quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

"MINAS É MUITAS"

Por CARMEN SCHNEIDER GUIMARÃES * 
Crônica publicada originalmente no site da Academia Mineira de Letras em 30/10/2018, como 5ª sucessora na Cadeira nº 5, patroneada por José Maria Teixeira de Azevedo.
 

Imortal Carmen Schneider Guimarães (✞ 12/07/2021)

 

Belo dia, eu recebi um telefonema de Vivaldi Moreira, pedindo-me que lhe ajudasse a encontrar uma frase de Guimarães Rosa; e explicou:

“É que o pessoal dos Correios quer colocá-la em determinada propaganda, não me lembro de quê. Já revirei tudo, abri o “Grande Sertão: Veredas”, e não achei nada que me agradasse. Como você vive remexendo nos escritos desse sertanejo de gravatinha borboleta, pensei que pudesse me socorrer. Não é nada fácil a leitura dos livros do escritor famoso, e confesso que me intriga aquela história da gente ter que ler com duas varetinhas nas mãos, à moda um metrônomo ou um diapasão, sei lá”, 

criticou o presidente perpétuo. 

O pedido de Vivaldi, como sempre, era uma ordem, e tratei de dar início à busca das melhores frases que poderiam servir-lhe naquela empreitada. Fiz uma listagem caprichada de pensamentos postos em letras do homem de Cordisburgo. De posse de uma gramática, pois imaginei que a escolha poderia suscitar alguma querela, parti para o encontro com o mestre das palavras ditas e escritas. 

Depois de papo agradável sobre assuntos diversos, entramos de vez naquilo que me levara à Academia: a entrega das diversas orações rosianas para uma preferência pessoal. Ao cabo da leitura de algumas das selecionadas, ele apontou para a última delas, afirmando com entusiasmo:

“Esta! Sei que vou criar caso, e o pessoal vai tentar corrigi-la!” 

Era uma certa proposição, citada por muitos como incorreta, de concordância errada. Sabichões chegaram a mencioná-la em textos com a devida “correção”, naquilo que imaginavam estar procedendo muito bem. A frase era simplesmente: “Minas é muitas”. E todos corriam a protestar, argumentando que o predicativo era isso e aquilo…e que o sujeito, Minas, estava no singular, mas aquele complemento do verbo de ligação, no caso, ser, estava no plural, muitas, e o verbo deveria acompanhá-lo etc, etc.. . E daí? 

Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.Vista do serviço Diamantino do Monteiro do Rio Jequitinhonha. Aquarela de Caetano Luiz de Miranda. 1803. Museu do Diamante. Caderno do Arquivo 1, APM, 1988, p. 21.
 

Vivaldi Moreira me garantiu que já havia lido algo que dava razão a Guimarães Rosa, mas precisava de palavra escrita, preto no branco, para garantir seu ponto de vista. E foi para isto que levei comigo a gramática. Ele a tomou com afoiteza, e abriu-a na página que eu havia marcado antecipadamente. 

Tratava-se do primeiro volume (consta de cinco volumes) do Curso Integral de Português, de Cândido de Oliveira, da Divulgadora Editorial Ltda., de 1969. E a página marcada era a de número 116, dentro do capítulo “Verbo”, com o título “Concordância Verbal”. Após algumas outras referências gramaticais a respeito do assunto, encontrou o que buscávamos, abaixo do subtítulo: “Concordância do Verbo Ser”. 

Vivaldi demonstrava satisfação. Com o dedo no papel, comentou:

“Estava na cara que o homem do Itamarati não ia cometer uma besteira de tal tamanho, não é mesmo? Ele gostava de deixar uns “gatinhos” por onde passava. Deveria rir dos bocós que o corrigiam”. 

E depois de ler o texto explicativo em voz alta, e acrescentando outros exemplos por sua conta, pediu-me que tirasse um xérox da página para que ele ficasse “prevenido”. 

Na verdade, o que o texto estampa é o seguinte:

“Quando o sujeito do verbo ser (e outros verbos de ligação) for:
a) palavra de sentido amplo, como “vida”, “humanidade”, “ciência”…(etc); (no caso, Minas);
b) isto, isso, aquilo…, mais predicativo no plural – o verbo pode concordar com o sujeito (singular) ou com o predicativo (plural): Exemplos:
“O mundo” será lutas? “O mundo” serão lutas?
“A ciência” parecia sonhos. “A ciência” pareciam sonhos.
“Isto” é estórias. “Isto” são estórias.
“Tudo” era amolações. “Tudo” eram amolações.

O tema continuava no parágrafo 128, da página 203, sob o título: “Predicativo do Sujeito”, onde encontramos citados inúmeros verbos de ligação e alguns que podem funcionar como tais: permanecer, tornar-se, achar-se, começar, acabar, e uma série de outros. 

E Vivaldi terminou o assunto com mais uma de suas irreverências costumeiras:

“Publique-se: “Aviso aos imbecis:”Não tentem corrigir Guimarães Rosa!”. 

 

* Escritora/Presidente emérita da AFEMIL-Academia Feminina Mineira de Letras  e Acadêmica da AML, ex-ocupante  da cadeira nº 5 (atualmente ocupada por Humberto Werneck).

 

II. BIBLIOGRAFIA (sugerida pelo gerente do Blog)
 
 
ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS: Academia Mineira de Letras lamenta o falecimento da Acadêmica Carmen Schneider, em 12/07/2021 acompanhado de sua biografia.
 
ROSA, João Guimarães: MINAS GERAIS”, post publicado no Blog de São João del-Rei em 18/07/2022.

12 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
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Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Parabéns, pelo seu importante blog.
Gilberto Mendonça Teles

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
A nova colaboradora do Blog de São João del-Rei, CARMEN SCHNEIDER GUIMARÃES, possuiu duas fases: uma curta no Estado do Espírito Santo e outra mais longa, em Minas Gerais. Em Minas Gerais, dedicou-se ao estudo dos grandes artistas, escritores e poetas, e escreveu seus primeiros trabalhos memorialísticos e ficcionais.
Quando fiz um discurso na ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras de Barbacena em 18/11/2023, transcrevi trechos de seu livro "Senhoras e Senhores das Artes" com informações muito úteis sobre a passagem de Guimarães Rosa por Barbacena em 1933-34.
Curiosamente, um mês depois de meu discurso, encontro no site da AML-Academia Mineira de Letras este curioso texto dela, "MINAS É MUITAS", cujo personagem central é VIVALDI MOREIRA (1912-2001), que foi eleito para a AML em 1959, tornando-se em 1988 seu presidente perpétuo, por ter sido o responsável por conquistar para a AML a sua atual sede, na rua da Bahia, em Belo Horizonte. Carmen Schneider só iria tomar posse na AML em 2010, ocupando a cadeira nº 5 desde então até 2021, quando faleceu.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/12/minas-e-muitas.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Obrigado pela informação, que - como sempre - é um acréscimo interessante. A ilustre acadêmica, personalidade de muito destaque, que não conheço pessoalmente, deixou trabalhos importantes e sempre será lembrada. Só agora soube de seu passamento. Para lembrar Guimarães Rosa, como remate: “está no Deus”.

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Coisas como essa o professor Sílvio Elia rotulava de “caturrices gramáticas”

Reportava-se a um professor, gramático, que considerava errado o emprego do verbo colocar em frase como “coloquei o livro na estante”. Imagina!

O verbo priorizar já consagrado não somente na linguagem falada, mas
também na linguagem escrita (dar prioridade a). Confirmada até pelo GOOGLE.
Fui até conferir. Nem o fizera antes.

O professor Sílvio Elia participou da minha Banca de Doutorado, que tem um ítem no qual questiono: a Priorização das noções de espaço e tempo/ até por Celso Cunha, na divisão das preposições.

Proponho outra divisão, sem deixar de citar os “acertos” dos demais (Bernard Pottier, et.)

Afinal, parti do trabalho deles.

Abraços.

Hilma

Merania Oliveira disse...

Muito importante as explicações. Obrigada por me ajudar. Confesso que sempre ouço as pessoas dizerem: “Minas são muitas”. Seus blog é muito importante.
Merania Oliveira

Laurinda Ferreira de Souza (mestra pela FGV-RJ em Psicologia da Educação e professora aposentada do INESP, atual UEMG, de Divinópolis) disse...

Tenho uma atenção especial para com as obras de Guimarães Rosa e sobre o que se escreve sobre ele. Atenção esta que me trás muita reflexão e aprendizagens. E isso, possivelmente, pelo encantamento com os rincões de Minas. Nasci na zona rural de Santo Antônio do Monte chamada Cachoeira Bonita. Foi onde passei a minha infância, com cheiro de terra molhada.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

QUE BELEZA DE CRÔNICA!
A FRASE DE VIVALDI FOI BEM NO ESTILO DO NELSON RODRIGUES...
ESSA FRASE DO ROSA É MARAVILHOSA.
VOU FAZER UMA CONFISSÃO: ESTARÁ CITADA NO MEU DISCURSO DE POSSE NO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO MG.
COLIGI HÁ POUCOS DIAS.
QUE BAITA COINCIDÊNCIA O AMIGO PUBLICAR ESSA CRÔNICA.
ABS

ROGÉRIO

Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Bravo, confrade!
Feliz Natal!

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Corrigir Guimarães Rosa seria imperdoável, caro Francisco Braga.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

História bem curiosa.