Por FERNANDO SABINO (BH, 12/10/1923-Rio de Janeiro, 11/10/2004)
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
II. BREVE ANÁLISE DE “A ÚLTIMA CRÔNICA” pelo gerente do Blog
[MORAES, 1959] inicia sua crônica O Exercício da Crônica defendendo que “escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista... Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino.”
Passa então a descrever quanto custa ao cronista o preparo do seu texto quando a inspiração não vem, o martírio que é a página em branco, os minutos que passam no relógio e a pressão com o deadline acordado para enviar a crônica para publicação.
Apesar de dispor de uma série diversificada de temas, às vezes os fatos que marcaram o seu espírito não causam inspiração; nesta situação, o cronista pode, então, “em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir algum inesperado.”
Passa então a descrever quanto custa ao cronista o preparo do seu texto quando a inspiração não vem, o martírio que é a página em branco, os minutos que passam no relógio e a pressão com o deadline acordado para enviar a crônica para publicação.
Apesar de dispor de uma série diversificada de temas, às vezes os fatos que marcaram o seu espírito não causam inspiração; nesta situação, o cronista pode, então, “em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir algum inesperado.”
A este respeito, [QUEIROZ, 1999, p. 127] inicia assim a sua crônica Bilhete ao meu leitor de domingo, texto inserido no livro A donzela e a moura torta (1948): “Prezado leitor, adeus, estimo que passe bem. O fim destas maltraçadas é lhe dizer que hoje não espere crônica, nem conto, nem qualquer manifestação propriamente literária, em nosso rodapé. E não cuide também que o vou divertir com mexericos políticos; o mais que lhe posso oferecer são os meus cumprimentos. Ou dizer como os gladiadores: “Ave Caesar, morituri te salutant.” Reconheço que haverá no emprego da frase uma pequena impropriedade, porque não estou exatamente na situação de “morituri”. O meu mal não é de morte, é apenas de gripe, com febre de 38 graus. Mas sempre que a gente quer fazer uma citação latina, há qualquer coisinha que não se ajusta. Esta frase irá assim; você há de dar o desconto.” Nestes termos, Queiroz dá por concluída a sua crônica semanal, num tom de intimidade com seus leitores.
Retomando a crônica de Moraes, ela volta ao assunto da falta de inspiração, pedindo ao leitor colocar-se no papel do cronista: “Dias há em que, positivamente, a crônica “não baixa”. O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração – e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: “É... não há nada a fazer com fulano...””
Identificar diariamente temas que motivem os próprios cronistas e que atendam as expectativas dos seus leitores exige grande diligência. A Última Crônica de Sabino se inicia com a sua entrada num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Esse é um derivativo para preencher a falta de inspiração em produzir uma nova crônica, aquela que fecharia com chave de ouro o ano que termina. Na frase seguinte, ele se justifica com a desculpa de que “na realidade está adiando o momento de escrever” e emenda com o sentimento de que “a perspectiva (de não ter sobre o quê escrever) o assusta”, pois, “sem mais nada para contar”, só se lembra do verso do poeta: “assim eu quereria o meu último poema”.
Pois bem. Foi nesta hora que se apresentou a oportunidade de lançar “um último olhar fora de si”, o pretexto que faltava para a sua última crônica: uma singela festa de aniversário. Seu olhar recai sobre uma família pobre, composta de uma filha e seus pais que se sentaram a uma mesa para festejarem o aniversário da menina. A mãe tem para a filha um olhar de ternura: “ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo que lhe cai ao colo”. O pai, embora constrangido, mostra satisfação com a singela e simbólica comemoração.
Da mesma forma que a “celebração” do aniversário foi classificada como um sucesso pelo “prosador do cotidiano”, assim também sentiu ele, no plano da poesia, que a sua última crônica foi pura como o sorriso orgulhoso desse pai, como quereria que ela fosse.
III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MORAES, Vinicius de. O exercício da crônica. In: Rio de Janeiro: jornal Última Hora, edição de 22/08/1959
QUEIROZ, Rachel. Bilhete ao meu leitor de domingo. In: A donzela e a Moura Torta: crônicas e reminiscências. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948, 212 p.
SABINO, Fernando. A última crônica. In: A Companheira de Viagem, Editora do Autor, 1965, 178 p.
QUEIROZ, Rachel. Bilhete ao meu leitor de domingo. In: A donzela e a Moura Torta: crônicas e reminiscências. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948, 212 p.
SABINO, Fernando. A última crônica. In: A Companheira de Viagem, Editora do Autor, 1965, 178 p.
Um comentário:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
É com prazer que o Blog de São João del-Rei estampa A ÚLTIMA CRÔNICA de FERNANDO SABINO, impregnada de doçura, de imaginação e de lirismo, acompanhada de breve análise do gerente do blog.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/11/a-ultima-cronica.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
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