronista e compositor Antônio Maria, o poeta Vinicius de Moraes, o professor e escritor Arnaldo Niskier, o maestro soberano Tom Jobim, o romancista José Lins do Rego e o escritor Rui Lima do Nascimento (amigos e ambos ligados à cúpula dirigente do Flamengo; Rui, primo de Jorge Amado, mora há anos em Brasília, no Lago Norte).

Interior do Mercado Municipal da Praça Quinze

Vista aérea do Mercado Municipal da Praça Quinze

Naqueles áureos tempos, o ambiente do Albamar era seu tanto sofisticado e, ao mesmo tempo, informal, como o de alguns restaurantes e grutas de peixes e frutos do mar do Arco do Teles, perto dali. 

Desde 2010 o Albamar é comandado pelo chef Luiz Incao, que, com sócios e muita dificuldade, reergueu a casa, dando-lhe condições de maior conforto, sem perda do antigo charme. Ele trabalhou por 18 anos na cozinha do icônico hotel Copacabana Palace. Por certo fez ali seu “Cordon Bleu”, seu doutorado em culinária de primeira linha. 

Outra figura ilustre da casa é o garçom José Sousa Nóvoa, conhecido por Pepe. Ele ali trabalha há mais de meio século. Galego, com um resquício de sotaque espanhol, Pepe tornou-se um carioca de coração e é fervoroso torcedor do Fluminense. Ele anota os pedidos dos fregueses com uma caneta tricolor (ele exclama, risonho: “Veja que linda!”). 

O Albamar é conhecido pelos pratos à base de peixes e por um menu de receitas antigas, como a rã à provençal e o haddock ao leite de coco, bem como o Arroz Maru (arroz, brócolis, lula picada, polvo picado, cherne, camarões, mexilhões, queijo ralado, alho, cebola, tomate, azeite). Esse Arroz Maru é uma ancestral receita japonesa de muito sucesso. 

No “meu tempo” (como dizem os velhotes) , quase 50 anos atrás, o Albamar era mais simples e frugal, posto que elegante, distinto, como eu disse. Eu gostava de pedir uma mariscada, como aquelas dos restaurantes e grutas lusitanos do Arco do Teles, do Largo do Machado ou da Rua da Conceição. 

Em 1967 a Editora do Autor publicou o livro “Guanabara”, na sua série “Brasil, Terra & Alma”. Os textos de vários autores foram selecionados por Marques Rebêlo, da Academia Brasileira de Letras. No livro estão o Rio, sua História e suas histórias. No Apêndice, encontramos “Seis roteiros turísticos”. Há indicações preciosas, mas não se menciona explicitamente o nome de nenhum estabelecimento comercial, para evitar maledicências e disse-que-disse. 
Assim, na pág. 206 vamos encontrar o seguinte: 
Almoçar nos restaurantes portugueses da Rua da Conceição ou nos restaurantes árabes das ruas da Alfândega e Senhor dos Passos. Após o almoço, encaminhar-se para o Largo da Carioca e visitar a Igreja e o Convento de Santo Antônio, a Igreja de São Francisco da Penitência e, perto, na Avenida Rio Branco, o Museu Nacional de Belas Artes.
E, na pág. 208, o ponto que aqui nos interessa: 
Almoçar nas proximidades do Museu da Imagem e do Som, onde há um restaurante especializado em peixes e frutos do mar e que funciona em edificação remanescente do antigo Mercado Municipal, à beira do cais. Depois do almoço, visitar o Museu Histórico Nacional.” 
Qualquer Sherlock Holmes de botequim desvenda esse “mistério da beira do cais”: o “restaurante especializado” não é outro senão o célebre Albamar. Charada fácil, para iniciantes e novatos… 
 
 

Para encerrar esta breve viagem turístico-gastronômica, um trecho que colho na pág. 78 do livro “Guia de Roteiros do Rio Antigo”, de Berenice Seara (assim mesmo: Seara), de O Globo, 2004, 2ª ed., 208 págs.: 

Depois da caminhada, uma pausa para descanso no restaurante Albamar, no centro da Praça Marechal Âncora. O Albamar é o único remanescente do antigo Mercado da Praça Quinze,construído em 1908 em estrutura metálica fabricada na Inglaterra e na Bélgica, com 22,5 mil metros quadrados e 24 metros de altura, que foi demolido para a construção do Elevado da Perimetral. O restaurante, que ocupava um dos cinco torreões do mercado desde 1933, foi o único que sobreviveu ao desmonte. De lá tem-se uma admirável vista da Baía de Guanabara.” 
Vista panorâmica a partir do interior do restaurante

De fato, uma linda, esplendorosa vista. Enquanto almoçava, eu podia contemplar a beleza do mar, com as históricas e heróicas barcas da Cantareira indo para Niterói ou para a Ilha de Paquetá ou de lá regressando, lentamente, como “velhas tartarugas”, no dizer brincalhão de Vivaldo Coaracy. As barcas pertencem à C.C.V.F., ou seja, Companhia Cantareira de Viação Fluminense. Freguês constante daquelas barcas era o cronista e historiador carioca Vivaldo Coaracy (1882- 1967 ) , que, desde 1945, morava em Paquetá, seu refúgio e paraíso. Lá, ele era quase vizinho e muito amigo de Rachel de Queiroz e seu segundo marido, o médico Dr. Oyama Macedo. O casal então morava na Ilha do Governador. Em Paquetá morreu Vivaldo Coaracy, que foi pai de Dagmar e Ada Maria. É ele um de meus cronistas e memorialistas preferidos e hoje repousa no limbo da memória nacional, lamentavelmente. Está tão no ostracismo que uma pesquisa no Google nos fornece alguns dados sobre ele, mas em lugar de seu retrato está o retrato de… Dostoiévski. Poderiam divulgar ao menos o magnífico retrato dele em bico-de-pena, feito pelo talentoso Luís Jardim e que está no pórtico de alguns de seus livros. 

Voltemos ao restaurante Albamar, que hoje mudou de nome, mantendo a alta qualidade de seu cardápio. Agora ele se denomina Âncoramar. 

Volto ao passado. Regresso ao “meu tempo” de Rio de Janeiro. 

Uma brisa marinha suave e boa entrava pelas amplas janelas do Albamar, com vista para a maravilhosa Baía de Guanabara… 

Brasília, dez. 2020.

16 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Envio-lhe a mais recente das deliciosas crônicas do colaborador DANILO Carlos GOMES, intitulada NO ALBAMAR, OUTRORA, que constitui uma de suas gratas lembranças transmutada em página literária.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2020/12/no-albamar-outrora.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Jorge Antunes (professor e maestro, atualmente compositor convidado pela Cité Internationale des Arts para compor uma ópera a ser dedicada à memória da Imperatriz Leopoldina) disse...

Oi, Braga:

Parabéns pelos dois blogs que você dirige.
Curto muito os belos e interessantes textos.
Abraço,
Jorge Antunes

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras, Marianense de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Muito grato pelas suas generosas palavras,mestre Braga, e pela divulgação da minha crônica sobre o histórico restaurante Albamar, do Rio.
Abraço do Danilo.

Anônimo disse...

Estanislau,
Como um concha produziram esta pérola sobre o Albamar
Heitor

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga,

Agradecemos pelo envio desta bela crônica.

Abraços, de Mario e Beth.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

BELA CRÔNICA, BOAS LEMBRANÇAS!

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Estimado Francisco Braga,

Agradeço-lhe a leitura da Crônica sobre o Albamar, onde almocei duas ou três vezes; uma vez com Antonio Houaiss.
Gostei do estilo claro e suave do cronista, com certo tom de humor.
Mudei-me para o Rio em 1970. Apesar de goiano, vim do Uruguay. Daí a dedicatória de Drummond, agradecendo meu livro "Drummond — A Estilística da Repetição". Veja a dedicatória, que vai no anexo. Eu a tenho manuscrita. Abraço do Gilberto Mendonça Teles.
REPETIÇÃO
Repito aqui — repetição
é meu forte ou meu fraco? — tudo
que floresce em admiração
no itabirano peito rudo
(e em grata amizade também)
ao professor, melhor, ao poeta
que de Goiás ao Rio vem,
palmilhando rota indireta,
mostrar — com um ou com dois eles
no nome — que ciência e poesia
em Gilberto Mendonça Teles
são acordes de uma harmonia.
Carlos Drummond de Andrade
Rio, junho, 1970

Vamireh Chacon Albuquerque (professor universitário e autor de Os Partidos Brasileiros no Fim do Século XX) disse...

Desde muito tempo conheço de perto o escritor Danilo Gomes.
A ele já enviei meus parabéns por mais uma bela crônica.
Também freqüentei o restaurante Albamar, quando eu ia de férias ao Rio de Janeiro.

Nêudon Bosco Barbosa (escritor, redator do Jornal de Minas e da Revista Em Voga, membro da Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei) disse...

Amigo e confrade Braga,
Muito obrigado pelo envio. Uma crônica com leveza e estilo.
Não conheci o Albamar, mas, conforme relato de um amigo recentemente falecido e morador do Rio de Janeiro, era ponto predileto de muitos são-joanenses.
O Danilo foi redator do Suplemento Literário do Minas Gerais, se não me engano.
Abraço.

Nêudon Bosco Barbosa (escritor, redator do Jornal de Minas e da Revista Em Voga, membro da Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei) disse...

Fui verificar e cometi um engano. Seu irmao Duílio é que foi redator do SL.

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente reeleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2021-2023) disse...

Prezado confrade, boa noite. Na correria de fazer no IHG-SJDR em 5 semanas uma programação de 12 meses deste ano pandêmico, li e adorei a crônica do Danilo Gomes. Nunca tive chance de ir ao Albamar, mas ouvi falar dele quando estudei Saúde Pública na Fiocruz, nos idos de 1990. Mas o Rio, além de um dos melhores cafés do mundo, a Colombo, tem ou tinha bares icônicos, como o do Luiz e a churrascaria Alhambra, nas Laranjeiras; o Barril 1800, na Barra, onde fui em 1966 com Henfil, meu colega de Sociologia e Política na FACE/UFMG e conheci o jornalista do Pasquim e depois da TV, Paulo Francis, e o bar da Lagoa, no Bairro homônimo, de boa comida alemã e garçons mal-educados. Neste, fui algumas vezes com o meu compadre e contemporâneo em Chicago, José Almino Alencar, escritor e filho do Dr. Miguel Arraes: não gostei do bar mas a companhia sempre foi muito acolhedora e agradável. Hoje tenho medo de voltar ao Rio, de onde tenho muito boas lembranças.
Paulo Sousa Lima
PS: Falando em lembranças e saudades, me lembrei do Mosteiro de São Bento onde fui acolhido em 1963 por, entre outros, Dom Marcos Barbosa, quando ou logo depois traduzia "Le petit prince" do Exupéry e com quem tive chance de compartilhar e aprender na beleza do silêncio contemplativo, das refeições comentadas e na capelinha de madeira a harmonia do coral. Saudades.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor;
Grato pela oportunidade da leitura de Danilo Carlos Gomes e, nela, sobre o antigo Albamar, atração da antiga capital que eu simplesmente desconhecia.
Cumprimentos,
Cupertino

Sandra Corrêa Nunes (poetisa) disse...

Deliciosa leitura, que, pela riqueza de detalhes, tem o dom de nos transportar para época e local, despertando saudade do que sequer conheci. Obrigada pelo convite.

Lúcio Flávio Baioneta (proprietário da Análise Comercial Ltda e ex-aluno do Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei) disse...

Prezado amigo FJSBRAGA, foi um prazer ler no seu blog a crônica do Danilo C. Gomes sobre o Restaurante Albamar, que conheci quando morei no Rio de Janeiro de 1970 a 1984. Excelente os dados e detalhes apresentados.
Pergunte ao autor, por favor, se ele conheceu na Rua do Ouvidor, acho que este o endereço, o Restaurante Cabaça Grande? Eu várias e várias vezes almoçava lá. Comida portuguesa de excelente qualidade.
Tinha também o Restaurante Mosteiro, perto do Mosteiro de São Bento, acho que rua do Mosteiro, de excelente cozinha.
Como era bonito o Rio de Janeiro. Tinha beleza, charme e encantamento. Tudo foi para o lixo. Tenho tristeza de ver o Rio de Janeiro de hoje.
Um grande abraço do
Lúcio Flávio.

Amaro Luiz Alves (graduado em Administração pela UFMG e pós-graduado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública; autor do livro "Aves brasileiras: uma visão fotográfica") disse...

Conheci o Albamar nos anos dourados do Rio.