sábado, 30 de novembro de 2024

O REPÓRTER ESSO E O SUICÍDIO DE GETÚLIO


Por RONALDO CONDE AGUIAR
Transcrevemos dois trechos do Capítulo 6: O JORNALISMO do ALMANAQUE DA RÁDIO NACIONAL, que contou com a colaboração da seguinte equipe editorial: Coordenação Editorial por Martha Ribas Julio Silveira; Seleção e Tratamento das Faixas do CD por Ricardo Manzo Collector's Studios; Revisão por Cristiane Pacanowski; Produção Editorial por Maria Beatriz Branquinho; Produção Gráfica por Liciane Corrêa; Capa e Projeto Gráfico por Christiano Menezes; Pré-impressão e Finalização por Filigrana Design. 


 

O REPÓRTER ESSO 
 
O Repórter Esso ficou quase trinta anos no ar. Ele estreou no dia 28 de agosto de 1941, poucos dias antes de o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial. A última edição do noticiário foi apresentada em 31 de dezembro de 1968, poucos meses antes de o homem pisar na Lua. Foi uma edição inesquecível, em que não faltou a despedida emocionada do então locutor Roberto Figueiredo. Gerações de brasileiros ouviam e acreditavam em tudo o que o Repórter Esso dizia. Todos se lembram da famosa vinheta criada pelo maestro Carioca da qual emergia a voz potente e segura de Heron Domingues: 
Amigo ouvinte, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história... 
A verdade é que ninguém punha em dúvida as notícias divulgadas pelo o Repórter Esso. Paulo Tapajós, ex-Diretor da Divisão Musical da Rádio Nacional, observou que a Rádio Tupi foi a primeira emissora brasileira a informar o fim da Segunda Guerra Mundial. Contudo, acrescentou Tapajós, a população só comemorou realmente quando a notícia foi dada (ou validada) por Heron Domingues. A enorme credibilidade de Repórter Esso explica, sem dúvida, o seu sucesso e o fato de, ainda hoje, ser lembrado e citado como exemplo de exatidão jornalística. 
O Repórter Esso não apenas inovou, como ensinou, e seus ensinamentos ainda estão presentes nos noticiários de hoje. Foi o Repórter Esso, por exemplo, que criou a técnica da manchete na abertura do texto (uma forma de chamar a atenção dos ouvintes), procedimento imediatamente incorporado pelos demais noticiosos e ainda em uso, até nos jornais televisivos. Só num ponto os noticiários atuais se diferenciam o Repórter Esso: 
Heron Domingues, por temperamento e estilo, imprimia emoção à leitura dos textos; hoje, a frieza, em nome da objetividade, faz com que os locutores, conforme diria Nelson Rodrigues, noticiem uma tragédia ou um fato histórico como quem chupa um picolé. Heron Domingues não fazia uma locução mecânica, mas uma locução viva, empolgante, própria dos que percebem (e desejam levar ao ouvinte) a dimensão real do fato narrado. 
O Repórter Esso, dizem os especialistas, foi um marco no radiojornalismo brasileiro, mas isso se deve, em larga medida, ao apresentador Heron Domingues, que deu ao noticiário personalidade e voz. O Repórter Esso inaugurou, no Brasil, um tipo de noticiário pautado pela síntese: os textos lidos eram objetivos, ligeiros, as frases curtas, o que facilitava a leitura e a assimilação do seu conteúdo. Nenhuma notícia podia se exceder em demasia, a não ser quando a cobertura de um acontecimento assim o exigia. Como explicou o próprio Heron Domingues: 
A imprensa é a análise, o rádio é a síntese. A imprensa dirige-se aos que sabem ler; o rádio fala, também, aos que são analfabetos. As frases radiofônicas são curtas, contêm apenas o sujeito, o verbo e o objeto direto ou indireto. Em casos especialíssimos, recorremos ao luxo dos adjetivos ou ao desperdício dos pleonasmos de efeito. A vibração da palavra no tímpano de cada ouvido é fugaz; e o entendimento deve ser instantâneo para que o cérebro possa acompanhar o curso da notícia. Em 1962, o Repórter Esso transferiu-se para a televisão, embora mantivesse suas transmissões radiofônicas. Como tantos outros programas que seguiram tal caminho, não resistiu — e nem podia. Em 31 de dezembro de 1968, o Repórter Esso fez a opção definitiva pela televisão, onde permaneceu por mais dois anos exatos, o Repórter Esso despediu-se do rádio sem esconder a emoção: as lágrimas do locutor Roberto Figueiredo eram também as lágrimas dos ouvintes brasileiros. Era um ciclo que se encerrava. 
O Repórter Esso, filho dileto dos anos dourados da Rádio Nacional, saiu de cena quando as luzes daqueles alegres anos deixaram de brilhar. (...) 
 
O REPÓRTER ESSO E O SUICÍDIO DE GETÚLIO 
 
A temperatura política do país estava elevada e prometia subir ainda mais. 
Desde o atentado da rua Toneleros, em que um oficial da Aeronáutica morrera e o jornalista Carlos Lacerda, líder da oposição ao governo, levara um tiro no pé, o presidente Getúlio Vargas estava praticamente imobilizado no Catete. Os jornais, com exceção apenas da Última Hora, não mais escolhiam palavras para atacá-lo. 
Somos um povo honesto governado por ladrões — estampou A Tribuna da Imprensa, dando a dimensão da profunda crise de autoridade em que o Brasil estava submerso. 
Nos quartéis, a oposição e o zunzum contra o governo cresciam: não havia dia em que os boatos não falavam de tanques (do Exército) nas ruas e aviões (da Aeronáutica) nos céus, prontos para o ataque final e a deposição do presidente. Na Câmara e no Senado, os parlamentares se sucediam na tribuna, batendo na mesma tecla: Getúlio Vargas, para o bem da nação, tinha de renunciar. Nas ruas, bares e lares, a classe média estava escandalizada com as notícias sobre bandalheiras na administração pública. O golpe estava delineado. Uma questão de dias, dizia-se na cidade. 
Na Rádio Nacional — mais especificamente, na redação de radiojornalismo da emissora —, Heron Domingues não se cansava de repetir aos seus companheiros de trabalho: a crise estava próxima do estado de ebulição. Não sabia como ela evoluiria, muito menos seria capaz de arriscar um palpite sobre o seu desfecho. Mas o seu faro jornalístico não o enganava: algo grave estava prestes a acontecer. Por isso, todos ali na redação tinham de permanecer atentos, de olhos bem abertos. Não podemos, dizia, ser surpreendidos ou atropelados pelos acontecimentos.
Por isso, ele mesmo, Heron Domingues (solteiro, na época), resolveu mudar-se para a redação. Mandara vir uma cama de campanha, improvisara travesseiros e providenciara um enxoval estratégico: duas mudas de roupa, escova, pasta de dentes, cigarros e uma garrafa de conhaque, que o ajudaria a suportar a longa espera e o frio da madrugada. Às vezes, deitava-se com o receptor ligado ao ouvido, utilizando jornais como cobertor. 
Naqueles dias da crise de agosto de 1954, Heron elaborou uma escala, de modo que pelo menos dois auxiliares seus estivessem permanentemente com ele. Durante a última reunião que fizera com sua equipe, alguém usara a palavra exagero para descrever as providencias que ele havia tomado. Heron limitara-se a sorrir: Pois vamos pecar pelo exagero. Dias antes, Heron conversara com o diretor-geral da emissora, Victor Costa, e este, que mantinha uma linha direta com o Catete, não escondera quanto estava preocupado com os rumos possíveis da crise: É, seu Heron, a coisa pode estourar a qualquer momento. O locutor achou melhor não perguntar ao chefe o que ele chamava de coisa. 
A coisa seria ou a renúncia de Getúlio (falava-se também em licença) ou a sua deposição. A primeira hipótese, admitiu o locutor, estava agora mesmo sendo discutida na reunião de ministros que Getúlio convocara para aquela madrugada. A segunda hipótese dependeria da primeira: há dias, ou semanas, vinha circulando a informação de que forças militares estariam prestes a realizar um ataque armado contra o Catete. Caso Getúlio não renunciasse, o golpe militar seria inevitável, concluiu Heron. 
O telefone toca, despertando Heron de seus pensamentos. Atende e ouve com atenção a informação que lhe chega. Desliga e imediatamente escreve o texto que lerá ao microfone. Eram 5 horas da manhã. 
Amigo ouvinte, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da História, em edição extraordinária. 
E atenção, atenção, ouvintes do Repórter Esso: 
O Palácio do Catete acaba de informar oficialmente que o senhor Getúlio Vargas deixará o governo. Todos os ministros de Estado encontram-se reunidos no Palácio presidencial e a informação oficial é de que o presidente da República vai se licenciar por tempo indeterminado. O vice-presidente, Café Filho, assumirá o governo.
O noticiário lido por Heron Domingues praticamente despertou a cidade e instalou uma espécie de frenesi na Rádio Nacional. Os telefones não paravam um só instante: ouvintes ou, mesmo, gente da casa queriam detalhes, muitos se diziam surpresos, outros pareciam felizes, muitos se sentiam tristes e acabrunhados. 
Heron, contudo, estava com a pulga atrás da orelha. Chamou dois ou três companheiros de trabalho e segredou-lhes o que sentia: algo lhe dizia que a crise ainda teria desdobramentos. Vamos permanecer atentos, recomendou. Sentia-se cansado, mas preferiu esperar pelo Repórter Esso das 8 horas, quando repetiu a notícia sobre o pedido de licença do presidente Getúlio Vargas. Ao voltar à redação, ligou para Victor Costa, no Palácio, e recebeu a informação de que tudo estava calmo: o presidente estava nos seus aposentos, dormindo. Eram 8h10. 
Heron resolveu, então, descansar. Pediu a Leomy Mesquita que assumisse o comando da cobertura. Súbito, alguém gritou o seu nome: 
— Heron! Depressa! É o Victor Costa! Parece que aconteceu alguma coisa! 
O locutor apressou-se a atender: 
— Que foi, Victor? Que foi? 
— Heron! Aconteceu uma tragédia! 
No curto silêncio que se seguiu, Heron supôs ouvir um soluço do outro lado da linha. Gritou: 
— Victor, o que houve? O que houve? 
— Uma tragédia, uma tragédia, Heron! O presidente se matou! Neste minuto! 
— Você tem certeza? Você viu? Posso irradiar? Isso é uma catástrofe. 
— Transmita! Agora! Transmita para que o Brasil todo saiba! 
Heron ainda queria detalhes: 
— Mas se matou como? 
— Com um tiro no peito. 
Benjamin desceu as escadas gritando: Getúlio morreu! Getúlio matou-se! 
O que se seguiu foi contado pelo próprio Heron Domingues anos mais tarde: 
Pulei sobre a mesa e, esquecido de que deveria primeiro dar a notícia ao país, corri, alucinadamente, pelo corretor extenso, até a sala onde estavam reunidos meus companheiros de diretoria da Rádio Nacional. Abri a porta e gritei: 'Ouçam a tragédia!' Não sei se chorava. Tinha nas mãos a maior notícia de minha vida profissional. 
Nem o fim da Segunda Guerra Mundial me emocionara tanto. Liguei os dispositivos automáticos de interrupção da programação e comecei num cantochão esbaforido e entrecortado: 
Atenção! Aqui fala o Repórter Esso em edição extraordinária! 
Acaba de suicidar-se, em seus aposentos, no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas!
Heron Domingues repetiu inúmeras vezes a notícia, sempre com muita emoção. Aos poucos, informações novas chegavam do Palácio, permitindo que o Repórter Esso transmitisse a seguinte edição extraordinária: 
Amigo ouvinte! Aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história, em edição extraordinária. 
Conhecem-se agora mais alguns pormenores da morte do senhor Getúlio Vargas, que se suicidou esta manhã, às 8 horas e 26 minutos, em seus aposentos, no Catete, com um tiro no coração. 
Depois da dramática reunião, nesta madrugada, com o ministério e numerosas outras autoridades, o senhor Getúlio Vargas retirou-se aos seus aposentos, com a fórmula já assentada de que entraria em licença do governo espontaneamente até que se apurassem cabalmente as responsabilidades relativas ao crime da rua Toneleros. Uma vez provada sua nenhuma culpa, retornaria ao poder. Eram então 3 horas e 30 minutos. 
Antes de retirar-se, recebeu abraços dos que se encontravam na sala. Já em seus aposentos, o senhor Getúlio Vargas mandou chamar o senhor João Goulart. Este, antes de atender, chamou a um canto o senhor Hugo Faria, ministro do Trabalho, com o qual conferenciou à meia-voz, acenando o titular do Trabalho com a cabeça, dizendo que sim. 
Enquanto isso, os jardins do Catete estavam transformados em verdadeira praça de guerra desde as primeiras horas de ontem. As tropas do Exército eram reforçadas e colocadas em pontos estratégicos, enquanto os próprios civis eram recrutados para a defesa, incluindo as mulheres. Notava-se por todos os lados certo frisson, semelhante a uma angústia indefinível.
Por volta das 9 horas e 15 minutos, um enviado de Victor Costa entrou na redação de radiojornalismo e entregou a Heron Domingues um envelope. O locutor leu o bilhete que lhe enviara o diretor-geral da emissora: Heron, aí está a carta que o presidente escreveu antes de se matar. É um documento dramático! Leia-o! O Brasil precisa conhecê-lo! Heron examinou o texto e logo percebeu a sua importância. Chamou o prefixo do Repórter Esso: 
Amigo ouvinte do Repórter Esso! Atenção! Muita atenção! Antes de se matar, o presidente Getúlio Vargas escreveu uma mensagem à nação. Atenção ao seu conteúdo
Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar.
Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas por meio da Petrobras; mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o Governo dentro da espiral inflacionaria que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e por vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna.
Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram o meu ânimo.
Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
Tomado pela emoção, as lágrimas correndo pelo seu rosto cansado e insone, Heron Domingues quase não pôde completar a leitura da carta-testamento. Na Rádio Nacional, um silêncio feito de tristeza e vazio dominava a todos. 
Traslado do corpo de Getúlio Vargas do Rio de Janeiro para o enterro em São Borja. Fundo Documental: Correio da Manhã

 
Em todo o país, carente de lideranças políticas que conduzissem a sua revolta, o povo saiu às ruas, depredando jornais antigetulistas e bancos e firmas americanas. 
A carta-testamento funcionara como uma espécie de senha. Contudo, em meio ao pranto, à revolta e à dor, a reação popular provia-se em lamentações e quebra-quebras inconsequentes. 
Mas isso é outra história. 
 
 
II. FONTE
 
 
AGUIAR, Ronaldo Conde: ALMANAQUE DA RÁDIO NACIONAL, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007, 184 p. (inclui CD que reproduz vinhetas de abertura e encerramento dos programas da Rádio Nacional)
 
 
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA NOS MEUS BLOGS
 
 
BRAGA, Francisco J.S.: O SUICÍDIO DE GETÚLIO VARGAS (São Borja-RS, 1882-Rio de Janeiro-DF, 1954), publicado no Blog do Braga em 24/08/2021

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

UM LAR DE ARTISTAS


Por JOÃO DO RIO (✰Rio de Janeiro, 05/08/1881 ✞ 23/06/1921)
A crônica em questão foi originalmente publicada em 25 de março de 1905, na seção O Momento Literário da Gazeta de Notícias, edição 84, p. 2. O Blog de São João del-Rei transcreve a versão publicada em 1994 pela Fundação Biblioteca Nacional: Departamento Nacional do Livro. 

Júlia Lopes de Almeida com seus filhos, Afonso e Margarida (sentados), Albano e Lúcia (em pé), sem data / Crédito: acervo Cláudio Lopes de Almeida

 

Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas... 
De repente, um susto. Alguém batia à porta. E eu, com a voz embargada, dando volta à chave da secretária: já vai! já vai! 
A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos em casa, viria o mundo abaixo. Um dia, porém, eu estava muito entretida na composição de uma história, uma história em verso, com descrições e diálogos, quando senti por trás de mim uma voz alegre: — Peguei-te, menina! Estremeci, pus as duas mãos em cima do papel, num arranco de defesa, mas não me foi possível. Minha irmã, adejando triunfalmente a folha e rindo a perder, bradava: — Então a menina faz versos? Vou mostrá-los ao papá! 
— Não mostres! 
— É que mostro! 
— Vai fazê-lo zangar comigo. Não sejas má! 
Ela ria, parecendo refletir. Depois deitou a correr pelo corredor. Segui-a comovidíssima. Na sala, o papá lia gravemente o Jornal do Comércio
— Papá, a Júlia faz versos! 
— Não senhor, não lhe acredites nas falsidades! 
— Pois se eu os tenho aqui. Olha, toma, lê tu mesmo... 
Meu pai, muito sério, descansou o Jornal. Ah! Deus do céu, que emoção a minha! Tinha uma grande vontade de chorar, de pedir perdão, de dizer que nunca mais faria essas coisas feias, e ao mesmo tempo um vago desejo que o pai sorrisse e achasse bom. Ele, entretanto, severamente lia. Na sua face calma não havia traço de cólera ou de aprovação. Leu, tornou a ler. 
A folha branca crescia nas suas mãos, tomava proporções gigantescas, as proporções de um grande muro onde na minha vida acabara a alegria... Então, que achas? O pai entregou os versos, pegou de novo o Jornal, sem uma palavra, e a casa voltou à quietude normal. Fiquei esmagada. Que fazer para apagar aquele grande crime? No dia seguinte fomos ver a Gemma Cuniberti, lembra-se? Uma criança genial. Quando saímos do espetáculo, meu pai deu-me o seu braço. 
— Que achas da Gemma? 
— Um grande talento. 
— Imagina! O Castro pediu-me um artigo a respeito. Ando tão ocupado agora! Mas o homem insistiu, filha, insistiu tanto que não houve remédio. Disse-lhe: não faço eu, mas faz a Júlia... 
Minha Nossa Senhora! Pus-me a tremer, a tremer muito. O pai, esse, estava impassível como se estivesse a dizer coisas naturais: 
— Estamos combinados, pois não? O prometido é devido. Fazes amanhã o artigo. 
Sei lá o que respondi! O certo é que não dormi toda a noite, nervosa, imaginando frases, o começo do artigo. Pela madrugada julgava impossível escrevê-lo, tudo parecia banal ou extravagante. Mas depois do almoço, antes de sair, o pai lembrou-me como se lembra a um escritor: — Vê lá, Júlia, o artigo é para hoje. Tenho que o levar à noite. 
Havia um jornal que exigia o meu trabalho. Era como se o mundo se transformasse. Sentei-me. E escrevi assim o meu primeiro artigo... Só mais tarde, muito mais tarde, é que vim a saber a doce invenção de meu pai. 
O Castro nunca exigira um artigo a respeito da Gemma ¹...”.
 
Estávamos na casa de Filinto de Almeida, um cottage admirável, construído entre as árvores seculares da estrada de Santa Teresa. Eu descera do tramway sob uma forte carga de chuva e, enlameado, molhado, em baixo da branca escada de mármore, não sabia como explicar tão lamentável estado. Filinto, porém, com um ar levemente imperioso, o seu ar quando começa a simpatizar com alguém, tomara-me o chapéu e D. Júlia sorria, cheia de bondade. 
— Entre. Ninguém vê, estamos combinados que ninguém reparará na má ação do temporal. 
Fora assim que eu ousara entrar e já trinta minutos havia que ouvíamos deliciados a dona daquele lar. 
A casa de Filinto fica a dez minutos da cidade e é como se estivesse perdida num afastado bairro. Não há vizinhos; não há trânsito pela estrada, a não ser o bonde de quarto em quarto d'hora. Uma grande paz parece descer das árvores. Todas as janelas estão abertas. 
A sala, de um largo conforto inglês, tem uma biblioteca com os livros preferidos dos poetas, um vasto bureau cheio de papéis e revistas, e uma porção de quadros com assinaturas notáveis de Sousa Pinto, Amoedo, Parreiras... Um perpétuo cenário de apoteose divisa-se das janelas, — o cenário do Rio com o seu estrépito de sons e de cores, o tumulto das ruas estreitas, os montes escalavrados de casas, o perfume dos jardins e a enorme extensão da baía ao fundo. 
Toda a cidade, estendendo por monte e vale o formigamento dos seus bairros, trechos da Gamboa, trechos centrais, torres de igrejas, a cúpula da Candelária, tetos envidraçados de frontões, altas chaminés de fábricas, palácios, casas miseráveis, pedaços de mar obstruídos de mastros, parece cantar o ofertório da vida. Ah! A humanidade da grande colmeia! 
Quantos soluços, quantas alegrias, quantas raças! A chuva passara, o mormaço ia a pouco e pouco esfacelando as nuvens baixas e o panorama aumentava, crescia, assombrava com leves tons de azul e ouro, um panorama épico de porto de mar latino... 
— Este cenário lembra-me sempre aquele livro seu — A viúva Simões. Não imagina a impressão desse trabalho na minha formação de pobre escrevinhador. 
Que intensidade de vida! Sempre perguntava a mim mesmo: onde foi buscar D. Júlia um tipo de tão penetrante realidade? 
— Onde? Mas é uma história inventada. 
— Não é um livro à clef
— Não, não é, não há trabalho meu, com exceção de Os Porcos e de A Família Medeiros, que não seja pura imaginação. O caso de Os Porcos eu ouvi contar numa fazenda, quando ainda era solteira. Os homens do mato são em geral maus. A narração era feita com indiferença, como se fosse um fato comum. Horrorizou-me. A Família Medeiros tem dous ou três tipos que guardam impressões reais. Os outros não, são fantasia. 
 
Capa da 1ª edição do livro "A Viúva Simões"

 
Não imagina como me aborrece a idéia de fazer romances com histórias verdadeiras. E entretanto sou vítima dessa suposição. A Viúva Simões é a história de uma senhora conhecida; A intrusa, ainda outro dia Afonso Celso perguntou a meu marido se era um romance à clef... Andava muito contente com aquele conto: "A valsa da Fome". Mandei o volume a uma das minhas primas em Lisboa e recebi logo uma carta sua. Oh! "A valsa da Fome", a verdade dessas páginas! Há dezesseis dias em Cascais deu-se um fato idêntico. Apenas o fim é que é diverso. Os rapazes levaram o pianista a jantar e ele desmaiou... 
Nós sorríamos. 
— Que se há de fazer? Quantos há por aí copiando a verdade, que são sempre falsos? D. Júlia tem a luminosa faculdade de criar, e trata os personagens da fantasia como educa os seus filhos. É a vida. 
— Oh! Os meus personagens. Às vezes são até inconvenientes. A gente inventa-os e no meio do livro eles começam a discutir, a ter desejos, a forçar as portas da atenção. A Intrusa, por exemplo, quando a fantasiei, devia aparecer muito pouco... 
 
Uma criança loira, de uma beleza de narciso, aparece à porta. É a Margarida. As suas longas mãos no ar, chamando a mãe, são tão finas e rosadas que recordam as pétalas dos crisântemos. D. Júlia levanta-se. 
— Vou ver o Albano, coitadinho... Já não o vejo há muito tempo. 
Ficamos sós um instante. 
— Há muita gente que considera D. Júlia o primeiro romancista brasileiro. 
Filinto tem um movimento de alegria. 
— Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era eu quem devia estar na Academia, era ela. 
Esse sentimento de mútua admiração é um dos encantos daquele lar. Filinto esquece os seus versos e pensa nos romances da esposa. Leva-a a certos trechos da cidade para observar o meio onde se desenvolverão as cenas futuras, é o seu primeiro leitor, ajuda-a com um respeito forte e másculo. D. Júlia ama os versos do esposo, quer que ele continue a escrever, coordena o volume prestes a entrar no prelo. E ambos, nessa serena amizade, feita de amor e de respeito, envolvem os filhos numa suave atmosfera de bondade. 
— Tens no teu questionário uma pergunta a respeito da influência do jornalismo ². Nós todos somos um resultado do jornalismo. Antes da geração dominante não havia bem uma literatura. O jornalismo criou a profissão, fez trabalhar, aclarou o espírito da língua, deu ao Brasil os seus melhores prosadores. Não é em geral um fator bom para a arte literária, e talvez no Brasil não o seja muito em breve, mas já foi e ainda o é. Falas também das literaturas à parte. Tivemos a Mina da Bahia, a Padaria do Ceará, temos os ocultistas decadentes do Paraná, mas tudo isso mais ou menos desaparece ou tende a desaparecer. A literatura centralizou-se no Rio. Os rapazes de talento abandonam a província pela capital, e quando lá estão são sempre reflexos daqui. Não existirá nunca a arte regional. 
 
Mas aparece a Lúcia, a outra filha, uma beleza brasileira, morena, redondinha, acariciadora. 
Filinto abandona a arte regional, a Mina, a Padaria, os decadentes, para cobri-la de beijos. 
— Sabes como eu a chamo? Sinhá Midobi. Ai! A minha filha! E faz versos. Esta casa está perdida, fazem todos versos, são todos poetas, o menos poeta sou eu... 
 
D. Júlia volta. 
— Então o Albano? 
— Bem, está direito. Sabe o Sr. que é muito difícil responder ao seu inquérito? Tem tanta cousa! Começa logo com uma pergunta complexa a respeito de formação literária. Tive duas criaturas que a fizeram, — meu pai e meu marido. Em solteira, meu pai dava-me livros portugueses, — o Camilo, o Júlio Diniz, Garrett, Herculano. Já publicara livros quando casei, e só depois de casada é que li, por conselho de meu marido, os modernos daquele tempo — Zola, Flaubert, Maupassant. 
— Maupassant causou-lhe uma grande impressão. A Viúva Simões... 
— Eu li Maupassant depois de publicada A Viúva Simões. Sou de muito pouca leitura. Era capaz de passar a vida lendo, mas uma dona de casa não pode perder tanto tempo. E até fico nervosa quando vejo livros por abrir. Seria tão agradável gastar a existência lendo!... Quem entretanto cuidaria dos filhos, dos arranjos da casa? 
— Como faz os seus romances, D. Júlia? 
— Aos poucos, devagar, com o tempo. Já não escrevo para os jornais porque é impossível fazer crônicas, trabalhos de começar e acabar. Idealizo o romance, faço o canevas dos primeiros capítulos, tiro uma lista dos personagens principais, e depois,  hoje algumas linhas, amanhã outras, sempre consigo acabá-lo. Há uma certa hora do dia em que as coisas ficam mais tranquilas. É a essa hora que escrevo, em geral depois do almoço. Digo às meninas: — Fiquem a brincar com os bonecos que eu vou brincar um pouco com os meus. Fecho-me aqui, nesta sala, e escrevo. Mas não há meio de esquecer a casa. Ora entra uma criada a fazer perguntas, ora é uma das crianças que chora. Às vezes não posso absolutamente sentar-me cinco minutos, e é nestes dias que sinto uma imperiosa, uma irresistível vontade de escrever... 
— E apesar disso, diz Filinto, tem doze volumes publicados e começa a escrever um grande romance. 
— Oh! Um livro muito difícil, apenas esboçado, sobre a vida das praias, dos pescadores. 
D. Júlia está sentada na sombra, fala dos livros e dos filhos ao mesmo tempo. Estou a crer que os confunde e pensa nos personagens da fantasia criadora como beija os meigos frutos da sua vida. É calma, repousada, doce a sua voz, como são maternais os gestos seus. Qualquer coisa de suave e de simples aureola-lhe o semblante, impõe a veneração. Uma grande sinceridade, tal que decerto, ao ouvi-la, as almas mais retraídas lhe devem confessar a vida e pedir-lhe conselhos, como se pede aos bons e aos misericordiosos. 
— E que me diz das escolas em luta, do socialismo, do nefelibatismo, do feminismo? 
— Há tudo isso? 
— Pelo menos parece. A Regeneração, o Ideólogo, Tolstoi, e logo depois Stirner, Nitzsche, o naturismo; o simbolismo... 
— Deus do céu! É verdade que eu leio pouco. Algum desses senhores entretanto (creio que os nefelibatas) são por demais complicados. A arte, para mim, é a simplicidade. Ser simples e sóbrio é um ideal. Eles, ao contrário, confundem, torturam, torcem. 
— A verdade é que nós atravessamos um período estacionário, intervém Filinto. Esse mesmo nefelibatismo passou. A geração vitoriosa é ainda a de Bilac, Alberto, Raimundo na poesia e Machado de Assis, Neto, Aluísio na prosa. 
— E o feminismo, que pensa do feminismo? 
Parece-me ver nos olhos de D. Júlia um brilho de vaga ironia. 
— Sim, com efeito, há algumas senhoras que pensam nisso. No Brasil o movimento não é contudo grande. Acabo de receber um convite de Júlia Cortines para colaborar numa revista dedicada às mulheres. Descanse! Há uma seção de modas, é uma revista no gênero da Femina... 
Já passa de duas horas o tempo em que eu, numa causeuse de couro, interrogo inquisitoriamente os dois artistas. Levanto-me. 
— Vai-se embora? Tão cedo? 
— Duas horas! Há lá embaixo, naquela fornalha, uma outra fornalha que me espera — o jornal. Despeço-me. 
— Ainda uma pergunta: dos seus livros qual prefere? 
— Vai ficar admirado. 
— É A Falência
— Não. 
— O primeiro? 
— Não, é A Casa Verde, porque foi escrito de colaboração com meu marido. A Casa Verde lembra-me uma porção de momentos felizes... 
— Imagina eu fazendo romances! Era porque ela queria. Também só me sentava à mesa depois que me dizia: tem que fazer um capítulo hoje com estes personagens, dando-lhe este desenvolvimento. 
 

 
D. Júlia sorri. Como o tramway passe, precipito-me, e, ao tirar o chapéu, já dentro do carro, vejo no terraço os três airosos perfis dos três petizes de Filinto, que adejam no ar as mãozinhas de rosas. 
Então, enquanto o tramway descia a montanha, com a visão daquelas duas horas embaladoras, eu pensei que o adeus perfumado das crianças fora como um resumo e um símbolo do espírito daquele lar. Filinto dividiu o tempo entre o esforço material e o verso, para lhes dar o conforto. D. Júlia, a criadora genial, tem a doce arte de ser mãe. E os seus livros não são outra coisa, na sua intensa verdade, que a evocação do Amor, do Amor multiforme, fatal como o viver, o Amor em que se desnastra como um harpejo de alegria, como a esperança mesma da vida presente, crendo no futuro, o riso cantante das crianças...
 
João do Rio
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo gerente do Blog

¹ De fato, o texto de Júlia para o jornal Gazeta de Campinas, edição de 7 de dezembro de 1881, p. 7 é classificado no gênero carta ou missiva, dirigida ao redator do jornal. A transcrição dessa carta acha-se em [COSTRUBA, 2017, p. 100-101].
Após essa carta, a carioca produziu cerca de 70 textos que foram publicados, não só no jornal mencionado, mas também no Correio de Campinas e no Diário de Campinas.
Cf. COSTRUBA, D.A: Por dentro da biografia: trajetória intelectual e campo literário em Júlia Lopes de Almeida. In Oficina do Historiador, Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 10, nº 2, jul/dez 2017.

² Segundo João do Rio, ele e um amigo (cujo nome não declina) decidiram a maneira do inquérito (ou enquête): a resposta por carta para os que estão fora do Rio ou são muito reservados, e a entrevista para os outros.
Observe que o livro O Momento Literário (1909) de João do Rio traz no capítulo Antes os quesitos a serem respondidos pelos literatos.
Júlia Lopes de Almeida estava entre os que seriam entrevistados, como residentes no Rio. 
Filinto Almeida, poeta e seu esposo, menciona uma pergunta a respeito da influência do jornalismo. A pergunta que constava do questionário nas mãos de João do Rio era: O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?
Respondendo a esta pergunta, Filinto acaba por incluir também a sua visão sobre a pergunta anterior do questionário, que era: O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?
 
 
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA NOS MEUS BLOGS
 
 
BRAGA, Francisco J.S.: JÚLIA LOPES DE ALMEIDA, a “primeira dama” da Belle Époque tropicalpublicado no Blog do Braga em 14/10/2024

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A ÚLTIMA CRÔNICA


Por FERNANDO SABINO (BH, 12/10/1923-Rio de Janeiro, 11/10/2004)
Capa da 1ª edição “A Companheira de Viagem, Editora do Autor, 1965, 178 p.

 
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. 
 
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. 
 
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. 
 
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. 
 
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. 
 
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
 
 
II. BREVE ANÁLISE DE A ÚLTIMA CRÔNICA pelo gerente do Blog
 
[MORAES, 1959] inicia sua crônica O Exercício da Crônica defendendo que escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista... Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino.
Passa então a descrever quanto custa ao cronista o preparo do seu texto quando a inspiração não vem, o martírio que é a página em branco, os minutos que passam no relógio e a pressão com o deadline acordado para enviar a crônica para publicação.
Apesar de dispor de uma série diversificada de temas, às vezes os fatos que marcaram o seu espírito não causam inspiração; nesta situação, o cronista pode, então, “em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir algum inesperado.


A este respeito, [QUEIROZ, 1999, p. 127] inicia assim a sua crônica Bilhete ao meu leitor de domingo, texto inserido no livro A donzela e a moura torta (1948): 
Prezado leitor, adeus, estimo que passe bem. O fim destas maltraçadas é lhe dizer que hoje não espere crônica, nem conto, nem qualquer manifestação propriamente literária, em nosso rodapé. E não cuide também que o vou divertir com mexericos políticos; o mais que lhe posso oferecer são os meus cumprimentos. Ou dizer como os gladiadores: “Ave Caesar, morituri te salutant.” Reconheço que haverá no emprego da frase uma pequena impropriedade, porque não estou exatamente na situação de “morituri”. O meu mal não é de morte, é apenas de gripe, com febre de 38 graus. Mas sempre que a gente quer fazer uma citação latina, há qualquer coisinha que não se ajusta. Esta frase irá assim; você há de dar o desconto. Nestes termos, Queiroz dá por concluída a sua crônica semanal, num tom de intimidade com seus leitores.

Retomando a crônica de Moraes, ela volta ao assunto da falta de inspiração, pedindo ao leitor colocar-se no papel do cronista: 
Dias há em que, positivamente, a crônica “não baixa”. O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: É... não há nada a fazer com fulano...”

Identificar diariamente temas que motivem os próprios cronistas e que atendam as expectativas dos seus leitores exige grande diligência. A Última Crônica de Sabino se inicia com a sua entrada num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Esse é um derivativo para preencher a falta de inspiração em produzir uma nova crônica, aquela que fecharia com chave de ouro o ano que termina. Na frase seguinte, ele se justifica com a desculpa de que 
na realidade está adiando o momento de escrever e emenda com o sentimento de que a perspectiva (de não ter sobre o quê escrever) o assusta, pois, sem mais nada para contar, só se lembra do verso do poeta: assim eu quereria o meu último poema.
Pois bem. Foi nesta hora que se apresentou a oportunidade de lançar 
um último olhar fora de si, o pretexto que faltava para a sua última crônica: uma singela festa de aniversário. Seu olhar recai sobre uma família pobre, composta de uma filha e seus pais que se sentaram a uma mesa para festejarem o aniversário da menina. A mãe tem para a filha um olhar de ternura: ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo que lhe cai ao colo. O pai, embora constrangido, mostra satisfação com a singela e simbólica comemoração.
Da mesma forma que a 
celebração do aniversário foi classificada como um sucesso pelo prosador do cotidiano, assim também sentiu ele, no plano da poesia, que a sua última crônica foi pura como o sorriso orgulhoso desse pai, como quereria que ela fosse.


III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 
MORAES, Vinicius de. O exercício da crônica. In: Rio de Janeiro: jornal Última Hora, edição de 22/08/1959

QUEIROZ, Rachel.
Bilhete ao meu leitor de domingo. In: A donzela e a Moura Torta: crônicas e reminiscências. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948, 212 p.

SABINO, Fernando. A última crônica. In: A Companheira de Viagem, Editora do Autor, 1965, 178 p.
 

domingo, 24 de novembro de 2024

A LIBERDADE DE IMPRENSA NA ÉPOCA DE D. PEDRO II


Por JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Pedro II do Brasil, cognominado o Magnânimo (✰ Rio de Janeiro, 02/12/1825 ✞ Paris, 05/12/1891) / Crédito: uploads/pedro_ii.jpg - Getty Images


Capítulo 11. Auto-retrato
 
Livro: D. Pedro II. Ser ou não ser.  (pp. 76-80; 84-86)
 
O imperador escreveu 5.500 páginas de diário, registradas a lápis em 43 cadernos. As anotações começam em 2 de dezembro de 1840, primeiro aniversário após a maioridade, e terminam em 1º de dezembro de 1891, um dia antes do aniversário, quatro dias antes da morte. Há algumas longas interrupções, cujas causas são ignoradas, como entre 1842 e 1859, entre 1863 e 1871, entre 1881 e 1887. Mesmo com as falhas, seu diário só encontra paralelo, entre os governantes brasileiros, no de Getúlio Vargas.
 
Mas quem procurar nele confissões, revelações, indiscrições, grandes reflexões, ficará desapontado. É quase todo dedicado ao registro de atividades diárias, conversas, despachos, visitas, teatros, leituras.  Os de viagem, então, são muito detalhistas, informam horários, distâncias, temperatura, altitudes. Os do exílio, quando o tempo disponível e a disposição psicológica eram propícios a maiores expansões, trazem vários registros de banalidades (...) Apenas esporadicamente brota uma anotação menos técnica, uma observação aguda, um comentário interessante, uma expressão de sentimento.

A exceção é o caderno IX, que se inicia em 31 de dezembro de 1861 e termina em 5 de janeiro de 1863, em plena crise do rompimento de relações diplomáticas com a Inglaterra. D. Pedro tinha então 37 anos e mais de vinte de governo, e acumulara muita experiência de vida e de administração. Entre 1859 e 1861, por alguma razão não revelada, decidiu fazer algo diferente, mais pessoal, mais autobiográfico, mais opinativo, embora sem abandonar a discrição. Disse mesmo ter queimado apontamentos anteriores e prometeu ser resumido em seus registros. A parte pública de sua vida, argumentou, estava nos periódicos, a particular era monótona. Pela excepcionalidade, as anotações merecem citação mais extensa, sobretudo as referentes ao dia 31 de dezembro de 1861. Elas começam com um esboço de auto-retrato: 
Pouco direi do indivíduo. Tenho espírito justiceiro, e entendo que o amor deve seguir estes graus de preferência: Deus, humanidade, pátria, família e indivíduo. Sou dotado de algum talento; mas o que sei devo-o sobretudo à minha aplicação, sendo o estudo, a leitura e a educação de minhas filhas, que amo extremosamente, meus principais divertimentos. Louvam minha liberalidade; mas não sei por quê; com pouco me contento, e tenho oitocentos contos por ano.
Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador. Se ao menos meu Pai imperasse ainda, estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo.
Prosseguem enunciando um breve  credo político, em que o imperador repete algumas ideias já expostas no documento entregue ao marquês de Paraná: 
Jurei a Constituição; mas ainda que não a jurasse, seria ela para mim uma segunda religião. Procuro cumprir meus deveres de monarca constitucional, e regulo meu procedimentos pelos princípios seguintes: os atos do poder moderador não admitem responsabilidade legal; mas, carecendo às vezes de defesa, os ministros que entenderem não poder fazê-lo têm direito de retirar-se. Estes atos não têm referenda obrigada.
Sobre os atos do poder executivo tem o imperador, como chefe desse poder, inteira inspeção, podendo manifestar sempre a sua opinião com toda a liberdade de exigir dos ministros. Deve ter todo o escrúpulo em insistir em sua opinião para evitar os males da subserviência e desgostos da parte dos ministros. Cumpre ao monarca ser franco para com os ministros; mas fora das ocasiões em que se resolvam os negócios, deve ser o mais reservado possível, ouvindo contudo a todos, e procurando esclarecer por todos os modos convenientes o seu juízo. A respeito do conceito, que forme o monarca dos indivíduos, todo o escrúpulo é pouco, e deve lembrar-se sempre de que os ministros desculpam-se as mais vezes com a opinião dele, ou que lhe imputam, quando se acham empenhados interesses individuais.
Não sou de nenhum dos partidos para que todos apóiem nossas instituições; apenas os modero, como permitem as circunstâncias, julgando-os até indispensáveis para o regular andamento do sistema constitucional, quando, como verdadeiros partidos e não facções, respeitam o que é justo.
Passam para princípios éticos e regras de comportamento: 
Não tenho tido, nem tenho validos, caprichando mesmo em evitar qualquer acusação a tal respeito, sobretudo quanto a validas. Dizem que por esse nímio escrúpulo não poderei criar amigos; melhor, não os terei falsos quando os haja granjeado.
Não posso admitir favor diferente de justiça; pois que a não ser injustiça é ignorância de justiça; a balança da justiça não se pode conservar tão ouro-fio que não penda mais para um lado. Também entendo que despesa inútil é furto à Nação, e só o poder legislativo é competente para decidir dessa utilidade. A nossa principal necessidade política é a liberdade de eleição; sem esta e a de imprensa não há sistema constitucional na realidade, e o ministério que transgride ou consente na transgressão deste princípio é o maior inimigo do Estado e da monarquia. Minhas ideias a respeito das eleições e da imprensa do governo acham-se num papel que tem o Presidente do Conselho.
Leio constante todos os periódicos da Corte e das províncias os que, pelos extratos que deles se fazem, me parecem mais interessantes. A tribuna e a imprensa são os melhores informantes do monarca.
Acho muito prejudicial ao serviço da Nação a mudança repetida de ministros; o que sempre procuro evitar, e menos se daria se as eleições fossem feitas como desejo; a opinião se firmaria, e o procedimento dos ministros seria mais conforme a seus deveres, reputando eu um dos nossos grandes males a falta geral de responsabilidade efetiva.
Sobre grande número das leis promulgadas, e de que se tem falado como necessárias, existe a minha opinião escrita em papéis, que tem o Presidente do Conselho; mas sempre direi aqui que fui sempre partidário da eleição por círculos, e me opus fortemente aos círculos de mais de um; que igual oposição fiz à lei relativa à nacionalidade dos filhos menores de estrangeiros, sendo aqueles nascidos no Brasil; que não aprovei a lei sobre o casamento dos católicos, mas a proposta do governo, e que entendo ser indispensável a dispensa do serviço ativo da Guarda Nacional. Menor centralização administrativa também é urgente, assim como melhor divisão das rendas geral, provincial e municipal, convindo vigorar este último elemento.
Nunca entendi a conciliação como a quiseram deturpar; a minha política sempre foi a da justiça em toda a latitude da palavra, isto é, da razão livre de paixões, tanto quanto os homens a podem alcançar.
E terminam com uma tímida confissão pessoal concernente às relações com a imperatriz: 
Confesso que em 21 anos muito mais se poderia ter feito; mas sempre tive o prazer de ver os efeitos benéficos de 11 anos de paz interna devidos à boa índole dos brasileiros, e viveria inteiramente tranquilo em minha consciência se meu coração já fosse um pouco mais velho do que eu; contudo respeito e estimo sinceramente minha mulher;  cujas qualidades constitutivas do caráter individual são excelentes.
Essa auto-imagem foi reiterada e complementada na correspondência particular e em conversas informais. Revelava com clareza o conflito entre duas identidades, as de d. Pedro II e de Pedro d'Alcântara. Este tinha paixão pelos livros, leituras, conversas com sábios, considerava o ofício de imperador um destino ingrato, uma pesada cruz, e os rituais do poder uma grande maçada. Era o Pedro que emergia com força assim que o monarca transpunha as fronteiras do país, transmutado num viajante comum. O outro, d. Pedro  II, dizia que, uma vez que o destino lhe reservara o papel de imperador, ele o cumpriria rigorosamente, de acordo com a Constituição e com as leis do país. Era a identidade que predominava dentro do Brasil, onde  era visto como um governante cioso de suas obrigações e de sua autoridade, ao ponto de concentrar excessivamente o poder e ofuscar todos ao redor. A imagem de imperador era reforçada pelo recurso a meios de exaltação de sua figura pública, como rituais, cerimônias, retratos, fotos, quadros, bustos.
 
Um dos exemplos mais conhecidos desse esforço de realçar a imagem pública do imperador é o quadro de Pedro Américo intitulado D. Pedro na abertura da Assembleia Geral, pintado em 1872. A abertura e o encerramento das sessões das câmaras eram sempre solenes. O monarca exibia então toda a pompa da realeza, manto forrado com papos de galo-da-serra, cetro, coroa, mão de justiça, e lia perante deputados e senadores a Fala do Trono, isto é, o programa do governo. Pedro Américo colocou d. Pedro no centro do quadro, imponente,  própria encarnação do poder monárquico. Sintomaticamente, no entanto, o quadro não foi encomendado nem sugerido pelo imperador. A encomenda foi do visconde de Abaeté, com destaque, naturalmente, no meio do pequeno grupo de políticos incluídos na obra. 
 
Dom Pedro II na abertura da Assembléia Geral”. Pintura de Pedro Américo 1872. Acervo do Museu Imperial de Petrópolis

 
(...)
Retomou no diário de 1862 alguns dos temas prediletos, como o da liberdade das eleições e da imprensa. Sobre a imprensa, sua posição foi sempre a mesma e se expressava de maneira simples, como disse a Caxias: A imprensa se combate com a imprensa. Essa postura foi mantida ao longo de todo o reinado. Durante a Guerra contra o Paraguai, o jornal Ba-ta-clan, publicado em francês no Rio de Janeiro por Charles Berry, ridicularizava os chefes militares brasileiros. D. Pedro impediu que fosse fechado, e protestava sempre que alguma violência era exercida contra jornais. 
 
Somando-se essa postura do imperador com a vigência do anonimato, pode-se dizer que a imprensa nunca foi tão livre no Brasil como em seu reinado. Os ataques pessoais em geral vinham nas seções de "a pedidos", também chamados de "ineditoriais". Os "a pedidos" eram pagos e serviam igualmente para veicular reclamações contra o governo, polícia, devedores. Até o circunspeto Jornal do Commercio publicava "a pedidos". Era a atração dos leitores. Quando ninguém os encomendava, os próprios jornalistas se encarregavam de os inventar. Chegava-se ao ponto de haver pessoas especializadas em assumir a autoria de ataques pessoais. O jornalista Ferreira de Araújo, editor por 25 anos da Gazeta de Notícias, informa que o testa-de-ferro "faz do ofício de estar preso um modo de vida". Não havia honra que estivesse a salvo dos pasquins da época, nem mesmo a do monarca. O mais famoso desses pasquins, O Corsário, apenas exagerava um pouco mais. Seu redator, Apulco de Castro, dizia quase tudo sobre todos, inclusive sobre o imperador. O único freio a esse tipo de abuso era a reação pessoal. Apulco foi assassinado por militares a quem ofendera. 
 
A defesa intransigente da liberdade de expressão tinha alto custo para d. Pedro. Ele, Isabel e o conde d’Eu eram vítimas constantes de ataques de jornais como A República e da Revista Illustrada de Ângelo Agostini. Satirizavam o físico do monarca, chamando-o Rei Caju, por causa do queixo projetado para a frente, criticavam-lhe as viagens, ridicularizavam sua mania de sábio e os títulos que recebia. José do Patrocínio não dava trégua na Gazeta da Tarde. A princesa Isabel, a quem mais tarde exaltaria como a Redentora, era acusada por ele de não ter postura, nem classe, de ser ignorante e beata. Agostini representou-a numa de suas atividades mais criticadas: descalça, lavando uma igreja de Petrópolis. Para injetar mais veneno, caracterizou a varredura como penitência imposta pelo núncio papal. Os ataques atingiram o auge durante o episódio do roubo das jóias. Mas não arrefeceram nem mesmo durante a doença do imperador nos três últimos anos do reinado. Nesse período, em que o diabetes se agravava e lhe causava sonolência, os caricaturistas, Agostini à frente, se deliciavam em representá-lo dormindo em reuniões ministeriais ou em sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Se anteriormente ele era criticado pelo excesso de poder pessoal, agora se tornara o Pedro Banana. 
 
D. Pedro II foi alvo de críticas e caricaturas mordazes e muitas vezes pessoalmente agressivas, mas jamais admitiu a censura. Neste cartum da Revista Illustrada, a legenda diz: “El Rey, nosso Senhor, e amo, dorme o sono da indiferença. Os jornais que diariamente trazem os desmandos desta situação parecem produzir em Sua Majestade o efeito de um narcótico”.
 
Diplomatas europeus e outros observadores estranhavam a liberdade dos jornais brasileiros. Schreiner, ministro da Áustria, afirmou que o imperador era atacado pessoalmente na imprensa de modo que “causaria ao autor de tais artigos, em toda a Europa, e até mesmo na Inglaterra, onde se tolera uma dose bastante forte de liberdade, um processo de alta traição”. O ministro da França, Amelot, também registrou em 1887 que havia no Brasil uma liberdade ilimitada de imprensa e parlamentarismo exagerado
 
Uma das razões pelas quais o imperador defendia a liberdade de imprensa era o fato de considerar a imprensa, ao lado da tribuna, as duas principais fontes de informação para o governante. O Jornal do Commercio tinha mesmo uma seção intitulada Para sua majestade o imperador, em que se publicavam queixas e reclamações. A partir de 1854, d. Pedro mandou que se fizessem resumos da imprensa provincial, que também lia, para desespero dos ministros mal informados. Marcava com uma cruz os assuntos de interesse ou rabiscava comentários. Os ministros costumavam ainda comprar jornalistas, até os melhores, para defenderem suas políticas. O monarca condenava a prática e pregava a criação de um jornal oficial, no que nunca foi atendido.
 
 
II. OUTRAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NOS MEUS BLOGS 
 
 
BRAGA, Francisco José dos Santos:  "Exposição Fotográfica: Uma Viagem ao Mundo Antigo — Egito e Pompeia", Blog do Braga, publicado em 28/04/2019.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2019/04/exposicao-fotografica-uma-viagem-ao.html
 
_____________________________: SONETOS DO EXÍLIO, POR IMPERADOR DOM PEDRO II, Blog de São João del-Rei, publicado em 06/07/2020.
 
CARVALHO, José Murilo de Carvalho: MACHADO DE ASSIS VAI À MISSA, Blog de São João del-Rei, publicado em 24/08/2023.
 
MUNIZ, Luciana & BOZZETTI, Rodrigo: MISSA CAMPAL DE 17/05/1888 CELEBRADA EM AÇÃO DE GRAÇAS PELA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL,  Blog de São João del-Rei, publicado em 23/08/2023.